Bento XVI: pontificado em afirmação

Papa tem convicções fortes e um plano de acção bem delimitado, para (re)afirmar a Igreja no mundo Desde que foi eleito como Papa, no dia 19 de Abril de 2005, Bento XVI tem estado permanentemente debaixo das luzes da ribalta, um papel para o qual não parecia destinado à partida. Depois do desconforto e da desconfiança iniciais, o mundo vai-se habituando à sua figura e, sobretudo, à sua forma de transmitir as convicções mais profundas do Cristianismo, nos dias de hoje. Consolidados alguns dos princípios que vão marcar a sua actuação, percebe-se que só na aparência se está na presença de um pontificado invisível ou de travagem, como se chegou a afirmar no início de 2007, desvanecido que estava algum encantamento perante a figura do novo Papa. Tomando em consideração os últimos meses, percebe-se que mesmo não estando permanentemente em viagem à volta do mundo, Bento XVI tem uma longa lista de actividades. Mais de 200 discursos, só no ano passado, audiências com os mais importantes líderes mundiais, dos EUA à Arábia Saudita, um livro, uma encíclica, uma carta aos católicos da China, o Motu Próprio sobre a liturgia pré-conciliar ou a série de beatificações que, em média, ultrapassa já a de João Paulo II mostram que o actual Papa se adaptou à sua função de chefe espiritual de mais de mil milhões de católicos, nos cinco continentes. Um documento menos esperado surgiu em Junho, quando Bento XVI estipulou que uma maioria de dois terços para a eleição de um novo Papa, eliminando uma regra mais flexível criada por João Paulo II, para o caso de existir um impasse. Alguns temas dominam as intervenções do Papa, da Cúria Romana (com destaque para o Secretário de Estado do Vaticano, seja em audiências, seja em viagens ao estrangeiro, como aconteceu recentemente em Cuba) e as movimentações da sua equipa diplomática, que tem vindo a renovar em vários pontos-chave do globo. Para além das críticas ao relativismo e ao secularismo da sociedade ocidental, que Bento XVI vê como uma ameaça à própria Igreja, há todo o leque das questões bioéticas – aborto, eutanásia, investigação em embriões – e da família, nem sempre bem acolhidos por governantes e fazedores de opinião. A nível teológico, fiel ao trabalho realizado durante mais de duas décadas na Congregação para a Doutrina da Fé, o Papa apoiou publicamente dois documentos deste Dicastério, sobre a unicidade da Igreja e a sua tarefa de evangelização, que foram vistos em vários quadrantes como um obstáculo para o diálogo ecuménico e inter-religioso. Bento XVI desafia constantemente os fiéis a darem testemunho das suas convicções, razões da esperança a que dedicou a sua segunda encíclica e não concebe um catolicismo de pura intimidade, que não fala de si aos outros por receio de os ofender ou intimidar. Ao longo deste tempo, o Papa tem tentado estabelecer uma nova estratégia para a Igreja, que ultrapassa, em muito, a esfera meramente administrativa. A badalada “reforma” da Cúria Romana tem sido feita passo a passo, de forma discreta e até as escolhas dos Consistórios mostram a intenção de aproximar o Vaticano das regiões periféricas, onde o catolicismo está em crescimento acentuado, contrariando a tendência da Europa, historicamente o coração da Igreja. Considerado por muitos como um Papa “europeísta”, Joseph Ratzinger aprendeu a fazer do mundo a sua casa, como se viu na última viagem ao Brasil, por exemplo, olhando para os diversos problemas que se colocam à comunidade católica em países onde a sua existência está ameaçada (com destaque para o Médio Oriente) ou onde a dignidade humana não é respeitada. Praticamente todas as crises internacionais já mereceram, por parte de Bento XVI, um apelo em favor da paz, da reconciliação e do diálogo. Também relevantes são as suas intervenções, coadjuvadas pelas dos seus mais directos colaboradores e representantes em organismos internacionais, a respeito de temas particularmente em voga, como o aquecimento global ou a defesa do ambiente. As preocupações ecológicas chegaram em força ao Vaticano, seja em palavras, seja em actos, dando força à ideia de que estamos na presença de um “imperativo moral” para todos os que se preocupam com o futuro da humanidade. Os casos Algumas questões geraram certa polémica nos tempos mais recentes, com destaque para a visita falhada à Universidade “La Sapienza”, de Roma, na qual o Papa manifestava a intenção de se apresentar como “uma voz da razão ética da humanidade”. “Não venho impor a fé, mas pedir a coragem para a verdade”, referia o texto que Bento XVI tinha preparado para a visita de 17 de Janeiro, que acabou por ser adiada devido a protestos de membros da comunidade académica desta instituição, que foi criada por um Papa no século XIV. O facto de estarmos perante uma instituição independente de autoridades políticas e eclesiásticas não invalida, escreve Bento XVI que ali não seja escutada “a sabedoria das grandes tradições