Não adiemos o Natal

Homilia do Arcebispo de Braga na Missa de Natal

O Natal nem sempre é convenientemente interpretado. O Evangelho concentra-nos no essencial e deveria secundarizar outros aspectos que, podendo ser importantes, recebem o significado da compreensão daquilo que é verdadeiramente essencial. 

“O Verbo fez-se carne e habitou entre nós” como luz que ilumina todos os homens embora muitos não o queiram receber, só que a luz deve continuar a brilhar no meio das trevas pois só n’Ele está a vida.

Se as trevas de hoje se adensam, numa perspectiva religiosa e social, Cristo deve continuar a Sua acção no mundo. Sabemos que persiste uma estruturação e descrição da sociedade radicalmente injusta e totalmente corrupta com muitos sinais de desintegração. Mas, em simultâneo, torna-se imperioso reconhecer um mundo e uma sociedade, mergulhadas no meio de mil dificuldades e ambiguidades, mas que é capaz de gerar vida, paz, justiça, solidariedade. Não podemos ficar numa visão pessimista e negativa do mundo.

Só interpretando positivamente a realidade actual seremos capazes de estruturar uma vontade concreta de acreditar que tudo poderá mudar.

No tempo de Advento ouvíamos Isaías perguntar: “Sentinela, em que altura vai a noite?” (Is 21, 14). Ninguém ignora a escuridão que nos é dado viver. Mas, o dinamismo que a comunidade cristã deve manifestar continua a ser interprete de esperança pois “são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação” (Is 52, 7).

Mais do que nunca a Igreja deve estar intimamente unida ao mundo, sem se confundir ou ter medo dele. Nenhum motivo pode servir para se afastar do mesmo. Ela necessita de, com audácia e sentido de testemunho duma mensagem com parâmetros diferentes, colocar-se uma atitude de solidariedade e permuta mútua com a história, real e concreta, do mundo. Só mergulhando nos seus dinamismos mais íntimos poderá ser “experta em humanidade” e, em nome do Evangelho, entender a sua missão como serviço à família humana.

Caminhar com o mundo, como verdadeira incarnação, e ousar proclamar a fidelidade a Alguém que se fez mundo para a Verdadeira Salvação. “Deus falou muitas vezes e de muitos modos”. “Nestes dias falou-nos por Seu Filho”(Heb 1, 1-2).

É Cristo, nascido em Belém e morto em Jerusalém, que deve falar numa reinterpretação do Seu Evangelho que continua pleno de actualidade. A Palavra de Deus é o grande dom da Igreja que ela deve colocar no coração da humanidade numa atitude humilde e de serviço. Só o Evangelho distingue a Igreja doutras ideologias ou pensamentos sobre a sociedade. Revertida da mesma Palavra nunca poderá olhar o mundo como estranho e aproximar-se dele como algo alheio. Interessa-se, procura conhecê-lo, aprecia-o, alegra-se com o seu crescimento, condivide as suas preocupações, as suas conquistas e interrogações, partilha as suas feridas e ambiguidades, acompanha todos os seus passos e leva os seus pesos para em tudo o amar e servir.

No mundo a Igreja é chamada a mostrar que o Evangelho de Jesus Cristo não é uma realidade do passado. Ele é o futuro autêntico da humanidade porque oferece um verdadeiro olhar sobre tudo o que é humano.

É um futuro que a Igreja e o mundo, em escuta e diálogo mútuos, saberão continuamente a edificar, respondendo às diversas questões da humanidade nunca numa mera perspectiva espiritual, nunca numa dimensão verdadeiramente humana. Em cada ser humano está sempre patente a necessidade de viver melhor neste mundo mas inseparavelmente unida ao desejo de mais alguma coisa. “Nem só de pão vive o homem.” Há algo que transcende o pão. Esquecer ou truncar uma destas dimensões será sempre apostar num desenvolvimento falso que ilude e engana. Só uma acção conjunta destes dois horizontes através da acção eclesial e da acção política, permitirá uma sociedade à medida do homem e realizadora de felicidade.

É nesta convicção que gostaria de congratular-me com quanto o Tratado de Lisboa – que recentemente entrou em vigor – sublinha. “A União respeita e não interfere no estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as Igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados membros” (Art. 17 §1).

“Reconhecendo a sua identidade e o seu contributo específico, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações.” (Art. 17 §3).

Com este articulado a Igreja deve concentrar-se no genuíno da sua identidade para poder dar um contributo específico que é único e importante para a construção duma sociedade nova. Com este programa centrado do essencial, pode, deve e quer esperar um diálogo permanente e a propósito das questões estruturantes da sociedade para uma caminhada comum que não só não obstaculriza a laicidade do Estado mas lhe concede o estatuto duma positividade que a todos envolve e compromete na prossecução do bem comum.

O Natal também pode ter este significado e deve conduzir-nos a uma participação cívica que não se detêm perante as dificuldades.

Cristo tem algo a dizer à sociedade portuguesa e importa que o faça pela Igreja como comunhão hierárquica onde todos são corresponsáveis.

É Ele que, em todos os cristãos, deve falar sempre com o exemplo e, frequentemente, com a palavra, chegando a todos os âmbitos da vida. O cristão, homem ou mulher, é este sinal de que o Natal continua a acontecer na política, na escola, na saúde, na administração pública, nas fábricas, no comércio, na indústria…

Se Cristo não nasceu no aconchego dum lar pode significar esta urgência de que chegue pelos cristãos a mundos que parecem nada ter com a vida da Igreja. Esta está em todos os mundos e só os cristãos podem demonstrar a verdade desta doutrina.

O Natal ainda não aconteceu. Isto é maravilhoso. Só a Igreja, sacerdotes e leigos, permitirá que a noite se ultrapasse e resplandeça a aurora dum mundo mais humano e fraterno.

“Aquele amor divino é a luz – fundamentalmente, a única – que ilumina, incessantemente, um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir” (D.C.E. 39). Compete-nos manifestá-lo.

Sé Catedral, 25-12-09

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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