O lado de Cristo continua a estar aberto na Igreja. Cheguemos-lhe o “cálice”, não mais a “lança”

Padre António Jorge dos Santos Almeida, diocese de Viseu

O lado de Cristo, de onde nos provém a participação no seu sacerdócio, nunca deixou de estar aberto na Igreja para a salvação do mundo. Também neste tempo, o seu olhar sobre as multidões continua a enchê-l’O de compaixão por causa do cansaço e o abatimento causado pelas vicissitudes atuais. Sobre as asas do Espírito Santo continua a transportar-nos para nos levar até Ele, para ouvirmos a sua voz e nos convidar a guardar a nova aliança, não só pela perseverança, mas também pela fidelidade criativa.

Vivemos tempos em que a contemplação do sacerdócio, melhor dizendo, da participação no único Sacerdócio de Jesus Cristo, faz ecoar uma disparidade de reflexões: umas como reações às fragilidades dos que participam (tanto de clérigos, como de batizados) e outras como tentativas de resposta ousada a lacunas abertas por novos “ferimentos de lança” neste “lado” do Corpo de Cristo que é a Igreja, por falta de respostas de vocacionados, que se deixem livremente formar para ser enviados em missão diante da realidade atual.

A realidade da presença e da ação da Igreja no mundo, vista com o máximo de objetividade e seriedade possível, faz-nos contemplar tanto luzes como sombras. Entre estas, sobretudo no Ocidente, está um certo pessimismo gerado pela falta de vocações de consagração especial, de uma pastoral vocacional fortemente apoiada num número que satisfaça meramente a manutenção pastoral, a fragmentação das instituições eclesiais (comunidades, famílias, movimentos, associações e obras), o enfraquecimento ou inexistência de conselhos de representatividade (que ligam o “corpo” à “cabeça”) e as deformações “tectónicas” na pastoral da Igreja que levaram a alguma confusão sobre uma saudável e dinâmica relação entre o sacerdócio batismal e o ministério apostólico, e sobre o seu único fundamento que é a participação ─ necessária e fundamentalmente diferenciada ─ no sumo sacerdócio de Jesus Cristo. A mesma dificuldade, por vezes, vive-se dentro dos próprios graus do Sacramento da Ordem, assim como no seio da diversidade de carismas que constituem os Institutos de vida consagrada e os Movimentos. Esta descrição da realidade, aproxima-nos do pessimismo que gerou o ícone cinematográfico “Frankenstein” ou o “prometeu moderno” que é produto de um romantismo exacerbado feito de projeções de desejos humanos (a quem lhe perguntar “de onde vens?” ele responderá “de muitas partes”, sem a definição de uma configuração unitária). Ora, não é assim que somos chamados a contemplar o Corpo de Cristo que é a Igreja, o novo Povo de Deus, no seu caminhar em missão pelo mundo.

No entanto, na tentativa de objetivar melhor a realidade dos ministérios na participação do sacerdócio de Cristo, há também muita luz, e não meramente sombras, ainda que aparentemente não equitativas, mas mais um fio de luz por onde continuar a tecer a história de um amor recíproco entre Deus e a humanidade, através de pessoas concretas que se aventurem a escutar e a responder, na fidelidade à Tradição viva da Igreja. Perscrutar esta luz no tempo presente, e com esperança no futuro, sem nos esquecermos do legado do passado, implica respondermos com seriedade à (talvez únicas) perguntas retóricas “de onde vimos todos?” e “para onde estamos chamados a ir todos?”, sabendo de antemão que a resposta nos remete para Cristo Morto e Ressuscitado, com um Sacerdócio que instaurou neste mundo, mas que não é deste mundo.

Permitam-me os leitores uma metáfora: na linguagem de navegação, quer aérea, quer marítima (porque não utilizar a mesma na peregrinação terrena?), os navegantes dão-se conta, frequentemente, de ventos ou marés contrárias que provocam a deriva para um rumo diferente do proposto. Então, de forma a navegarem para o rumo certo, procuram direcionar a proa do avião ou da barca para um ângulo com o qual possam corrigir a deriva, necessitando de navegar contracorrente. Quanto à (co)existência e à reciprocidade entre os ministérios ordenados e os ministérios instituídos, assim como da interação com os diversos carismas na Igreja, não está a ser fácil a “navegação” no que toca à rota da (nova) evangelização.

Não será tempo de revermos e de falarmos todos a mesma linguagem? Não será tempo de enuclear pontos de confusão a partir dos quais tendem a reinar poderes deste mundo que não têm que ver com o projeto de Deus transmitido por Cristo a partir da Igreja? Não será necessário discernir à luz do Espírito Santo o “ângulo” que nos permita navegar contracorrente, para podermos chegar eclesialmente a bom porto, de modo que entre o dizer e o fazer não aumentemos o mar de permeio (a constatação rima no italiano: tra il dire e il fare, c’è di mezzo il mare; este provérbio refere-se a pessoas que têm tendência a falar muito sem sentido ou a fazer promessas que não são cumpridas).

