Serafina e Liberdade: uma resposta social

Numa das encostas da cidade de Lisboa encontram-se dois bairros que cresceram lado a lado. À procura de melhores condições de vida no centro urbano que era Lisboa nos anos 20, o Bairro da Liberdade foi sendo desenhado a tijolo e cimento pela necessidade de quem não tinha dinheiro nem tecto onde dormir. O Bairro da Serafina, de casas edificadas por um poder económico superior, tem paredes meias e realidades próximas com a liberdade das ruas e da familiaridade própria dos primeiros anos do Século passado. De casas clandestinas e de apropriação de terrenos se foi construindo a história dos dois bairros, onde actualmente vivem cerca de oito mil pessoas. Habitações “barracadas”, desordenadas a precisar de uma grande intervenção urbanística que governo após governo não encontra solução e acordo. Desde a construção da Ponte 25 de Abril que o Bairro da Liberdade tem sido delapidado. Depois da ponte, surgiu a construção do Eixo Norte Sul. Sujeito a derrocadas, o Bairro foi sendo alvo de realojamento. A habitação continua a ser um dos grandes problemas que encontra aqui o núcleo de outras dificuldades sociais. A falta de condições de higiene, a promiscuidade, o desemprego, o alcoolismo, a toxicodependência e algum tráfico de droga trazido pelo renovado vizinho Casal Ventoso, a pobreza extrema causada por dificuldades financeiras, famílias desagregadas, crianças, adolescentes e idosos abandonados são características que revelam uma situação dramática. Foi para fazer face a esta realidade que nasceu o Centro Social e Paroquial de São Vicente de Paulo, na paróquia que lhe dá nome, na freguesia de Campolide. Uma obra de uma vida, da vida do Cónego Francisco Crespo, que não teve medo de arregaçar as mangas e dizer «Eu vou para o Bairro da Liberdade e da Serafina». Foi assim há 30 anos. O Pároco, responsável pelo Centro Social e Paroquial de São Vicente de Paulo e Director do Departamento da Pastoral Sócio-Caritativa do Patriarcado de Lisboa explica à Agência ECCLESIA que a divisão entre os dois bairros já foi mais marcante. “Há ainda quem seja do Bairro da Serafina e se considere superior ao Bairro da Liberdade, mas apenas a nível social ou civil. A nível da participação na Igreja não reconheço essa divisão”. De qualquer forma, quem mais acede aos serviços do Centro são os habitantes do Bairro da Liberdade. A génese da instituição foi iniciada nos anos 20 pela mão dos Vicentinos que se aperceberam da necessidade de uma intervenção social. A Educação Popular e a Congregação do Amor de Deus foram parceiros de respostas sociais que iam sendo dadas até chegarem os Missionários da Consolata, corria o ano de 1958. Com o primeiro pároco, José Gallea, começaram os primeiros projectos “possíveis para a altura”, relembra o Cónego Crespo. Alcatroar as estradas, trazer a luz eléctrica, acompanhar crianças, jovens e adolescentes em pré-fabricados para as primeiras respostas sociais. Mas a obra iniciada foi-se degradando e a comunidade foi encontrando sucessivos párocos, “com mais ou com menos vigor”. Chegado o 25 de Abril, a população começou a apoderar-se das instalações do Centro e os muitos sacerdotes que por ali passaram viveram “situações dramáticas”. Em 1977 chega o sacerdote Francisco Crespo, dos Missionários da Consolata. Na altura “não havia ninguém que aqui quisesse ficar”, lembra. Foi começar do zero. Já existiam algumas instalações mas encontravam-se degradadas. Com o desejo de mudança, foi surgindo algum equipamento. Passo a Passo Sabendo que as respostas teriam de vir cada uma a seu tempo, o pároco começou a preparar o primeiro equipamento – um pré-fabricado para os idosos, dando origem ao primeiro Centro de Dia do país, em 1978. “Não podia fazer o trabalho todo de uma só vez”. Na altura, havia “duas franjas preocupantes”, lembra. Mas os idosos, nos seus 70 anos, andavam pelas tabernas, sem ninguém e não tinham respostas. Com a ajuda da Caritas foi construído um pré-fabricado para 80 idosos, com apoio domiciliário. A atenção prestada foi a palavra de ordem. 