«O Verbo fez-se carne e habitou entre nós. E nós vimos a Sua glória»

Homilia do Bispo de Santarém na Missa de Natal

A terceira missa de Natal que estamos a celebrar convida-nos a contemplar o mistério do acontecimento natalício. Enquanto a missa da meia-noite ou do Galo descreve de uma forma viva e movimentada a cena do nascimento do Menino, o anúncio aos pastores e a visita destes ao presépio de Belém, a celebração do dia apresenta-nos uma meditação de grande profundidade e beleza espiritual, feita pelo evangelista São João, acerca da identidade do Menino que nasceu e do significado do seu nascimento. Na simplicidade encantadora do presépio manifesta-se o mistério que o evangelista resume nestas palavras: “O Verbo fez-se carne”. O Filho de Deus e Sua palavra eterna assumiu a condição humana. Deus apresenta-se no meio de nós na fragilidade e na pobreza de uma criança. O Menino reclinado numa manjedoira revela-nos a verdade de Deus e a verdade do homem. “Fez-se o que somos para nos fazer participantes do que Ele é” (S. Cirilo de Alexandria).

Porque é que Deus se tornou homem? Para habitar connosco, diz a narrativa evangélica. O Natal celebra a visita do Verbo de Deus, não uma visita de passagem mas para permanecer. Deus partilha a nossa condição humana, está próximo de todo o que nele crê e O invoca, mostra-se um amigo, irmão e companheiro em quem podemos confiar. Compreendemos, assim, o alcance profundo da afirmação que fazemos. “Deus está connosco” ou “Deus está comigo”. É um vizinho excelente que veio morar no meio de nós e a quem podemos bater à porta.

São João refere outro objectivo da sua vinda: “Nós vimos a Sua glória”. Ou seja, o Natal torna Deus visível. Várias vezes os textos bíblicos repetem a invisibilidade de Deus. É óbvia para nós. “A Deus nunca ninguém o Viu”, afirmava o texto de São João. Tantos justos desejaram ver e pediram para ver: “O Vosso rosto eu procuro Senhor, não escondais de mim o vosso rosto”. “Mostrai-nos Senhor o Vosso rosto”. Nós sabemos que Deus não tem rosto, é invisível. Mas desejaríamos ver ao menos um sinal, ter uma manifestação, uma prova que apoiasse a nossa fé. Porque Deus parece escondido e para muitos parece mesmo ausente.

Ora o Natal, diz São João, torna Deus visível: “A Deus nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito que está no seio do Pai é que O deu a conhecer”. O mistério da Encarnação deu um rosto a Deus. Quando Tomé pediu a Jesus “Senhor mostra-nos o Pai”, Ele respondeu: “Quem me vê, vê o Pai”. Na verdade, Jesus torna visível o rosto de Deus. Quando Jesus entra em casa de Pedro e cura a sogra, quando come e bebe com os pecadores, quando perdoa aos pecadores (ao explorador Zaqueu, à Madalena arrependida, ao paralítico estendido na enxerga), Ele dá visibilidade ao Deus. Um Deus amigo do homem, próximo, misericordioso.

Jesus é, na verdade, o sinal de Deus por excelência. Há outros sinais visíveis, como a Escritura, o universo, os crentes, a experiência religiosa de tantos que sentiram a sua protecção, viveram em união mística com Ele e mudaram as suas vidas. Várias vezes, nos textos desta celebração, ouvimos a possibilidade de ver alguns sinais em que Deus se manifesta. Em Isaías, os mensageiros da Boa Nova vêem com seus próprios olhos o Senhor que volta para viver com seu povo em Sião. E o salmo vai mais longe ao proclamar que todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus. É uma visão no sentido amplo, com o olhar da fé. Mas num ambiente de descrença todos precisamos de procurar o rosto de Deus e de descobrir sinais visíveis da Sua presença.

As leituras desta missa sugerem-nos um caminho acessível a todos, em que podemos fazer uma experiência pessoal de entrar em contacto com Deus e descobrir mais profundamente o Seu rosto. A Carta aos Hebreus esclarecia neste sentido: “Antigamente Deus falou muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas”. As Sagradas Escrituras, são, na verdade, uma ponte para entrar em contacto com Deus e dialogar com Ele. A referida Carta continuava: “Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos pelo seu próprio Filho”.

Na mesma linha, o evangelho de São João designa o Filho como o “Verbo” ou Palavra eterna de Deus. “Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens”. Portanto, quando escutamos atentamente ou fazemos uma leitura meditada e interiorizada da Sagrada Escritura, Deus vem conversar com Seus Filhos. Através dos textos bíblicos temos a possibilidade de dialogar com Deus, como se dialoga com um amigo. Assim, a Bíblia deixa de ser letra morta e torna-se palavra viva de Deus.

Este é um caminho acessível para nos encontrarmos com o Senhor, para descobrir o rosto invisível de Deus. Ouçamos Santo Hipólito, teólogo do séc. III:

“Único é o Deus que conhecemos, irmãos, e não por outra fonte que não seja a Sagrada Escritura. Devemos, pois, saber o que as divinas Escrituras anunciam e compreender o que ensinam. Devemos conhecer o Pai como Ele quer ser conhecido, glorificar o Filho, como o Pai quer que O glorifiquemos e receber o Espírito Santo como Ele no-lo quer conceder. Esforcemo-nos por chegar à compreensão das realidades divinas, não segundo o nosso arbítrio e interpretação pessoal, nem fazendo violência aos dons de Deus, mas seguindo os caminhos que o mesmo Senhor nos deu a conhecer nas santas Escrituras”

A leitura meditada e orante da Bíblia, (que designamos por “lectio divina”), a princípio não é fácil. Mas com exercício perseverante e com o apoio de um grupo bíblico, leva-nos adquirir gosto e a alcançar fruto. “Scriptura crescit cum legente” (S. Gregório). Assim o Verbo ou Palavra eterna de Deus torna-se luz e vida na nossa existência, leva-nos a contemplar a glória de Deus e a receber a sua graça e verdade.

+ Manuel Pelino Domingues, Bispo de Santarém

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