A respeito deste tema, foi oportuna a realização do Simpósio sob o tema “Para uma Teologia Fundamental do Sacerdócio”, acontecida em Roma de 17 a 19 de fevereiro de 2022, cujas atas já estão disponíveis em português. Esta iniciativa, que não se quer ver terminada, implica virar a “proa” desta “barca” que é a Igreja em direção à maré contrária que é a perversão do clericalismo (patente em vários tipos de abusos e, sublinhe-se, não só de clérigos!), para ali proclamar o Evangelho da comunhão no serviço, ao estilo das comunidades primitivas fundadas pelos primeiros apóstolos, por mandato do Espírito de Cristo. Seria bom que temas como as proximidades elencadas pelo Papa Francisco (com Deus, com o bispo, entre presbíteros, com o povo) e a investigação de alguns teólogos sobre os fundamentos antropológicos, bíblicos, patrísticos, teológicos da relação entre o sacerdócio batismal e o ministério apostólico, chegassem às escolas de formação nos seus diversos níveis (a nível académico e não só, da formação inicial à permanente dos presbíteros e na formação dos consagrados e dos leigos), para se chegar a um horizonte de equilíbrio que dê credibilidade à missão da Igreja.

Ora, se os navegantes da realidade geofísica têm a ousadia de utilizar todo o conhecimento e instrumentos à disposição para uma viagem segura, porque deveria ser menos nos caminhos da evangelização, começando por refletir sobre onde colocar a direção do olhar, descobrindo po ronde participar da compaixão do Bom Pastor, e vendo onde estão os ventos contrários por onde é preciso evangelizar? Antes de agir, Jesus, fiel ao Pai e “pranto” Seu diante das dificuldades e necessidades da humanidade, olhou primeiro para as multidões que viu “como ovelhas sem pastor”, sem líderes, à deriva. Começou por envolver os seus discípulos na oração ─ que é central da obra da evangelização ─ e teve a ousadia de chamar alguns, formando-os e enviando-os com instruções precisas.

Aberto é o ângulo de correção da deriva dos navegadores; aberto é para sempre o coração do nosso Bom Pastor; aberto é o ângulo que o Espírito de Cristo tem vindo a inspirar às comunidades da Igreja através do Sumo Pontífice (o “servo dos servos de Deus”) e da colegialidade dos nossos Bispos, para que não percamos, no hoje da história, o rumo traçado no projeto de Deus para a nossa humanidade. Nesta abertura de ângulo, constam instrumentos diversos para a “navegação” como, só para elencar algumas, a nível global, a XVI Assembleia Geral do Sínodo “Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação, Missão”, a realização da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023 e, a nível local, as tentativas documentadas e experimentadas de renovação da Catequese, a contínua renovação da Liturgia, as inúmeras respostas da Igreja no âmbito social, sem nos esquecermos da riqueza dos carismas patentes na vida e iniciativas dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica.

Porém, apesar destas bem-vindas “aberturas de ângulo” para um rumo certo de Igreja, o “lado aberto” de Cristo não deixa de transparecer neste seu Corpo místico um “latejar” de feridas provocadas por divisões e disparidades no que toca a realidades comuns e centrais do ser e da missão da Igreja, onde subjetividades pessoais se interpõem à unanimidade fecunda que, não sendo possível, na melhor das hipóteses, poderia ser uma intersubjetividade sonhadora. O culto que mais agrada a Deus, que é cuidar das pessoas com aquele amor que nos vem do lado aberto de Jesus é um desafio possível sempre que unirmos a Vida celebrada (na Liturgia) à Liturgia vivida (no quotidiano).

A messe é grande e ninguém pode dizer que a pode mondar sozinho (porquanto Jesus Cristo também não o fez na terra e, ascendendo ao Céu, não tardou a solicitar a colaboração do Espírito Santo, por Quem agem Ele e o Pai). Particularmente nas nossas dioceses portuguesas, considero de inspiração divina a coragem dos nossos bispos e superiores dos institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica, por um lado, em assumirem a realidade dos ventos maus (ou abusos) que nos fizeram/fazem andar à deriva e, por outro, pela “abertura de ângulo” ─ de visão e de ação ─ em abraçar a possibilidade de novos “ministérios laicais para uma Igreja ministerial”, de forma a que não se vejam meramente como experiências minoritárias a caminho do sacerdócio ministerial, mas caminho propedêutico para novas vocações e estilos de vida consagrada. Passe outra metáfora: acerca do corpo humano, sabe-se, por exemplo, que do ritmo gerado pelo “ministério” das pernas depende o bombeamento do sangue para a cabeça; poderá acontecer algo de semelhante com o corpo eclesial no que toca à reciprocidade entre vocações e ministérios!

