O Cristo Rei, o Evangelho e a crise

A estátua de Cristo Rei, frente a Lisboa, foi concluída há meio século, com o dinheiro dos católicos, que assim quiseram agradecer a Deus ter Portugal sido poupado aos horrores da II Guerra Mundial. Como é evidente, foram manobras políticas e diplomáticas que mantiveram o país fora da guerra. Mas com certeza muita gente rezou então para que tal acontecesse. O Deus cristão não é impassível e longínquo. Voltada para o futuro, a Conferência Episcopal Portuguesa assinala os 50 anos do Cristo Rei com um simpósio sobre “reinventar a solidariedade”. Também aqui se pode perguntar o que tem o Evangelho a ver com a crise que atravessamos. Decerto que não se encontram nele programas políticos, económicos ou sociais. E que, na política, os católicos se distribuem por vários partidos ou por partido nenhum. Mas o Evangelho tem uma palavra decisiva a dizer sobre a crise, porque a tem sobre a vida. Não é, com certeza, uma palavra técnica – é mais do que isso. A fé cristã impõe uma atitude de base, o empenhamento de cada um no bem-estar dos outros, sobretudo dos que sofrem. Uma atitude muito diferente daquela que tem predominado nas sociedades ricas, onde se acentuaram as tendências egoístas, centradas no prazer pessoal e ignorando os outros. Claro que tendências dessas sempre existiram e existirão na humanidade. Só que nas últimas décadas elas generalizaram-se e passaram a ditar o comportamento de muita gente com altas responsabilidades económicas e financeiras. Assim se compreende a irresponsabilidade de numerosos gestores financeiros, que colocaram poupanças de clientes em aplicações pouco transparentes, quando não enganosas. Ou o escandaloso espectáculo de gestores responsáveis pelo desastre das empresas que dirigiam (com o desemprego daí decorrente) reclamarem prémios e bónus valendo fortunas. É hoje consensual que na raiz da presente crise global (uma crise financeira que rapidamente se tornou, também, numa crise económica e social) está um enorme desprezo por valores éticos de fundo. Tenho desde há anos defendido que o défice ético das nossas sociedades tem alguma relação com o colapso do comunismo. Não que o comunismo fosse bom, mas porque a decepção que o seu fim gerou em quem nele acreditou e a inexistência de uma alternativa ao capitalismo incentivaram uma atitude triunfalista de “vale tudo” para ganhar dinheiro, muito dinheiro e depressa. Pois se o comunismo até partira de um interesse em mudar a situação dos explorados, e no entanto deu no que deu, não valerá mais a pena cada um de nós deixar de se preocupar com a sorte dos outros, indo tratar da sua vida? Pobres sempre os teremos entre nós… Depois, a ideologia marxista (à semelhança, aliás, de certas e ultrapassadas interpretações do pecado original) reconduzia todo e qualquer mal a uma culpa e a culpados: se havia pobres, é porque os ricos os exploravam. Acabe-se com a exploração e o mundo será um paraíso. Desacreditado o marxismo, e tomando muita gente consciência de que não era directamente culpada pelo sofrimento dos pobres e excluídos, desvaneceu-se uma motivação para a solidariedade. Tenho muita pena da fome que existe nos países subdesenvolvidos ou nos “ghettos” das nossas cidades, mas não me sinto responsável por isso, logo deixo andar. É aqui que entra o Evangelho, a exigir uma outra e radicalmente diferente atitude. Tenho obrigação de ajudar o próximo que sofre, não por causa de quaisquer culpas (que até podem ter existido e serão um motivo adicional para o ajudar), mas simplesmente porque se trata de uma pessoa, de um irmão. É este comprometimento na solidariedade que o cristianismo impõe. O Evangelho proíbe a resignação face à injustiça. Por isso dele brota um impulso ético de preocupação pelo bem comum e pela situação dos mais desprotegidos, que o individualismo egoísta em que temos vivido ignora. Está aí o essencial. Francisco Sarsfield Cabral, Rádio Renascença

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