Levi Guerra

Aproximou-se o Natal na Vila. Tornaram-se aparentes as iluminações, escassas e pouco vistosas, a vida da família estava num afã maior próprio da época, e iam soando as canções de Natal que me encantavam Em Águeda nasci. Lá vivi muitos Natais no seio duma família da baixa burguesia e que no comércio tinha a fonte do seu sustento e equilíbrio. Foi feliz a minha infância. Cresci com um irmão e uma irmã. Vivíamos na casa onde todos nascemos e onde estava a loja do comércio, com nossos Pais e Avós maternos. Ao tempo, ainda a II Guerra Mundial não terminara, havia na Terra algumas figuras notadas pelo seu exotismo de presença pública tanto quanto pela realidade aparente da sua pobreza espelhada nos seus trajares. Uma delas era a Preciosa, vendedora ambulante de peixe que todos os dias ia pelas ruas da Vila a anunciar o seu pescado fresco avonde, quase sempre sardinhas e/ou chicharros. Sentava-se, à tarde, sob as ramadas do arvoredo de plátanos existentes no centro da Vila, na berma da rua, canasta do pescado no chão, nas aprazíveis tardes quentes, quando as havia, sem deixar de ser prejudicada no seu negócio pelos Invernos. A Preciosa era pobre. Vivia numa casa térrea na Venda Nova, um bairro da Terra. Talvez tivesse tido a agenesia congénita da mão esquerda e era, por isso, maneta. Sabia bem lidar com o coto de forma eficaz. De rosto afilado e nariz adunco, com rugas a sulcarem-lhe verticalmente as faces, cabelo sempre coberto por um lenço de pano de cor escura, magra, de voz roufenha, de saia lisa e blusa sempre limpa e de cores vistosas, via-me muitas vezes perto de si, a brincar, desde criança, e dava-me atenção devido à curiosidade que eu sempre tinha para ver o pescado. – “O´Menino, vá dizer à Mãezinha que hoje tenho linguados frescos… E eu respondia que sim, e ia dizer à minha Mãe. E, às vezes, Ela comprava. O tempo passou e o negócio da Preciosa continuou. Eu entrei nos estudos no Colégio e perdi o contacto frequente com ela. De vez em quando vi-a. Chegou aquele Outono, sucedido às férias grandes, e deixou de se ver a Preciosa. Ouvi lá em casa que estava com um cancro do útero e não tinha hipóteses de cura. Aproximou-se o Natal na Vila. Tornaram-se aparentes as iluminações, escassas e pouco vistosas, a vida da família estava num afã maior próprio da época, e iam soando as canções de Natal que me encantavam. Chegou o dia da consoada. A tarde foi fria e de baixa luminosidade. A Preciosa e a sua doença, e o seu fim próximo, bailavam no meu espírito diariamente. Imaginava a sua dor, mas não a tinha visitado. Mas nessa tarde, depois de já ter concluído o presépio com os meus irmãos, decidi-me ir visitar a Preciosa, e fui, não sem que antes pedisse uma mercearia a meus Pais, explicando-lhes o que decidira fazer. Sem me obstarem, arranjaram-me um cesto onde levei açúcar, arroz e bolos, e ainda as moedas que tinha no mealheiro que, não sendo muito era o que fora juntando com os tostões semanais que ia recebendo. Saí de casa, subi à Venda Nova, cheguei ao largo em que se erguia a casa, bati à porta entreaberta e ouvi perguntar: – “Quem é?- Sou eu, disse, o seu amigo, neto do Sr. Afonso, lembra-se?” –“ Ó menino! Ó meu menino! Entre, entre! Veio ver-me?! Ó que alegria eu tenho em vê-lo!” –“Ó Preciosa, pois vim visitá-la, saber como está e como se sente e trazer-lhe esta pequenina prenda para si!”-“Ó meu menino! Obrigado, muito obrigado! E chorava. Pois eu estou muito mal, mas o menino trouxe-me uma alegria como nunca senti, acredita?” – Pois sim, disse. Que bom ser assim! Sabe, Preciosa, os meus Pais e Avós, e a doutrina que me foi ensinada, diz que o Menino-Deus está presente de modo especial nas pessoas doentes e que sofrem, e que no rosto das pessoas revela-se mais viva a imagem de Jesus que hoje festejamos! Por isso entendi que vir vê-la foi verdadeiramente como ir a Belém há quase dois mil anos…Veja lá , heim! Ajoelhei-me para a beijar, e beijei-a. Envolviam-na só andrajos e uma coberta tapava-a ali estendida sobre um colchão aplicado no chão térreo e húmido. E aquele cheiro acre e pestilento desprendido das suas entranhas adulteradas, senti-o como o melhor perfume…Saí a chorar. Na rua, passava um bêbado a cambalear, e havia um magote de rapazolas às rizadas…Escapei-me, receoso, pois fora sozinho. E quando, mais à frente, descia a rua principal da Vila, recordo, ia animado duma irresistível alegria, e dei de novo comigo a pensar que ser médico era o que eu queria ser, e fui. Ninguém como o médico para penetrar a grandeza da alma humana nestes seus inevitáveis transes. Apaixonante é viver com compaixão que é partilhar as dores dos doentes, e lhes levar a consolação. A compaixão partilha a dor, e a consolação mata a solidão. Que pobreza maior há que a falta de saúde? Sim, eu hoje associo, com justiça, os enfermeiros, os capelães hospitalares, e todo o pessoal das instituições de saúde a estas vivências, e proclamo o dever que tem de as viver, cada um no plano das suas atribuições. Natal da minha infância! Aquele foi, naturalmente, o mais marcante e inesquecível que vivi em pequeno. Levi Guerra, médico e professor universitário

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