Sofrer para ser feliz é uma ideia perversa

Isabel Varanda em Barcelos «A ideia, que muitos atribuem ao cristianismo, de que temos de sofrer neste mundo para sermos felizes no outro, é perversa». Assim começou por dizer a Doutora Isabel Varanda quando na quinta-feira passada proferia a primeira de duas conferências quaresmais. E acrescentou: «O ser humano é um ser para a felicidade». Com estas palavras a professora da Universidade Católica deu o tom a toda a conferência que proferiu subordinada ao tema Doença e Sofrimento, apresentando-os como fazendo parte da condição do ser humano, a exigirem o cuidado de uns pelos outros. Perante uma assistência de duas centenas e meia de pessoas, uma parte delas habituada a participar nas catequeses semanais de adultos que a Paróquia de Santa Maria Maior promove na cidade de Barcelos, a conferencista salientou a dignidade ontológica de todos os seres humanos e apontou várias atitudes de comportamentos pessoais e colectivos a promover para com os que são atingidos pela doença. À luz de uma sadia antropologia teológica, a visão do ser humano a partir da ideia de um Deus criador, cada ser humano é criado por graça, na graça e para a graça. Originado no dom, podemos e devemos dizer a cada pessoa: «por maior que seja a tua dor, seja qual for a tua miséria, Deus ama-te». Sim, este amor precede-te, não se quebra, antes reforça- se na tua fragilidade. Olhando para o exemplo contado na parábola do bom samaritano, a conferencista convidou cada um a situar-se numa «ética dos máximos» e não dos «mínimos» pois que, naquela, o outro atinge um valor fundamental, tornando-se próximo. «A fragilidade não é humilhação », frisou, comentando depois o Papa Bento XVI que afirma que «a grandeza da humanidade vê-se na forma como trata os que sofrem». Numa verdadeira hospitalidade – o evangelho de Jesus é todo ele um apelo permanente à hospitalidade, a deixar que o outro entre na nossa vida – «o frágil, o doente, que não tem resistências, tem o direito a que eu não me apodere dele». Esta «resistência à tentação de posse» é uma atitude que urge incentivar na sociedade. Não sou proprietário de ninguém, antes sou «guardião» que cuida à maneira do pastor. Nunca lobos que se apoderam dos outros como a sua presa. A inviolável dignidade ontológica de todo o ser humano não me permite remeter o outro ao estado de uma «coisa» que, nas minhas mãos, se sujeita ao que eu quero. Poderíamos traduzir o mandamento bíblico não matarás por este outro, de igual significado mas formulado positivamente, cuidarás da vida. De onde se pode inferir a vocação do ser humano como Cuidador (precisamos de uma cultura do cuidado). A este propósito, a conferencista evocou a expressão de Heidegger, que falava do ser humano como «pastor do ser» para reforçar a ideia de que nunca o ser humano se pode transformar em «lobo» para outro ser humano. Esta cultura do cuidado não exclui ninguém: nem a vítima na sua fragilidade, porventura atingida pela doença, nem o agressor que no seu agir se «apoderou» do ser e se tornou «lobo» em vez de «pastor». Porventura aqui se toca a excelência do ser cristão. Olhando a pessoa atingida pela doença, tornar-se próximo dela no «cuidar do ser» significará, então, sofrer com (com + paixão), «atravessando» com ele o seu próprio drama e nunca, ao lado, contemplando-o na inevitabilidade do fracasso, como que «apoderando-se» no juízo que dele faz. Se entendermos a saúde como a força para viver com a doença, estaremos na via do sentido do sofrer, ao qual não nos resignaremos, antes o combateremos, assumindo-o, enfrentando-o e não lhe passando ao lado. Foi precisamente a via que Jesus seguiu, este «atravessar» o sofrimento vencendo-o. Um dos desafios lançados pela conferencista, a terminar, bem pode resumir os conteúdos apresentados, seguidos com a máxima atenção por toda assistência: «No dia em que os cristãos compreenderem que não nascemos para sofrer, que não temos que nos resignar ao sofrimento, saberão que consolar é estar com a solidão do outro, porventura no silêncio, mas presentes». Isabel Varanda voltará Barcelos na quinta-feira, dia 13, para a segunda conferência em que falará de Morte e Ressurreição.

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