Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor – cardeal-patriarca de Lisboa

Amou-os até ao fim

Caríssimos irmãos e irmãs

Iniciando o sagrado Tríduo Pascal celebramos a Ceia do Senhor, como Paulo a lembrou na primeira narração que temos dela. Parece tão simples e preenche a história inteira – nossa, da Igreja e mesmo de quem não a conheça ainda: «O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim.” Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim.» E prosseguia: «Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha.»

Somos cristãos como memória viva do Senhor Jesus e unicamente assim. Memória viva, celebrada e comungada, para que também por nós repasse o que nos cerca. Por isso mesmo, cada celebração eucarística conclui com um “Ide!”, de Cristo em nós, para chegar a todos.

E é anúncio da morte do Senhor, porque a sua morte foi do tamanho da sua entrega, por nós e para nós. Entrega que, sendo total, como só uma humanidade divinamente preenchida poderia sê-lo, venceu a limitação que a morte nos traz, para ressuscitar na vida que nos dá. Lembremos a propósito esta exclamação de Paulo, noutra das suas cartas, tão viva e contagiante como é: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl 2, 20).

E assim será, até que Ele venha, ou seja, até que a vida crucificada e ressuscitada de Jesus seja universal e patente em toda a largueza do mundo, na quantidade e qualidade que tem, como criação, humanidade, civilização e cultura. Podemos concluir que uma vida verdadeiramente eucarística é a comunhão e expansão da vida oferecida e ressuscitada do Senhor Jesus. Cabe-nos a nós levá-la a toda a parte, sobretudo a tantas situações em que a morte parece sepultar os corpos ou as almas.

O trecho evangélico que escutámos diz-nos que «antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.»

Até ao fim… Ao fim do seu percurso terreno, certamente, como depois terminaria na Cruz, com a oferta total da sua vida, por nós e para nós. Essa mesma que lembramos e celebramos, não como quem a repete mas como quem a aprofunda e assimila sempre mais.

Não devemos dizer que celebramos ou participamos em muitas Missas, porque existe apenas aquela que o Senhor assinalou na Ceia e realizou na Cruz. Devemos dizer, isso sim, que não deixamos de celebrar e participar na única Missa de sempre, porque como os antigos mártires e os que agora arriscam a vida para participar nela, não podemos viver sem a Eucaristia.

Mas demos à expressão um sentido mais do que temporal, porque a narrativa prossegue com o lava-pés aos discípulos e a ordem de o fazermos igualmente uns aos outros. Significará que o fim é também aprendermos com Jesus a servirmos com humildade e prontidão os nossos irmãos e a fazermos disto mesmo a finalidade e a eternização das nossas vidas, porque «o amor jamais passará» (1 Cor 13, 8).

Assim insiste o evangelista mais adiante, no mesmo “discurso de despedida”: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 12-13).

O amor aos irmãos não era novidade na tradição bíblica. Novidade sim era atingir este extremo e tocar tal fim, de amar como Jesus nos ama e dar a vida por quem se ama. Como de novo João lembrará na sua primeira carta: «Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1 Jo3, 16).

Amar até ao fim… Nada menos do que isto significa e nos exige a Ceia do Senhor, anunciando o seu corpo entregue e o seu sangue derramado, como aconteceria na Cruz, último sinal do amor de Deus por nós. Não é comunhão ocasional ou desatenta num momento chamativo duma cerimónia entre outras. É expressão autêntica do compromisso em atingir o mesmo fim de salvar-se salvando os outros, pela graça de Quem desse modo nos amou e salvou primeiro.

Assim compreendemos como tantos cristãos e cristãs que hoje veneramos nos altares foram profundamente eucarísticos, para desse modo ganharem de Cristo a graça dum amor maior do que todas as dificuldades que surgissem. Foram até ao fim e agora estão com Cristo a ajudarem-nos na mesma senda que trilharam. Mesmo que estreita seja a senda, como nos avisou também Jesus: «Quão apertado é o caminho que conduz à vida…» (Mt 7, 14).

Levemos a advertência muito a sério. Até com a seriedade que as circunstâncias atuais nos impõem, na vida do mundo mais próximo ou mais afastado e mesmo da Igreja como deve ser.

Na verdade, quando assistimos a esta “guerra mundial em pedaços”, como o Papa Francisco designa a soma de conflitos que não se resolvem e vão em crescendo, martirizando tantas pessoas e países inteiros; quando encontramos tanta dificuldade em resolver problemas básicos de habitação garantida, alimentação suficiente, educação bastante, salário digno, ou saúde para todos; ou mesmo quando na nossa vida de Igreja, pessoal ou comunitária, deparamos com problemas que nunca deveriam existir ou ter existido… Quando tudo isto e muito mais se acumula de negativo e contraditório com boas vontades e boas ações, que felizmente não faltam, concluímos que nos amamos pouco ou não o fazemos até ao fim.

Porque amar até ao fim, mesmo na Cruz que nos abre à ressurreição das vidas, significa um interesse permanente e efetivo pelo bem dos outros e uma compreensão da existência como dádiva, que só assim se realiza plenamente, quando faz do bem dos outros o seu próprio bem.

Porque amar até ao fim é nunca deixar de o fazer, sem desistência nem cansaço, como Cristo foi e nos permite ser, advertindo também: «Quem permanece em mim e Eu nele, esse dará muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5).

Uma vida eucarística, em suma, não episódica mas constantemente levada e aprofundada, recebendo e partilhando o corpo e sangue de Jesus, tornados nossos para chegarem a todos. – Seja este o maior fruto do Tríduo que começamos, para nunca desistirmos no caminho do bem!

De seguida, o rito do lava-pés dirige-se hoje a voluntários internacionais que trabalham generosamente na preparação da Jornada Mundial da Juventude. Vieram dos cinco continentes, para também chegarem a este confim ocidental da Europa e fazer dele um lugar para os jovens do mundo inteiro. Também deste modo irão até ao fim. – Graças a Deus por eles, graças pelo que nos dão a nós!

Sé de Lisboa, 6 de abril de 2023

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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