Homilia do cardeal de Leiria – Fátima na Missa Crismal 2021

É bom e belo reencontrarmo-nos aqui como irmãos, nesta Quinta Feira Santa, em clima de cenáculo, para voltar sempre de novo às origens do nosso ministério. Com fraterno afeto saúdo-vos a todos e cada um do íntimo do coração, agradecendo a vossa presença que muito me alegra e conforta. Em nome pessoal, do presbitério e de toda a Diocese, dirijo uma saudação de particular congratulação aos presbíteros que celebram o jubileu da sua ordenação sacerdotal. O próximo dia 25 também será de júbilo pela ordenação dum novo padre. Na comunhão dos santos temos presentes os sacerdotes que não puderam vir por motivo das restrições sanitárias e fazemos memória viva e grata daqueles que, ao longo do ano, partiram para a casa do Pai.

As leituras da Palavra convidam-nos a fixar os olhos em Jesus que proclama a sua missão messiânica de anunciar o Evangelho da redenção na sua palavra e nos sinais salvíficos e cuja continuidade Ele confiou, de um modo específico, ao ministério dos apóstolos e seus sucessores, bispos e presbíteros. O sacerdócio ministerial foi instituído por Jesus na última ceia quando disse: “Fazei isto em memória de mim”. A partir deste mandato de celebrar o memorial desejo oferecer uma meditação sobre a espiritualidade eucarística do padre.

A configuração íntima com o mistério de Cristo celebrado na Eucaristia

Coloquemo-nos no contexto da ceia do adeus que tem o caráter de testamento. Jesus concentrou tudo o que disse e fez na oferta total de si mesmo para ficar de modo permanente connosco e para nossa salvação. Este é o grande legado que Ele nos deixou, o dom de si mesmo antes da sua partida para o Pai. O Ressuscitado permanece junto dos seus com todo o seu infinito amor acima do qual não é possível pensar outro maior. Quando diz “isto é o meu corpo entregue por vós”, “isto é o meu sangue derramado por vós”, estas palavras significam: eu estou convosco e para vós como alimento e bebida da vida nova e eterna.

Eis porque a celebração da eucaristia é o centro e o vértice de toda a vida da Igreja. E também o centro e vértice da vida daqueles a quem foi confiado o mandato de a presidir. Chama-os a fazer dela o coração pulsante do seu ministério no duplo movimento de sístole e diástole; a unificar a vida espiritual à volta do mistério eucarístico acreditado, celebrado, adorado e vivido.

Bispos e presbíteros presidem à celebração eucarística “in persona Christi”. Por isso, a presidência não pode ser entendida de modo meramente funcional. Quando o sacerdote pronuncia as palavras “isto é o meu corpo; isto é o meu sangue”, não as pronuncia em nome próprio. Como servidor de Cristo, ele empresta a sua pessoa, os seus lábios, a sua voz a Jesus Cristo. É o próprio Cristo a falar e agir através dele. Por isso e para isso, o sacerdote deve procurar quotidianamente a amizade e a comunhão com Cristo. Nós, sem Ele, nada podemos fazer: “sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 15).

“Fazei isto em memória de mim” não se limita ao rito celebrativo. Estende-se à existência e à ação pastoral, a assumir na própria pessoa e ministério a atitude de Jesus, isto é, fazer da sua vida e do ministério um dom sacrificial, uma oferta de si mesmo para Deus e para os outros. Ofereçamo-nos, pois, a Deus, cada dia, com todas as ações do nosso ministério. Esta oferta é a alma e o fogo da caridade pastoral.

A liturgia da ordenação presbiteral é eloquente ao dizer: “Toma consciência do que virás a fazer, imita o que virás a realizar, conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor”. Tudo isto que acabamos de refletir exprime a dimensão mística do nosso ministério. Devemos lembrar-nos sempre de que é Cristo quem preside; é d’Ele a iniciativa e o protagonismo; a Ele devemos estar unidos de alma e coração e procurar que todos se voltem para Ele.

Uma celebração autêntica depende da atitude interior daquele que preside. Esta atitude constitui um aspeto primário da espiritualidade sacerdotal. Compreende-se imediatamente se o sacerdote está presente de alma e coração naquilo que realiza, quando deixa transparecer a sua fé e o seu amor a Jesus, a consciência de estar envolvido com toda a assembleia pelo seu admirável mistério de amor e misericórdia.

A escuta orante da Palavra a anunciar

O ministério da presidência em nome de Cristo mostra que e como está intimamente vinculado ao anúncio da Palavra. Está chamado a servi-la, a atualizá-la para o povo de Deus, como mestre e testemunha. Uma realidade tão entranhada na missão do sacerdote não pode deixar de impregnar a sua espiritualidade.

São João Paulo II deixou-nos palavras ilustrativas sobre esta relação: “Só permanecendo na Palavra, o presbítero se torna perfeito discípulo do Senhor… Ele deve ser o primeiro crente, com plena consciência de que as palavras do seu ministério não são suas mas d’Aquele que o enviou. Desta Palavra não é dono; é servo que tem permanente necessidade de ser evangelizado” (PDV 27).