Um eventual apego a uma tradição morta ─ que tende a pegar mais na “lança” que fere o lado deste Corpo místico de Cristo do que no “cálice” que recolhe a vida nova que jorra d’Ele, sem desperdiçar nada ─ pode levar-nos a considerar a comunhão na diversidade de ministérios e carismas como uma ameaça à (porventura menos numerosa) presença do ministério sacerdotal. Uma eventual consequência deste modo de pensar poderá ser o enfraquecimento da fecundidade que é própria da fidelidade criativa, que vai mais além que a mera (e muitas vezes difícil) perseverança vocacional.

Partilho algumas convicções que, desde o meu ver e refletir humilde, parecem contradizer o medo aterrador em usar todos os instrumentos de navegação que o Espírito parece dispor à Igreja na rota atual para o Reino de Deus:

1) A primeira é a de que o lado sempre aberto de Cristo parece-me ser a própria Igreja aberta ao e para o mundo, muitas vezes incompreendida e desde onde muitas pessoas entregam as suas vidas de forma escondida e adulta, no serviço alegre e gratuito aos outros, não obstante a falta de reconhecimento devido ou de apoio institucional necessário. Se o lado aberto de Cristo, Bom Pastor, é fonte de vida, só faz sentido por uma Igreja ministerial «em saída» (e não fechada sobre si mesma).

2) A segunda é a de que se colocarmos mais ardor no cuidado das pessoas do que na autodefesa das nossas instituições, a nossa missão não tenderá a entrar em crise, nem de falir, porque concentrada na sua renovação para atingir o fim para que foram criadas.

3) A palavra “ministério” pode levar-nos sempre a correr o risco de perdermos a sua significação prática de serviço, porquanto a humildade evangélica desta significação ajuda a impedir a deriva de certos protagonismos que fogem do ardor e fidelidade iniciais, como é o caso da tendenciosa consideração dos ministérios (nomeados, instituídos ou ordenados) como estando na ordem dos fins em vez de estar na ordem dos meios, ao serviço do comum caminho batismal pelo qual se é chamado a ser salvo.

4) Por último, parece-me que quando, dentro das famílias, das comunidades, dos arciprestados, das dioceses, do país, se multiplicar o diálogo sobre os carismas, assim como a formação e a vivência dos ministérios ─ sejam os “enraizados no Sacramento da Ordem”, seja os “enraizados nos Sacramentos da Iniciação e no Matrimónio” (como se refere no documento da CEP a este respeito) ─, mais se suscitará o interesse por todos os ministérios que, apesar de distintos e entendidos como serviço, não se esgotam uns aos outros, uma vez que a evangelização é responsabilidade de todos os batizados. O cardeal Oscar Maradiaga dizia algo sobre o desenvolvimento social que convido a aplicar à dimensão eclesial no que toca à relação entre os ministérios/vocações e a nova evangelização: sem ética não haverá desenvolvimento para ninguém. Parafraseando-o, a este respeito: sem boa formação para todos, não haverá desenvolvimento para ninguém e nenhum membro pode dizer “não preciso de ti”.

Mais do que esperarmos que venham de outro planeta as pessoas idóneas a formar para nomear, instituir ou ordenar, há que olhar para as pessoas de boa vontade que estão à nossa frente (nos espaços litúrgicos, nos cartórios, nos centros pastorais e nos processos catequéticos, na JMJ, etc.), e dos que se cruzam todos os dias connosco como matrimónios ou consagrados, procurando conhecer as suas vidas com mais profundidade e acompanhando-as no discernimento dos carismas, vocações e ministérios. Não é o chamamento que favorece o clericalismo, mas a falta de formação que se lhe deve seguir. E quem já vive de forma madura a sua resposta ao chamamento confirma a verdade da sua vocação como chamadouro. Se nos aventurarmos sem medo a formar servidores que ─ desde os processos catequéticos e de discernimento vocacional ─ poderão vir a traduzir-se em respostas vocacionais estáveis, talvez a Igreja não se derive na, por vezes, aparente amalgama “frankensteiniana” que pouco tem que ver com a realidade (não só mística mas também ascética) do Corpo eclesial de que Cristo é a Cabeça, que está e nos guia a partir de onde a todos nos (ch)ama. Levantemo-nos e partamos, como Maria, apontados unanimemente e alegres para onde nos indicar o Mensageiro!

Padre António Jorge dos Santos Almeida

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