Missa da Ceia do Senhor, presidida por D. Manuel Linda, bispo do Porto

«Só há crise se não houver serviço»

Hoje, fazemos comemoração aniversária daquela ação de Jesus, que a Igreja repete diariamente, a pedido d’Ele mesmo, quando, segundo S. Paulo, ordena duas vezes: “fazei isto em memória de mim”. Não recriamos um simples rito, mas celebramos a própria libertação da humanidade, já intuída no Antigo Testamento e efetivamente realizada no sangue do Salvador: de acordo com a primeira leitura, o sacrifício do cordeiro e a ceia ritual garantiu a libertação do Egipto e, depois dela ter acontecido, comemorava-a num gesto histórico sem fim; no relato da instituição da Eucaristia, que escutamos na segunda leitura, é no Sangue de Cristo que se realiza a nova e definitiva Aliança e se consuma a obra da salvação integral. Por algum motivo, já antes, João Batista designava Jesus como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.

Esta convergência de toda a história da salvação no sacrifício da cruz, tornado sacramento na Eucaristia onde o «Corpo é entregue por nós» e o «Sangue» sela verdadeiramente a nova aliança, constitui o núcleo central da nossa fé. Por isso, permitam-me três ideias sintéticas.

A primeira tem a ver com a própria essência da Eucaristia. Quando Jesus diz que o pão é o seu Corpo e o vinho o seu Sangue, humanamente falando, parece que entramos no domínio do delírio ou do escândalo. Apetecia-nos gritar: “Mas isso é impossível!”. Foi assim que fez a multidão quando O abandonou depois de Ele ter pregado o discurso chamado do “Pão da Vida”, e ter dito frases tais como: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna” (Jo 53-54).

Mas é Jesus quem garante a função da Eucaristia, Ele que levava os discípulos a contemplarem para além da experiência sensível e os convidava a respirarem o ar novo e puro do mistério transcendente: “Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha”. Este é, pois, o sacramento dos sacramentos. Aquele a quem se aclama depois de, a seguir à Consagração, ser interpelada com o brado de “Mistério da fé”. O que traz consequências: da parte dos fiéis, o crédito que lhe é devido deve levá-los a participar sempre na Missa dominical, a não ser por razões muito excecionais; da parte dos celebrantes, a consciência de que o respeito pelo Senhor Jesus se nota e verifica na maneira como se celebra o sacramento, de acordo com as normas da Igreja.

Depois, aquele inciso evangélico que ilumina e projeta luz para a compreensão da Santa Ceia e do gesto do lava-pés, inserido precisamente no descuro da sua celebração: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. A atmosfera geral é de uma forte emoção espiritual, traduzida em gestos de convívio e familiaridade: a memória da ação libertadora do passado, a refeição que congrega os amigos íntimos, a certeza da sua contínua e eterna presença junto dos amigos, não obstante a morte que se ia consumar. Por isto, Judas não se pode inserir neste quadro de amor e saiu, traindo o Mestre e abandonando os colegas.

É que a Eucaristia supõe vida comunitária, familiar, pertença, comunidade. Quando se diz que a Igreja está em crise, para a julgar, o número de praticantes não é o critério fundamental, até porque o Senhor mandou-nos ser fermento e não massa: o que efetivamente preocupa é fazer da Igreja uma «estação de serviço», pedir gestos religiosos e ignorar a vida comunitária, ministerial e sinodal.

Finalmente, um derivado deste contexto de amor: a fraternidade. É detalhado o diálogo entre Cristo e S. Pedro. Este, habituado ao respeito hierárquico por quem era mais que ele, recusa liminarmente que o seu Senhor lhe lave os pés. Mas quando Jesus lhe garante que, se não lhos lavar, não poderá fazer parte do reino de Deus por recusa dos critérios que lhe são inerentes, então já pede uma lavagem total. Compreendeu que fraternidade é serviço. E serviço total, de escravo, como era de escravo o trabalho de lavar os pés aos amigos chegados a casa a convite do dono.

Ora, este é um serviço ou obrigação inerente a todos –repito: todos- os fiéis em Cristo. Quem recusar servir os irmãos não pertence à Igreja, comunidade dos que aderem aos critérios do reino de Deus. Mas, com humildade, neste «seu» dia, permitam-me referir os sacerdotes como aqueles que têm dado um subido exemplo de serviço. Seja no contínuo acréscimo de trabalho, seja na organização da comunidade e na criação e manutenção de obras sociais, entre as quais os Centros Sociais Paroquiais, que tantas preocupações causam, os padres têm dado o melhor de si, não obstante as sempre possíveis fraquezas humanas e a necessidade de uma contínua melhoria. Que os fieis se aproximem dos seus padres para os ajudar, incentivar e demonstrar a afeição que lhe dedicam. Como humanos, eles também precisam de sentir simpatia.

Irmãs e irmãos, celebremos este augusto mistério com amor, pois foi por amor que Cristo o confiou à Igreja. E que este amor se torne serviço: serviço de uns aos outros, do clero aos fiéis e de alguns fiéis que ofereçam as suas vidas para o serviço ministerial em função da comunidade. E sejamos todos mais amigos, mais irmãos.

Manuel Linda, Bispo do Porto

6 de abril de 2023

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