30 anos depois o Lar acolhe 120 idosos dependentes e o apoio domiciliário apoio 85 pessoas. No Centro de dia estão 60 idosos, que simultaneamente estão à espera de vaga para entrar no Lar. Seguiram-se as crianças do pré-escolar. “Sem dar resposta às crianças, sobretudo do jardim de infância, os pais não podiam trabalhar”, reconhece o Cón. Francisco Crespo. As instalações para atendimento de crianças em idade escolar foi então adaptado, provisoriamente a jardim de infância. No primeiro ano, para 100 crianças. Actualmente a creche tem 65 crianças. No jardim de infância encontram-se 140 crianças. No ATL, com alimentação incluída, encontram-se 110 crianças do 1º e 2º ciclo. No ATL, no serviço de pontas, estão 60 crianças. Vieram depois os jovens e adolescentes que o sacerdote queria tirar da “má vida, alguns já na droga e na prostituição”. 30 anos depois são 120 os jovens e adolescentes que usufruem do espaço. Tudo foi nascendo a pouco e pouco. As instalações provisórias iam servindo para os vários serviços enquanto as instalações definitivas não eram construídas. Os pré-fabricados tinham história. O Centro de dia foi crescendo a par do problema habitacional. As casas foram-se deteriorando “com humidade e frio”. Aproveitando os subsídios do Estado para ajudar os idosos, na altura destinado a centros de dia, pois “não se falava ainda em lares”, surgiu a resposta para o acolhimento aos idosos num Lar. Já com o Centro de dia e o apoio domiciliário, o acolhimento destinava-se aos que estavam dependentes. O importante “é deixar as pessoas nas suas casas para não lhes tirar as raízes”, explica o sacerdote. Não havendo outra resposta, os idosos vão então para o Lar. Os deficientes eram outra franja populacional a precisar de acompanhamento. “Encontrei muitos, alguns sem-abrigo”, lembra o sacerdote. Actualmente são 30 as pessoas na actividade ocupacional para deficientes. Uma grande aldeia Quem entra no portão do Centro Social e Paroquial não imagina o espaço que estas valências ocupam. O conjunto parece ter sido criado de uma só vez. Mas as unidades foram nascendo de um sonho passo a passo, resposta a resposta para o que actualmente é uma grande aldeia. Só em último surgiu a Igreja. O Cónego Francisco Crespo desde sempre acreditou que o essencial eram as respostas para “o Cristo vivo nas pessoas”. As celebrações podiam ser feitas num pré fabricado, sem perder de vista o sonho de construir a Igreja “se houvesse dinheiro e forças”. O espaço e a beleza simples da Igreja são visíveis. Com capacidade para 500 pessoas, mas “já enchemos com 1000 nos dias de festa”. O Cónego Crespo não esconde a alegria por ter feito uma obra “com critério, mas livre de despesas de construção, apenas de manutenção e conservação”. O Lar para idosos foi aumentado um piso devido aos constantes pedidos para acolher os idosos, não só dos Bairros mas de toda a cidade de Lisboa, que ali chegam. Mais terreno disponível houvesse para dar resposta aos tantos pedidos, mais o Cónego Francisco Crespo construía. “A cidade de Lisboa está envelhecida e não tem resposta para os idosos”, explica. 1000 pessoas em lista de espera asseguram essa realidade. Este é um trabalho realizado por 150 pessoas, entre técnicos, psicólogos, terapeutas, fisiatras, enfermeiras, assistentes sociais, médicos, ajudantes de acção directa, cozinheiros, ajudantes de cozinha. Uma máquina pesada que quer dar primeiro resposta ao desemprego do Bairro, promovendo o desenvolvimento integral da pessoa e dando respostas para uma mudança. A trabalhar no Centro estão jovens e adultos que cresceram nos Bairros e são o resultado do trabalho ali realizado. Alguns cresceram e ali continuam a morar, outros saíram, mas as suas ligações não foram quebradas. Esta é uma forma, explica o Cónego Crespo, de as próprias pessoas se identificarem com quem estão a trabalhar, sendo este também um factor importante de reconhecimento. “Dá-me tranquilidade e alegria porque o trabalho não se perde”. “Quando as pessoas precisam de ser apoiadas não damos dinheiro, mas tentamos arranjar emprego”. Ainda assim, o Cónego Crespo dá conta de uma grande dificuldade em encontrar pessoas “competentes e disponíveis para a realização de tarefas árduas, sujeitas