Para ver e oferecer a verdade do Natal

Homilia do Bispo do Porto na Missa de Natal

Amados irmãos e irmãs, iluminados todos pela glória do Presépio

 “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, que lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade”. Este curto passo do Evangelho escutado dá-nos o essencial do que celebramos no Natal de 2009, tão distante e afinal tão próximo do que aconteceu em Belém de Judá. Assim acontece com as coisas essenciais: são poucas mas nunca acabam, coincidindo com a nossa humanidade comum, tal como foi criada e depois assumida pelo próprio Deus.

Uma mulher que dá à luz um filho, um homem que os guarda e admira. Juntaram-se pastores e depois uns magos do Oriente. E milhões e milhões, como nós agora, nesta catedral transformada em presépio. – Para ver o quê? Precisamente o mesmo que o Evangelista de há pouco: “Nós vimos a sua glória, que lhe vem do Pai como Filho Unigénito…”.

É uma criança a nascer e o próprio Deus a dizer-se dessa maneira. Trinta anos depois será um homem a morrer e Deus também se dirá assim. Como entretanto se disse emigrado no Egipto, a crescer e a trabalhar em Nazaré e a anunciar um Reino que se abria no mundo para nos realizar em Deus. – Que bem o referiu Santo Ireneu no século II: “Há um só Deus que, pelo seu Verbo e Sabedoria, criou e ordenou todas as coisas. O seu Verbo é Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos últimos tempos se fez homem entre os homens, para reunir o fim com o princípio, isto é, o homem com Deus!” (Ofício de Leitura, 4ª feira da 3ª semana do Advento).

Interessantíssima a todos os títulos é esta conclusão cristã das coisas. Porque de perguntas, perguntas essenciais, se fez a história humana. Quando nos interrogamos sobre a própria humanidade nos seus começos, onde a podemos encontrar senão nessas perguntas em que a liberdade se começou a manifestar, para além da necessidade pura e simples. Como ainda na infância de cada um, também aconteceu na da humanidade inteira, com os primeiros e insistentes “porquês?”. – Porque há de ser assim e não doutra maneira? – Porque desaparecem pessoas que conhecemos e para onde vão? – Porque se sucedem os dias e não retornam mais? – Porque desejamos tanto e conseguimos tão pouco? – Porque é tão contrário a si mesmo o nosso próprio coração, que tantas vezes não faz o que quer, mas o que não quer nem deve?

 

Destes e doutros porquês se fez a história humana. E mal seria se desistíssemos de os enunciar e aprofundar, resolvendo mal e depressa as questões fundamentais, da vida à família, da sociedade à cultura. Sobre simples desejos, dispersos afectos e disposições de momento não progrediremos como humanidade consciente e responsável, nem como liberdade consistente e racionalidade segura. Perguntas de sempre e respostas apuradas pelo devir humano e social, essas sim, são base sólida para continuarmos idênticos e em identidade progressiva.

Mas há que sondar ainda mais estas perguntas e o seu porquê, ou o porquê dos porquês, se assim quisermos. Se nos unem como seres humanos tanto as perguntas como as respostas fundamentadas, então de pergunta e resposta se constrói a história humana, para ser verdadeiramente tal, quer dizer, consciente, livre e responsável.

Com isto coincide a notável descoberta da vida como pergunta operativa e disposição para progredir na resolução de si mesmo e do mundo inteiro, através duma humanidade que dele verdadeiramente cuide, fruindo sem destruir e desenvolvendo sem desgastar. E se dermos mais um passo, sondando o porquê dos nossos porquês, então poderemos chegar, com toda a tradição bíblica, à consideração da vida como vocação.

As nossas perguntas são afinal suscitadas por Aquele que nos faz assim e deste modo nos educa. As nossas questões são basicamente religiosas porque nos “religam” ao Absoluto que nos criou e agora nos chama. E, absoluto sendo, não nos quer deixar a meio caminho, distraídos nas margens e muito menos inconscientes, regredindo para uma pseudo-liberdade, que ficaria escrava de impulsos desintegrados.

Assim mesmo o entendeu o Papa Bento XVI na sua última encíclica, quando retomou de Paulo VI a ideia de “vocação” como chave e “porquê” do desenvolvimento autêntico: “Na Populorum Progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação: ‘Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação’ (PP, 15). […] Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último” (Caritas in Veritate, 16).

E aqui voltamos ao Presépio, donde aliás nunca saímos. É que sendo a vocação suscitada por um desejo de que não somos a fonte e por uma pergunta de que não dominamos a resposta, nós estamos aqui – neste Natal de 2009 – porque acolhemos a elucidação que o próprio Deus nos dá sobre si e sobre nós, quando na nossa própria humanidade se traduz, comunicação divina em realidades humanas, do nascer ao morrer e ao ressuscitar por fim: por finalidade sua, nossa e do mundo.

