Acácio Catarino

A noite de Natal da minha infância surge, antes de mais, como noite de trabalho prolongado… «Natal da infância e infantilismo da idade adulta» Visto à distância de cerca de setenta anos, a noite de Natal da minha infância (no Casal da Estrada, freguesia e paróquia de Benedita) surge, antes de mais, como noite de trabalho prolongado – «serão» – para os homens e rapazes das oficinas de calçado, enquanto as mulheres preparavam os fritos próprios da quadra. Surge também como noite de contraste entre as famílias abastadas, as remediadas e as mais pobres; estas últimas não dispunham, nalguns anos, de condições para a confecção dos fritos nem para outros «mimos». Todos os anos, uma família abastada, residente na sede da frequesia, expunha o presépio na montra da sua loja comercial, que era visitado por elevado número de famílias; na contemplação do presépio; as crianças sonhavam com o mundo aí simbolizado e que facilmente se projectava, no futuro, como utopia de tranquilidade e paz. Tal mundo era também simbolizado pelo modo de vida dessa família. O Natal era, assim, marcado pela presença da pobreza. Para agravar a situação, era também marcado pelo espectro da guerra – a Grande Guerra; embora distante geograficamente, a guerra era vivida como próxima, através de algumas notícias que iam chegando e, sobretudo, através da recitação do terço pela paz, bem como através do racionamento de produtos alimentares. A «Missa do Galo» constituía o ponto alto da quadra natalícia, particularmente pela reunião comunitária de toda a paróquia, pelo calor humano da noite fria, pela simbologia e sonho inerentes ao presépio paroquial e, ainda, pela participação de jovens que cantavam o «alegrem-se os céus e a terra» com um vigor extraordinário; só nesta «Missa» as vozes do fundo da igreja se sobrepunham a todas as outras. A partir das leituras efecuadas na escola primária, surgiu o contraste entre o Natal, como era vivido localmente, e o descrito pelos intelectuais. Mais verdadeiro ou mais imaginário, e porventura estereotipado, este situava-se noutro mundo e acabou por prevalecer mais tarde. O Natal das carências, das desigualdades e da guerra foi bastante atenuado ao longo dos últimos setenta anos; numa análise mais superficial, até se pode afirmar que se passou do oito para o oitenta; a verdade, porém, é que persistem as carências, as desigualdades e as guerras, e não se vislumbra a sua erradicação. As comunidades cristãs desenvolveram extraordinariamente a acção social, através de elevado número de equipamentos e de outras iniciativas; acontece, porém, que não ultrapassaram significativamente o modelo das misericórdias, contrarias e instituições semelhantes da Idade Média. Os centros sociais paroquiais vieram renovar, sem dúvida, aquela acção e institucionalizá-la em inúmeras paróquias; mas não trouxeram um modelo verdadeiramente novo, pois se limitaram, basicamente, a reproduzir o modelo medieval e a actualizá-lo, nomeadamente, em termos técnicos. Não se introduziu nas paróquias, por analogia, o modelo fraternal e «democrático» das antigas ordens religiosas. Também não se aproveitaram as potencialidades do cooperativismo e do mutualismo, recriados no século XIX, nem as do «desenvolvimento comunitário» dos anos sessenta do século passado nem tão pouco a dinâmica do «desenvolvimento local» aparecida nos anos oitenta, e que perdura continua hoje em dia sem adesão significativa da maioria das paróquias em cujo território está implantado. Que razões «misteriosas» impedem a consciência solidária dos problemas sociais de cada paróquia, baseada no tratamento dos casos atendidos e visitados na sua acção social? Que razões impedem a animação local para a mobilização de recursos em ordem à procura das soluções possíveis? Que razões impedem a promoção de iniciativas não só de natureza social ou cultural mas também económica e de «desenvolvimento integral»? Que razões impedem os cristãos leigos de apresentar propostas de medidas políticas tornadas indispensáveis, face à impossibilidade de solução de problemas com os recursos disponíveis? – A experiência de «desenvolvimento local» e a da intervenção nas diferentes estruturas ainda se encontra fora do horizonte da generalidade das paróquias. A prática do diálogo social entre cristãos, mesmo com posicionamentos diferentes, a existência de grupos de acção social de serviço, a favor de pessoas mais necessitadas, e a de grupos de intervenção nas diferentes estruturas, profissionais e outras, apresentam-se actualmente como indispensáveis nas paróquias, nas dioceses e no plano nacional. Hoje em dia, nós adultos mantemo-nos «infantilizados» perante o Natal. Portanto não amadurecidos nem suficicentemente cristãos. Talvez déssemos um verdadeiro passo em frente se começássemos a preparar-nos, desde já, para que o Natal seja diferente no próximo ano e nos seguintes… Acácio F. Catarino, sociólogo

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