Três anos de pontificado

Um balanço de Guilherme d’Oliveira Martins Suceder a João Paulo II seria sempre uma tarefa muito difícil. Está bem presente nas nossas retinas o exemplo do Pontífice peregrino, interveniente e activo (mesmo na doença), sobretudo preocupado com as tarefas pastorais. Não poderemos, porém, fazer uma apreciação das realizações actual Papa com base numa comparação – quer pela longa duração do anterior pontificado, quer pela diferenciação de prioridades de duas personalidades tão diferentes. Também não deveremos centrar-nos no confronto entre expectativas e concretizações, uma vez que há uma claríssima distinção entre as funções anteriores do Cardeal Ratzinger, na Congregação para a Doutrina da Fé, e o magistério do Sumo Pontífice. Naturalmente que estamos perante a mesma pessoa, mas as preocupações e prioridades são agora de índole diferente – daí que sempre tenha pensado que a acção do novo Papa deveria ser vista nos passos concretos e não no campo das imagens feitas. Bento XVI é um intelectual de prestígio, um homem de grande inteligência, centrado na busca da coerência reflexiva. Assim, se é difícil fazer um balanço; há sinais positivos a realçar, avultando, entre tudo o mais, a publicação de duas encíclicas (Deus Caritas Est e Spe Salvi) que constituem reflexões muito sérias e inovadoras, a propósito de dois temas centrais na vida cristã: a caridade e a esperança. Em ambos os textos, Bento XVI atingiu os pontos mais altos dos três últimos anos. Seguindo uma sólida fundamentação, o Papa escolheu, com muita felicidade, começar por enaltecer a virtude perene da caridade, a partir do testemunho de Jesus Cristo e do entendimento magistral de Paulo. Está, no fundo, em causa a virtude que tem como vocação a eternidade, assumindo o amor toda a sua riqueza e expressão multímoda (agapé, filia e eros). E o tempo revelará, por certo, que este documento do magistério papal terá a maior importância futura, sobretudo se adequadamente prosseguido em acção pastoral da Igreja Universal. O mesmo se diga da recente encíclica sobre a Esperança, elaborada em linha com o texto sobre a Caridade, também em termos de grande segurança e abertura. Em ambos os documentos, o Papa utiliza um método inovador e muito promissor, que é o de citar textos e autores profanos, em confronto com textos da Igreja, para melhor ilustrar as ideias e reflexões propostas. Este procedimento, inédito até este pontificado, abre horizontes novos, uma vez que põe o pensamento religioso em diálogo com o mundo e as ideias contemporâneas, em nome do enaltecimento da razão e da compreensão dos seus limites (a invocação de autores como Adorno e Horkheimer é, neste sentido, muito curiosa e significativa). O tema das relações entre razão e fé é crucial no pensamento e no ensino de Bento XVI. Leiam-se, por isso, os discursos de Ratisbona (que suscitou incompreensões, sobretudo para quem não leu ou não compreendeu) e da Sapienza em Roma e verifique-se que há uma genuína preocupação de fundamentar e de mobilizar os nossos contemporâneos para o essencial da mensagem cristã, num contexto pluralista, que não deve ser confundido com o relativismo moral ou ético. Num momento em que a indiferença e o vazio de valores parecem querer dominar a vida, e em que a consequência desses fenómenos é o desenvolvimento da intolerância e do fanatismo, Bento XVI tem procurado contribuir para lançar pistas de resposta para os grandes problemas da existência humana nos dias de hoje, e também para que a paz e a justiça não sejam palavras vãs. Nesta perspectiva, é importante salientar estes factores positivos, até para que eles se traduzam em uma maior eficácia pastoral, quer nos novos continentes, quer na Europa. Tudo dependerá agora do modo como a Boa Nova continuará a ser proclamada. E é fundamental aproximar as pessoas concretas dessa exigência. O Amor não pode ser uma abstracção. A Esperança tem de animar a vida quotidiana. Eis por que razão Justiça e Graça, Fé e Razão, Liberdade e Crença têm de se ligar com equilíbrio e fecundidade. E essas bases sólidas terão de fundamentar uma audaciosa e prudente acção de exemplo e de persistência (como a levedura na massa). E em tempo de lançar a semente à terra, importa pensar na colegialidade e na maior partilha de responsabilidades no seio da Igreja. Guilherme d’Oliveira Martins

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