Nossa Senhora não apareceu no Sameiro

Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga

1 – O mês de maio é especialmente dedicado, na tradição da Igreja, à devoção a Nossa Senhora. Os fundamentos desta evocação poderão ser encontrados no sincretismo religioso que marcou os primeiros séculos da Igreja. Na tradição grega, o mês de maio era dedicado a Artemisa, a deusa da fecundidade. Por sua vez, os romanos devotavam maio a Flora, deusa da vegetação. É um mês vinculado ao vigor da natureza que, após o início da primavera, desabrocha numa multitude de flores, tonalidades e perfumes, antecipando os frutos. Será certamente a singularidade deste tempo, que emana fertilidade e pulcritude, a melhor alegoria para enaltecer a figura de Maria.

2- Em Portugal, este vínculo temporal do mês de maio ao culto mariano saiu especialmente reforçado com as aparições de Fátima que, desde 1917, centralizam inequivocamente a religiosidade devotada a Nossa Senhora. A coincidência da primeira aparição de Maria aos pastorinhos ter sucedido precisamente no mês de maio acabou por sublinhar esta mesada particularmente dedicada à devoção mariana. Maio é o mês de Maria para a Igreja, mas com singular relevo em Portugal.

3 – Se o santuário de Fátima se afirma com inequívoco protagonismo na devoção mariana em Portugal, perpassando largamente as fronteiras do país, a religiosidade em honra de Nossa Senhora detém horizontes muito mais extensos no nosso território. Na Arquidiocese de Braga o mais célebre lugar devotado a Maria é o santuário da Abadia, localizado nas fraldas do Gerês e considerado o mais antigo santuário português. No entanto, o seu mais relevante espaço de devoção mariana é o santuário do Sameiro que, debruçado sobre a cidade de Braga, é sede de uma das mais intensas dinâmicas religiosas de Portugal.

4 – Erigido no ano de 1863 em comemoração da definição dogmática da Imaculada Conceição ocorrida em 1854, o Sameiro rapidamente se desenvolveu como espaço privilegiado de oração e romagem. Nos alvores do século XX o santuário respigava popularidade, afirmando-se como o maior lugar de peregrinação mariana em Portugal. Tudo mudou, porém, após as aparições de Fátima. Por causa disso, em Braga era até frequente escutar-se que “a Senhora de Fátima fora o diabo que aparecera à Senhora do Sameiro” numa alusão à perda de popularidade do santuário bracarense, precisamente no momento em que almejava especial vigor. Nesse contexto, o Arcebispo D. Manuel Vieira de Matos declararia perentoriamente: «Nossa Senhora não apareceu no Sameiro. Está no Sameiro».

5 – Esta afirmação, que poderá aparecer como pretensiosa, não deixa de desvelar a autenticidade da devoção mariana na Igreja. Onde exista a fé, é possível surgir um espaço de culto, independentemente de no seu fundamento estarem aparições ou outros fenómenos extraordinários.  A espiritualidade de Maria na Igreja revela um culto especial que se revela de incomensuráveis formas. Como refere a constituição conciliar “Lumen Gentium”, «Já desde os tempos mais antigos, a Santíssima Virgem é venerada com o título de «Mãe de Deus» e sob a sua proteção se acolhem os fiéis, que a imploram em todos os perigos e necessidades».[1]

6 – A importância de Maria na Igreja, fortalecida sucessivamente ao longo dos tempos pela teologia e, consequentemente, na liturgia, é sufragado incessantemente pelos fiéis, que encontram em Maria a sua mais significativa medianeira e intercessora. Sublinhando o papel do culto mariano na Igreja, o Papa Francisco instituiu, em 2018, a solenidade da Virgem Maria Mãe da Igreja, celebrada anualmente na primeira segunda-feira após Pentecostes[2]. Como referia o Papa João Paulo II, o título “Mãe da Igreja” reflete «a profunda convicção dos fiéis cristãos, que veem em Maria não só a mãe da pessoa de Cristo, mas também dos fiéis. Aquela que é reconhecida como mãe da salvação, da vida e da graça, mãe dos salvados e dos viventes, com todo o direito é proclamada Mãe da Igreja»[3].

7 – É esta Mãe da Igreja que o santuário do Sameiro celebra. Este recanto bracarense que o Papa João Paulo II visitou a 15 de maio de 1982 e confirmou como “monumento da gente portuguesa, do amor à Santíssima Virgem, aqui venerada e invocada sob o título de Imaculada Conceição”[4], não nasceu devido a singulares manifestações, mas funda-se na devoção especial que os cristãos, mormente minhotos, sempre devotaram a Nossa Senhora. Por isso mesmo, tal como referiu um entusiasmado prelado bracarense, não apareceu no Sameiro, mas está lá permanentemente.

 

Rui Ferreira

[1] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 66.

[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-06/maria-mae-da-igreja.html (visto em 23/05/2021).

[3] JOÃO PAULO II, “Maria, Mãe da Igreja”, 17 de Setembro de 1997 em www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1997/documents/hf_jp-ii_aud_17091997.html (visto em 25/05/2021).

[4] JOÃO PAULO II, Homilia da eucaristia celebrada no santuário do Sameiro, 15 de Maio de 1982.

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