a turnos”. Gerir “esta população não é tarefa fácil”. Mas pela afabilidade do Cónego Crespo, visível no contacto que mantém tanto com pessoal como com residentes, não parece ser difícil. A vida dos seus funcionários não lhe é estranha. Talvez seja por isso que esta é uma obra, de Deus, feita de pessoas e de sucesso. Obra de Deus com dinheiro dos homens O terreno onde se encontra o Centro Social a Paroquial, há 30 anos atrás, estava cedido em direito de superfície. A primeira medida a tomar foi comprar o terreno à Câmara Municipal de Lisboa, “e alargá-lo o mais que pude”. De onde foi surgindo a verba para a construção, “na realidade não sei responder”. Muitos ajudaram, muitos foram os donativos que foi recebendo. “Não fiz milagres, mas fui vendo milagres a acontecer”, explica o Cónego Crespo. “Podem fazer-se umas festas para angariar fundos”, mas representam uns poucos milhares de euros que não chegam para tanta necessidade. “Tenho exemplos muito simpáticos de benfeitores”. O responsável recorda a generosidade da Igreja Evangélica Alemã que, através de várias comunidades na Alemanha, ajudam a tornar realidade as respostas sociais. “Vou recebendo sinais e através deles vou procurando fazer o melhor possível e pôr-me ao serviço da população”. O Centro possui uma casa na Praia das Maçãs, em Cascais, “que um judeu mandou comprar para uso da instituição”, e cuja manutenção é feita pelo benfeitor. Este espaço serve para retiros e fins-de-semana com os jovens. Com orgulho e satisfação, o Cónego Crespo diz que no Bairro não há fome, nem ninguém que fica sem resposta. “Venha quem vier, o seu caso é estudado e solucionado”. A ajuda nunca será monetária, adianta, mas muitas pessoas que habitam o Bairro “vêm ao Centro buscar a sua única alimentação”. Adolescentes que chegam de casa “cheios de fome, fazendo no Centro a primeira e última refeição do dia”, explica. Uma realidade extensível por vezes “entre funcionários também”. O Cónego Crespo acompanha bem a realidade dos utentes e dos funcionários. Sabe bem as dificuldades por que os seus trabalhadores passam e reconhece o esforço diário do trabalho que ao final do mês não chega para sustentar a família desempregada e em dificuldades. Sem fazer do Centro “um mar de rosas”, o Cónego Crespo afirma que procuram acompanhar todas as situações. “Se soubermos que uma criança é negligenciada, não procuramos logo a sua institucionalização, mas antes fazer o processo com a família”. Este é um trabalho que afirma ser “permanente” e próximo. As necessidades são constantes e surgem a toda a hora. Há 30 anos atrás “a droga não estava muito presente, mas havia alcoolismo”. O Cónego Francisco Crespo sabe que, trabalhando com alcoólicos e toxicodependentes, há situações difíceis de resolver. “Mas nem por isso as deixamos de acompanhar”, sublinha. O pároco faz questão de dizer “sempre aos funcionários: se não tivermos mais nada para dar que dêmos amor”. O bom atendimento é feito através do acolhimento que se dá na primeira hora. Se não houver resposta no Centro, “procuramos noutro lugar”. O Casal Ventoso “aparentemente acabou porque foi reconstruído com novas habitações”, mas a população deslocou-se para os Bairros da Serafina e Liberdade, “sobretudo para traficar”, apesar de o Cónego Crespo reconhecer que existe algum consumo “por vezes mesmo em frente à Igreja”. Situações reconhecidas, que não deixam de preocupar, mas que “sabemos só podemos intervir até determinado ponto”. Não por questões de violência ou conflitos, pois a situação de insegurança já não existe como outrora. A implementação do Centro “impôs-se e é actualmente um ponto de referência”. O respeito decorrente vem das respostas fornecidas. As pessoas sabendo que “aqui são acolhidas, respeitam a instituição”. Um respeito visível nas paredes brancas que circundam o Centro Paroquial e que contrastam com os grafitis nas paredes vizinhas das habitações. Resposta social e eclesial Duas facetas que não se dissociam. Apesar de primeiro ser reconhecida como resposta social, a base do acompanhamento feito no Centro tem um pressuposto evangélico, visível na caridade. Em 2009 a paróquia