Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa no Domingo de Ramos

A vitória de Deus

A entrada de Jesus em Jerusalém, naquele dia de hoje, correspondeu imediatamente às antigas expetativas de muitos, alvoroçados pelo que ouviam dizer dele e do que fizera. Na verdade, tanto se contava, há dois ou três anos já, da Galileia à Judeia, tão ao encontro de antigas profecias… E o que Ele mesmo dissera, ecoando palavras e promessas que a tradição guardava, dos antigos reis aos profetas, deixando entender que nele se cumpriam…

Por isso irrompiam as exclamações. Ali vinha Ele, montado num jumentinho, como se profetizara do Messias Rei que chegaria: “Hossana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino do nosso pai David que está a chegar. Hossana nas alturas!” (Mc 11, 9-10).

Compreende-se e aceita-se que assim fosse, sobretudo quando a situação daquele povo era exatamente o contrário. Sob um império pagão que o oprimia, à mercê de governadores cruéis como Pilatos, tudo contradizia o que fora séculos atrás, jamais esquecidos. Isso mesmo acicatava a esperança de muitos e até provocava a revolta de alguns, que de tempos a tempos se insurgiam contra o domínio romano.

Facilmente encontravam seguidores. Faziam-no mesmo em revolta armada, duramente reprimida depois. Anos mais tarde, foi uma dessas revoltas que levou os romanos a arrasarem o templo, como Jesus avisara. E não foi a última, até à destruição da cidade inteira, no século seguinte… Talvez haja uma referência a tais despistes messiânicos na conhecida frase de Jesus: «… o Reino do Céu tem sido objeto de violência e os violentos apoderam-se dele à força» (Mt 11, 12).

A confusão existia, mesmo no círculo dos discípulos. Dias depois, no Getsémani, ainda aconteceria assim, aquando da prisão de Jesus: «Um dos que estavam com Jesus levou a mão à espada, desembainhou-a e feriu um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe uma orelha. Jesus disse-lhe: “Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada”» (Mt 26, 51-52). Lição difícil de aprender…

Como igualmente sabemos, os próprios romanos suspeitavam das intenções de Jesus e Pilatos condenou-o por isso, como atesta o título que lhe mandou pôr na cruz; e mesmo que Jesus rejeitasse qualquer conotação bélica ou política da sua realeza.

Mas era assim a expetativa vulgar. Não a intenção de Jesus, como nunca o fora, aliás. Lembramos o que sucedera tempos antes, quando o quiseram fazer rei, depois da multiplicação dos pães: «Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se de novo, sozinho, para o monte» (Jo 6, 15).

Mas, não sendo essa a intenção de Jesus, era bem a expetativa de muitos. Terá sido até o motivo da deceção do Iscariotes, que passou de discípulo a traidor. – E também doutros, que o aclamaram com ramos e daí a dias lhe pediram a morte no pretório de Pilatos? Fica a pergunta, certamente para eles, mas não só para eles…

 

 

Na verdade, não foi apenas naquela altura que aconteceram despistes e deceções em relação a Jesus e ao que esperavam dele. Dois mil anos de Cristo no mundo, como a ressurreição lhe alargou a presença, acrescentam numerosos exemplos àqueles primeiros dias – outros tantos alertas para nós.

Não faltaram nem faltam situações de perseguição, em que os mártires testemunham o modo vitorioso de Cristo, ganhando a vida que com ele entregam. Mas noutros sobrevém a deceção duma vitória meramente humana e pouco duradora. Como não faltam situações de torpor espiritual; ou de revestimento, assim dito, “cristão” de sociedades e épocas, em que o contraste evangélico se dilui e ofusca. – Como se o fim dos tempos viesse cedo demais, sendo tanto o que falta ultimar em Cristo! Este engano, tão repetido, ontem e ainda hoje, deu sempre azo a frustrações e abandonos. Às vezes com boa vontade, mas não com vontade convertida.

Primeiro, o Evangelho há de chegar a toda a terra – alargada aos confins do mundo inteiro. Mundo que espiritualmente ultrapassa qualquer geografia, para tocar o mais profundo e decisivo da alma de cada um. E falta tanto, sobretudo porque muitos que o escutaram não tiveram “ouvidos para ouvir”. Lembremos o aviso de Jesus: «Este Evangelho do Reino será proclamado em todo o mundo, para se dar testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim» (Mt 24, 14). Uma meta que havemos de alcançar, se convertermos o desejo em missão.

Expetativas mundanas e expetativas divinas, realmente tão diferentes. De Deus há, isso sim, a vontade permanente de nos reaver como filhos. Para tal, teve de fazer da sua própria Palavra criadora uma Palavra redentora, que superasse na humanidade e por dentro dela, toda a distância que alongámos d’Ele. Assim aconteceu em Cristo, que se fez um de nós para nos fazer de Deus.

 

Caminho tão difícil, que passou pela morte, para a preencher de vida, sendo essa a vitória de Deus. Essa sim era o último inimigo a vencer – não os romanos ou outro que fosse, para um messianismo demasiado fácil, como tantos esperavam com aquelas aclamações dúbias e inconstantes.

Nos dias que se seguem, meditaremos de novo e ainda mais nos derradeiros que Jesus passou na terra, para que tudo se ultimasse nele, finalmente nele e ao seu único modo. Em tempos tão difíceis como estes, entre tanto sofrimento passado e tanta interrogação para o futuro, fixemo-nos na cruz onde expirou, para que o seu Espírito se espalhasse em toda a terra, como vários sinais hoje o confirmam. Assim os oferece a abnegação de muitos e assim os reconhecemos gratamente nós.

Não os procuremos por de fora, mas aí mesmo onde se somam diariamente gestos solidários, saúdes cuidadas, solidões acompanhadas e trabalhos mantidos. Em tudo o que houver de vida entregue, aí mesmo a cruz triunfa agora. A cruz de Cristo, que salva a cruz do mundo.

– Era a única vitória que Deus queria, como Jesus a conseguiu e o Espírito a difunde. Só esta perpetuará os ramos e os hossanas deste dia!

 

Sé de Lisboa, 28 de março de 2021

D. Manuel Clemente

Cardeal-Patriarca

 

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