LUSOFONIAS – Ecos no planalto de Angola

Tony Neves, em Roma

A guerra de Angola (há 30 anos) e a batalha contra este Covid têm algo em comum, mas as diferenças são enormes.  Vou tentar explicar o porquê.

Contei o que se passou comigo no Kuito-Bié. Lá só estive um ano, o tempo previsto para ‘inculturação’. Ou seja, ninguém deve cair de para-quedas num contexto novo. É importante conhecer as gentes, a terra, habituar-se ao clima, aprender a língua, enrolar-se na cultura local…e isso nos permite entrar um pouco na alma do povo, fazer-se povo. Depois, fui para o Huambo, numa viagem de avioneta que me deu umas tonturas que acho ainda não ter ultrapassado. O piloto disse-me que era por voar a muita altitude para escapar às bombas anti-aéreas, mas eu acho que foi mais medo da minha parte… Adiante!

Cheguei ao Huambo, uma grande cidade. Era setembro de 1990. A fome era muita e a liberdade quase nenhuma. Tanta gente pululava nas ruas, para trás e para a frente, a mendigar ou a fazer qualquer biscato que permitisse pão para a boca. E tanta insegurança, sobretudo de noite, com assaltos e mais assaltos. São assim os tempos da guerra, sem empregos, sem abastecimentos, com as ligações cortadas para o interior da província de onde deveriam vir os alimentos… Enfim, tragédias que só as guerras conseguem provocar para desgraça do povo, sobretudo dos mais pobres. Salvam-se e enchem a barriga os senhores da guerra, os que com ela lucram aos milhões, banqueteando-se à custa da miséria de quase todos. A guerra é a violação mais frontal dos direitos humanos, mas é de armas na mão que se quer sempre resolver os problemas! Venha lá alguém que me consiga explicar a inteligência destes senhores que decidem mandar os filhos dos outros para as frentes dos combates!

Escrevi do Huambo 52 crónicas (cf. ‘Missão em Angola. 1989-1994’, pp.53-221), em tempo de ausência absoluta de liberdade de expressão. Por isso, não disse muito do que me ia na alma, não tanto por mim, mas para não pôr em risco outras pessoas. Muito do que lá vivi e não escrevi consta no meu ‘diário secreto’ que será publicado quando eu morrer. Para deixar claro que eu tento ser optimista, peço que olhem para o título da última das crónicas, publicada em janeiro de 1995: ‘A Paz vai chegar!’ (p.222)…e ela só chegou em 2002!

Voltemos à desgraça desta guerra civil. O primeiro texto resulta de uma visita que fiz a um campo de deslocados com milhares de pessoas na nossa Missão do Kuando, a uns 15kms do Huambo. Fiquei arrasado quando lá cheguei e vi tantos milhares em cabanas de capim junto à Igreja, apoiados e protegidos pelos missionários que ali viviam. Ainda guardo nos olhos aquelas crianças esfarrapadas e famintas que fotografei e mostrei ao mundo (pp.53-56). Depois, entrevistei a Irmã Generosa que também acolheu na sua Missão do Cubal muitos refugiados da guerra que se juntou à seca naquelas paragens (pp.57-59). Mas também dei lugar à esperança quando contei como foi a Missa de Natal na Chipipa (pp.60-62) ou expliquei como a Irmã Elisabeth se tornou mãe de 40 crianças no Huambo (pp.68-70). Multipliquei intervenções e entrevistas que geraram em Portugal ondas de solidariedade de que o povo mais pobre do Huambo viria a beneficiar, sempre que um avião da Caritas aterrava no planalto (p.71-72).

E não é que os políticos e militares ganharam algum juízo e, com o apoio de Portugal, os líderes da guerra assinaram um protocolo de Paz no Estoril e, a 31 de maio de 1991, todas as armas se calaram? Foram tempos tão lindos, com tanto canto e dança, com tanta gente a rezar. As estradas abriram-se, as famílias reencontraram-se, o pão, a roupa e os medicamentos chegaram, as pessoas começaram a fazer ‘vida normal’ (pp.80-86) e o Papa João Paulo II visitou-nos em junho de 1992, três meses antes de eleições que prometiam democracia, paz e futuro ao povo. Escrevi tantas crónicas de vida, com alegria a sair de cada letra que batia. Acompanhei o Papa em toda a sua visita, quer a Angola quer a S. Tomé, comentando-a para a Rádio Nacional de Angola. No Huambo, ainda ecoam os gritos do Papa: ‘Nunca mais a guerra, Paz a Angola para sempre!’ (pp.119-130). Pois era isso que o povo queria, mas os senhores da guerra preferiram o regresso desta máquina de matar gente. Vieram as eleições, os resultados não foram aceites, não se fez segunda volta das presidenciais e houve um terrível e mortífero regresso ao passado (pp.145-154). A guerra de 1992 a 2002 provocou muito mais vítimas e destruição do que os 30 anteriores anos de guerra, incluindo toda a guerra colonial. Claro que a grande diferença esteve no facto dos combates terem chegado também ao coração das cidades, sendo o Kuito e o Huambo as mais destruídas. Como estive dentro da cidade do Huambo durante todos os combates e mais um ano e meio, falarei dessa tragédia na próxima crónica.

Voltando ao nosso vírus. Ele também faz vítimas, também é covarde nos seus ataques, também vitima mais os mais frágeis, também derruba os incautos e desprevenidos. Mas não é fruto de cálculos humanos, não depende de decisões politico-militares, actua pela calada das infecções, ataca em muitos locais ao mesmo tempo, tem um enorme efeito multiplicador de actores de destruição….

Por isso, não chamemos guerra a isto que agora estamos a viver. É outra coisa, com outras causas, outros cuidados a ter e outras consequências. A grande batalha do Huambo (9 janeiro a 6 de março de 1993) trouxe-me lições de vida que me têm sido úteis nas últimas décadas. E acende algumas luzes para o momento em que vivemos. Veremos…

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