prepara o cinquentenário. “Vamos mostrar que é possível evangelizar através da caridade. Não basta a catequese, a Palavra, a liturgia ou os sacramentos, mas a primeira grande fonte é a caridade e o testemunho”. Aos funcionários pede “luta permanente, não podemos dormir”. Se aspecto social o pároco regista um bom acolhimento, na formação catequética tanto de crianças como de pessoas, “a prática religiosa e o testemunho, deixa muito a desejar”. “Há crianças que nunca fizeram o sinal da cruz ou nunca rezaram o Pai Nosso”, explica dando conta do “contra testemunho em casa”. A formação religiosa assumida e comprometida “é muito complicada”. Capacitado em dar respostas sociais, o Cónego Crespo reconhece uma incapacidade no Centro para reconhecer onde falha no compromisso evangélico. “Será da sociedade, do ambiente no bairro ou em casa? Não sei dizer.” Certo é que entre a participação numa celebração penitencial ou na eucaristia “ganha, por incrível que pareça, a celebração penitencial”. Uma necessidade de desabafar ou a alegria pelo encontro com o sacerdote, são hipóteses levantadas pelo Cónego, mas sem certezas. Nas festas organizadas, nas procissões ou via-sacra que decorrem nas ruas, a população recebe com agrado manifestações públicas da Igreja. “Percebo estes sinais não porque mo digam mas porque vejo a reacção das pessoas”. Resultado de um trabalho que lentamente se foi fazendo. Onde o Estado não entrou O Centro Social e Paroquial de São Vicente de Paulo é um edifício no meio do Bairro que não deixa ninguém indiferente, quer usufrua mais ou menos da instituição. A única resposta que esta população teve “recebeu-a da Igreja, porque o Estado nunca quis entrar nem nunca se preocupou em entrar”. Não há concorrência nas respostas sociais nem incompatibilidades. “Sinto que há desprezo do Estado”, expressa o Cónego Crespo. O sacerdote aponta uma actual situação difícil entre instituições e Estado. “Sente-se um pessimismo nos deveres do Estado, sobretudo na falta de apoio às instituições, em vez do sobre posicionamento”. “O Estado não tem vocação para o social, nem deve ter. O Estado tem o dever de comparticipar. Quem deve exercer a acção sócio caritativa é a sociedade organizada”. No bairro, o Estado “não acompanha nem quer perceber a situação habitacional”. Esta “é uma mágoa que tenho que talvez não consiga resolver no meu tempo”, lamenta. Na ausência de uma instituição que cubra as carências dos mais necessitados “não sei como se sobrevive”. Esta é uma preocupação que o Cónego Crespo constata entre colegas e percebe as dificuldades que eles partilham por falta de meios. O problema habitacional é um grande entrave ao desenvolvimento num problema de difícil solução “sem ponta por onde pegar”. “Percebo uma maior preocupação da autarquia para resolver o problema dos bairros históricos da Baixa de Lisboa do que do Bairro da Liberdade”. Um enorme enraizamento da população ao Bairro é talvez resposta para o prolongamento do problema habitacional. “As pessoas preferem ficar em piores condições no seu buraco do que ir para fora”, explica o Cónego Crespo. Mas há outras apontadas. Sentindo que há uma instituição que dá resposta aos seus problemas, as pessoas não querem sair. “Há um sentimento de segurança”. A somar às condições geográficas do Bairro – ar puro que chega de Monsanto, proximidade do centro da cidade, ausência de ruído urbano conferem “boas condições para viver no Bairro”. O sonho não acabou. A qualidade dos serviços é uma constante a manter e a procurar. Uma maior parceria e complementaridade na área da saúde entre o Centro de Saúde e o Centro São Vicente de Paulo é um dos desejos do Cónego Crespo. O Ministério da Saúde desafiou-o para a criação de uma rede de cuidados continuados, mas “falta terreno. Muito ainda gostaria de fazer. Facilmente construía mais um Lar, mas falta terreno”, desabafa. O Centro Social e Paroquial São Vicente de Paulo é já uma grande aldeia. Ali se cruzam diariamente utentes, funcionários, jovens, crianças e idosos que brincam num espaço conjunto. Sem hora para se fechar às pessoas.

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