religiosas”. Esta frase ajuda a compreender muitas das intervenções pontifícias dos últimos anos. Internamente, o Papa e os Cardeais da Cúria Romana ainda têm necessidade de explicar que a decisão de “liberalizar” o Missal de 1962, anterior à reforma conciliar, não representa um “retrocesso” nem uma tentativa de reforçar a corrente tradicionalista no seio da Igreja. Também neste campo, a nova oração de Sexta-feira Santa pelos judeus levou a algumas explicações do Vaticano, perante reacções de desagrado do mundo hebraico, que ameaçou mesmo congelar o diálogo que existe entre as duas partes – com fracos resultados no que diz respeito à presença católica na Terra Santa, é justo dizer. Três anos depois da sua eleição, Bento XVI já não tem segredos para os seus e vai-se afirmando, de forma clara, como um Papa de convicções fortes e com um plano de acção bem delimitado, para (re)afirmar a Igreja no mundo. Cativar o Islão Os desafios lançados pela “crise” entre o Ocidente e o Islão têm sido analisados desde vários prismas, sempre com a preocupação de perceber qual será o futuro do diálogo com os muçulmanos. Os mais recentes sinais de aproximação entre o Vaticano e um grupo de representantes islâmicos, que levou já à criação de um fórum permanente para o diálogo de aprofundamento e conhecimento recíprocos entre cristãos e muçulmanos. Este caminho foi iniciado ao longo do último ano e meio entre o Vaticano e os 138 signatários da carta aberta “Um mundo comum”, enviada por representantes muçulmanos a líderes cristãos, incluindo Bento XVI, no passado mês de Outubro. Dissociar violência e religião tem sido o principal objectivo do Papa, se bem que isso não tenha sido o ponto central de muitos olhares sobre as suas intervenções. As leituras precipitadas de gestos como o recente baptismo de um egípcio convertido ao catolicismo, na Vigília Pascal, não servem para eliminar a importância da figura de Bento XVI para o diálogo entre culturas, conciliando fé e razão. O Papa deixou claro, desde muito cedo, qual era o caminho que queria percorrer, nunca se coibindo de condenar a violência em nome de Deus e da Religião, sem deixar abrir caminho para um diálogo “franco e sincero”, entre culturas e religiões, que tem como condição fundamental o debate aberto daquilo que une e, também, daquilo que distingue, para se poder reconhecer totalmente o interlocutor. Ameaças e acusações de pessoas como Bin Laden ou grupos fundamentalistas não podem fazer o Papa recuar: eles não procuram o diálogo, mas uma qualquer justificação para a sua “guerra santa” contra os “infiéis” e os “cruzados”. Para um diálogo de dimensão verdadeiramente universal, não é possível sentir- se limitado por atitudes destas. A diplomacia vaticana procura, por outro lado, que os líderes islâmicos construam um clima propício à liberdade (também religiosa), admitindo-se que, depois do Qatar, a própria Arábia Saudita possa ter uma igreja para os fiéis católicos no país. Entre a admiração e o desencanto Três anos depois da sua eleição, Bento XVI é frequentemente avaliado pelos seus gestos e palavras entre a admiração e o desencanto, mas não abdica do rumo traçado nem atraiçoa as suas convicções A eleição do Cardeal Joseph Ratzinger como sucessor de João Paulo II foi recebida com uma boa dose de cepticismo em vários sectores da Igreja e da sociedade. A par de gestos de continuidade com o Papa polaco, muito apreciados, alguns episódios polémicos servem, sistematicamente, para alimentar os críticos. Como já referi noutras ocasiões, se aos 80 anos de João Paulo II muitos exigiam a sua renúncia, a Bento XVI exige-se uma viragem no pontificado, promovendo mudanças de fundo. O actual Papa tem procurado, sobretudo, falar com clareza e de forma sistemática sobre as questões essenciais da fé (o Amor, a Esperança, Jesus de Nazaré). Este Papa, de facto, é menos decifrável para o mundo mediático de hoje: para além do carisma ligado ao lugar que ocupa, ele destaca-se por oferecer orientação num mundo perdido na “ditadura do relativismo” que tanto condena, apresentando um programa coerente e uma capacidade intelectual acima de qualquer suspeita. Estes ingredientes não bastam, ainda assim, para fazer dele uma figura apetecível. Joseph Ratzinger não foi eleito pelos Cardeais da Igreja Católica para ser líder de audiências ou ganhar pontos em sondagens de popularidade. Bento XVI não é, nem pode ser confundido com um líder político, mas é alguém capaz de regularizar relações com Moscovo e Pequim ou de confirmar-se na liderança do diálogo ecuménico. É, contudo, o regresso aos origens, ao que é essencial no Cristianismo, que marca, por certo, estes primeiros dois anos de pontificado e não é possível vislumbrar, por enquanto, qualquer motivo que leve a acreditar que o Papa se afastará do rumo traçado até ao momento. Mas, como ele tanto gosta de dizer, ninguém sabe o que Deus lhe reserva.

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