Verdadeiramente, o Natal não foi apenas há 2009 anos, como se o enclausurássemos num momento histórico, que aliás também foi. Melhor diremos que há 2009 anos, assim convencionados, ultrapassando expectativas de ontem, hoje e amanhã, Deus ofereceu-nos a última resposta sobre si, sobre a humanidade e sobre o mundo. Tão última que ainda hoje a interpretamos e aprofundamos, no sulco certo e seguro da sua interpretação evangélica, parecendo-nos sempre nova e novíssima, surpreendentemente capaz de incluir e alargar as mais recentes descobertas da ciência, como as mais penetrantes intuições da poesia e das artes.

Nunca é de mais repetir que esta convicção de que temos no Verbo incarnado a resposta plena de Deus é atestada pelas primeiras gerações cristãs, que conseguiram resumir em pouquíssimos versículos a mais definitiva das realidades. Como a abrir a carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo” (Hb 1, 1-2).

Aludindo directamente a este passo – e já íamos no século XVI -, São João da Cruz comentava com as suas habituais palavras de oiro: “O que antigamente Deus disse pelos Profetas a nossos pais de muitos modos e de muitas maneiras, agora, por último, nestes dias, nos falou pelo Filho tudo de uma só vez. Com isso o Apóstolo nos dá a entender que Deus ficou como mudo e não tem mais que falar, porque o que antes disse parcialmente pelos Profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade” (Ofício de Leitura, 2ª feira da 2ª semana do Advento).

Em Jesus, o Verbo inicial com que Deus nos disse e fez, temos agora o Verbo último em que Deus nos refaz e conclui, ou vai concluindo por acção do Espírito. Espírito que em nós e por nós alarga ao universo o que sucedeu da Anunciação ao Natal e do Natal à Páscoa. Sendo nós criaturas históricas e situadas, só histórica e situadamente poderíamos ouvir e assimilar uma Palavra que finalmente nos respondesse. Palavra que sendo o próprio Deus-Palavra, nos comunica Deus e nos diviniza também. Ouvimo-lo no Evangelho: “àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”.

 – Reparamos, irmãos e irmãs, reparamos verdadeiramente no que sucede a quem acolhe o Verbo de Deus, num presépio dito e deitado em palhinhas, como hoje o contemplamos, mas sobretudo o guardamos no coração, como Maria?! Rebrilha Ela agora, na gloriosa assunção em que participa da ressurreição de Cristo, depois de o ter concebido e acompanhado nas vicissitudes da mútua existência humana. Isto mesmo pode e deve acontecer connosco, irradiando em fé, esperança e caridade, que transformem realmente as diversas situações da vida de cada um, da família à escola, da escola à empresa, da saúde à doença e da vida à morte, que seja ainda vida.

Da parte de Deus tudo está dito, porque a si mesmo se disse, impulsionando-nos agora pelo Espírito a ecoar no mundo a Palavra definitiva. Da nossa parte resta o acolhimento, a conversão e o testemunho. Tão perto já da Missão 2010, decidamo-nos ainda mais nesse sentido. Mês após mês, é sempre da incarnação do Verbo que falaremos, dele nos abeirando e a outros connosco.

Ainda na presente situação, queremos participar solidária e activamente das dificuldades e das esperanças dos nossos concidadãos. Além e bem dentro dos compromissos diários da vida familiar e eclesial, escolar ou profissional, saudável ou tocada pela doença, prevista ou imprevista, avivaremos na sucessão dos dias a presença recriadora do Senhor do tempo. 

Em Janeiro cantaremos janeiras, anunciando em espaços públicos o Natal de Cristo para a vida do mundo; em Fevereiro, com muitos jovens de várias proveniências, havemos de adorá-Lo na sua Cruz, plena de vida; entre Março e Abril, celebraremos a Paixão de Cristo, valorizando as nossas tradicionais devoções quaresmais, em profunda comunhão de caridade e dádiva; em Abril, mil compassos pascais levarão a sítios próximos e além deles o jubiloso anúncio da Ressurreição…

E assim continuará a Missão, assim continuaremos nós através dela, a viver e a oferecer a todos a verdade do Natal. Para que se realize em nós e no mundo o que pedimos na oração. “Senhor nosso Deus, […] fazei que possamos participar na vida divina do Vosso Filho, que se dignou assumir a nossa natureza humana”.

– Tão simples afinal, se tivermos o coração convertido à simplicidade de Deus!         

 

+ Manuel Clemente

Sé do Porto, 25 de Dezembro de 2009

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