Morte: «O riso é uma forma de lidar com o luto» – Ricardo Araújo Pereira (c/vídeo)

Escritor e humorista diz que acreditar nas pessoas é a única coisa que lhe resta, acreditando que antes de nascer esteve num «sono sem sonhos» e é para lá que vai regressar quando morrer

Lisboa, 05 nov 2020 (Ecclesia) – O escritor e humorista Ricardo Araújo Pereira diz que o seu trabalho resulta de “uma consciência aguda da morte”, ligando o riso ao luto, realçando que, como ateu, acredita não haver nada antes do nascimento ou depois da morte.

“O trajeto, entre o nascimento e a morte, faz-se de forma diferente se tivermos a capacidade de rir. É precisamente pela consciência do que acontece, de que isto tem um fim, que o riso é uma espécie de solução – muito precária e frágil, fugaz, mas uma anestesia muito breve, de supressão da emoção”, explica, em entrevista à Agência ECCLESIA.

Ricardo Araújo Pereira assinala que o riso é uma forma de lidar com o luto e que, a gargalhada, que resulta do fazer rir, nasce do ventre, “local onde nascem também os bebés”.

Ligar a capacidade de rir ao ventre materno, “à vida”, parece-lhe “interessante”.

A ideia de morte, recorda, marcou a sua vida desde o nascimento, fruto do relacionamento próximo com a sua avó, Adélia Maria da Cunha, que enviuvou cedo, 20 anos antes do nascimento de Ricardo Araújo Pereira.

“Num certo sentido, uma parte da sua vida tinha acabado, e, portanto, essa sombra pairou desde o início. Foi bastante formativo”, recorda.

Com a avó, uma senhora católica que se enquadrava no “catolicismo popular”, “longe de ter um pensamento teológico sofisticado, como os pais da Igreja”, que reconhecia a ideia que “no fim da vida existe uma espécie de exame, quem passa é recompensado, quem não passa é castigado”, Ricardo Araújo Pereira viveu uma relação que marcou profundamente a sua vida, em termos afetivos e o levou a trilhar o caminho do humor.

A morte apanha-nos sempre de surpresa. Mesmo estando muito preparados para ela, a ideia de que aquela pessoa deixa de existir, que nunca mais a vamos ver, sente-se uma culpa ou um desespero, ou as duas coisas juntas que é ‘não sei se consigo visualizar a cara dela ou se vou conseguir manter a memória persistente da pessoa e do que ela era’. Eu consigo recordá-la porque tenho fotografias cá em casa e isso vai ajudando, mas essa ideia, de repente pensarmos que me arrisco a esquecer a sua memória”.

Falecida em 2002, a memória da sua avó continua muito presente.

“Uns anos depois de a minha avó ter morrido, a minha prima, mostrou-me um saco de plástico que trouxe de casa da minha avó com um pano. E ela disse: ‘Prepara-te porque isto vai ser uma experiência’. E tirou o pano e deu-me para o cheirar. O cheiro tem uma capacidade para se sobrepor aos outros sentidos na evocação de memórias. De facto, o cheiro daquele pano cheirava a casa da minha avó. É uma mistura de detergente com remédio para as formigas, uma série de odores juntos, que realmente produziram um impacto”, indica.

Foto: Lusa

Para Ricardo Araújo Pereira a lembrança “não suaviza a ideia de morte”, chegando mesmo a agravar, porque “a recorda dolorosamente”.

“Eu, às vezes, tenho sonhos muito reais com a minha avó presente. A desilusão que sobrevém no momento de acordar é como se ela desaparecesse uma segunda vez”, declara.

Daí que, acrescenta, no homem surjam mecanismos para “salvar”, para “afastar a memória” e essa ideia de morte ser menos perturbadora.

No entender de Ricardo Araújo Pereira quando se morre, “vai-se para o sítio de onde se esteve antes de ter nascer”, ou seja, “o nada, inócuo”.

“A boa noticia disto é que eu não tenho qualquer recordação de ser doloroso. É apenas nada. Percebo que isso seja uma desilusão. No fundo causa um mau perder. Para que é que isto serve, então? Se é para acabar nisso, para que isto tudo?”, observa.

Entre Platão, que fala de um “sono sem sonhos”, e Hamlet, que pela mão de William Shakespeare, reconhece a ideia de um sono, mas “com sonhos” que “poderão ser tão terríveis como a realidade”, Ricardo Araújo Pereira opta pela ausência de sonhos, mesmo sendo “uma ideia insatisfatória”.

“Não coloco a possibilidade de ser com sonhos. A minha perspetiva é que seja sem sonhos, igual ao sítio onde estávamos antes de termos nascido, uma não existência sem memória sem nada”, sublinha.

Há dias, ingenuamente, fui à terra da minha avó. Na verdade acho que ela não está em lado nenhum, o que resta está no cemitério. E eu ingenuamente fui lá e pus a mão na pedra, esperando que o mármore fosse parecido com o rosto dela, e não é de todo, como é óbvio. É só uma pedra áspera desgastada pela chuva e pelos elementos. Senti-me um bocado palerma por ir lá por a mão, à espera de outra coisa que não fosse isso”.

A questão da eternidade liga-se às convicções do humorista.

DR

“Muitas vezes penso que, mais do que não acreditar em Deus, eu não gostaria que existisse apenas na medida em que me faz muita confusão que uma entidade, omnipotente, tenha poder sobre mim para a eternidade”, indica.

As dúvidas existenciais foram-se impondo à medida que foi crescendo e, indica, que as conclusões a que foi chegando são comuns.

“Todos vão fazendo essa pergunta e vão chegando, mais ou menos, às mesmas conclusões: não há tantas coisas que importam, mas que as importam, importam mesmo, e essas são as relações próximas, a capacidade de manter relações com os outros, de sermos próximos e vice-versa”, observa.

O escritor coloca a hipótese de os crentes se sentirem mais acompanhados, reconhece uma “solidão em quem não crê”, mas igual transtorno perante a morte de alguém.

“É possível que haja uma solidão nos não crentes, parece-me que existe, uma espécie de solidão existencial, em que os dois momentos fundamentais, o nascimento e a morte, apesar das pessoas que possam estar à volta, são uma ocorrência individual”, precisa.

Sendo ateu, Ricardo Araújo Pereira afirma não acreditar em Deus, mas sim nas pessoas, recordando o contacto que manteve com padres, religiosos e cristãos,

“O que nos resta, pelo menos a mim, é acreditar nas pessoas. Eu assisti a muitos atos de bondade praticados por cristãos, por isso acredito neles. Mas a história regista também atos de maldade praticados por cristãos. Apesar disso, acredito nas pessoas, acho que é a única coisa que nos resta”, conclui.

LS

 

https://agencia.ecclesia.pt/portal/vaticano-num-tudo-termina-com-a-morte-a-licao-do-papa-sobre-a-fe-na-ressurreicao/

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