O mestre que anuncia tem de ser primeiro ouvinte e discípulo assíduo da Palavra, precisa de a escutar e deixar crescer interiormente. Deste modo, quando prega, a Palavra ressoa para ele como discípulo de modo a renovar a sua fé e confirmar a sua adesão a Cristo. “O sacerdote que não escuta antes de transmitir… é, no fundo, um traficante de mercadoria deteriorada. O serviço sacerdotal ou se baseia na escuta pessoal ou degenera em mero mecanicismo” (Greshake).

Segundo um exegeta protestante não basta viver a assiduidade com a Palavra. É preciso rezá-la e anunciá-la de modo a suscitar a oração: “Pregar para que a gente reze. Pregar de modo a inspirar a oração de quem está à nossa frente. Uma verdadeira homilia mostra-se como tal, se ela mesma pode transformar-se em oração” (J. Heschel).

A homilia é serviço ao Evangelho e ao povo de Deus, mas também fonte de vida espiritual. Deveríamos poder dizer com Jesus: “Eu guardo a sua Palavra (de Deus)” (Jo, 8, 55). Desde logo, devemos ter consciência de que a finalidade da pregação é levar o ouvinte ao encontro com Deus santo e misericordioso. O risco que corremos não é só o da improvisação ou pouca preparação. É transmitir uma palavra sem energia espiritual, de maneira superficial, amorfa, que não chega ao coração dos fiéis, mas se esvazia rapidamente.

Recordemos a entrega do evangeliário na ordenação diaconal, que sintetiza a espiritualidade própria do serviço da Palavra: “Recebe o Evangelho que tens a missão de proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas”.

O serviço da comunhão fraterna e do cuidado recíproco

O “Fazei isto em memória de mim” inclui o “tomai e comei”, “tomai e bebei”, quer dizer a comunhão, finalidade última da Eucaristia. Cristo ressuscitado dá-se a nós não só na intimidade, mas também para fazer da Igreja Corpo de comunhão, como S. Paulo exprime: “Pois que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão” (1 Cor 10, 17). Na expressão de Santo Agostinho, a eucaristia é “sacramento de unidade e vínculo de caridade”.

Esta compreensão tem consequências na conceção do sacerdócio ministerial como serviço de unidade e comunhão eclesial, chamado a viver e promover a espiritualidade de comunhão. Esta é fundamental, antes de mais, para realizar a fraternidade do presbitério que deriva do sacramento da ordem e é alimentada pela eucaristia. Ajuda a crescer no acolhimento, na amizade e no apoio recíprocos, no diálogo e na partilha, na oração e no trabalho em equipa. Como será bom que o nosso povo possa dizer dos seus padres o que se dizia dos primeiros cristãos: “Vede como eles se amam”!

Esta espiritualidade deve ser também a alma do serviço à unidade e fraternidade das comunidades. Se o sacerdote preside “in persona Christi”, não lhe basta celebrar só os ritos sagrados; deve também viver a eucaristia em comunhão solidária com todos os que carregam sobre si as pesadas cruzes das suas vidas. É chamado a ter a mesma paixão de Deus pelo seu povo, os mesmos sentimentos de misericórdia, compaixão e ternura, manifestados na vida terrena de Jesus, “para que todos sejam um” e se amem como irmãos. É esta atitude que leva a pôr-nos em sintonia com os pensamentos de Cristo, a ver com os seus olhos, a escutar com a sua compreensão, a comover-se com as suas entranhas de misericórdia, a chorar com as suas lágrimas, a amar com o seu coração, a acarinhar com o afeto das suas mãos. A amizade com Jesus dá-nos a coragem e a audácia missionária para o anunciarmos.

Grande e admirável mistério e beleza encerra o nosso ministério! O padre é, na verdade, um tecedor dos fios de comunhão fraterna num trabalho quotidiano, paciente e perseverante, de acolhimento, de escuta, compreensão, acompanhamento, de cultura de encontro e diálogo entre todos. Isto é espiritualidade incarnada e riqueza humana! Quem, como o padre, tem um campo de relações tão ricas e belas com crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, doentes, pobres, famílias e feridos da vida? O cuidado de uns pelos outros impõe-se cada vez mais como necessidade pessoal e comunitária para formar comunidades fraternas onde todos se sintam irmãos.

Caros padres, renovando as nossas promessas peçamos ao Senhor, por intercessão de Maria, Rainha dos Apóstolos, e de Santo Agostinho, a graça da fidelidade criativa nestes tempos que parecem de escassa fecundidade. Que a nossa oração seja verdadeiramente apostólica, isto é, que prepara e acompanha os nossos trabalhos. Das necessidades e carências brota a oração de petição; da alegria dos frutos irrompe a ação de graças. Peçamos humildemente ao Senhor com Santo Inácio de Loyola: “Não permitais que eu me separe de Vós”!

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