Homilia do bispo do Funchal no Domingo de Ramos

“Na verdade, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39)

Como tantas outras crucifixões (cf. Lc 13,1), também a de Jesus  despertou nos habitantes de Jerusalém a curiosidade, o gosto sórdido de ver outros a morrer. Naquela tarde, foram muitos os personagens que desfilaram por perto da cruz do Senhor. S. Marcos faz referência a vários deles, com rosto mais ou menos definido. Neles nos podemos, também nós, encontrar. Sobretudo, esses rostos, essas atitudes perante Jesus são oportunidade para nos questionarmos sobre a nossa própria atitude diante do Senhor Crucificado.

Pilatos, o governador decidido a disciplinar aquela região através do medo, crucifica Jesus cedendo às pressões dos responsáveis judeus: afinal, que valor tinha um pobre carpinteiro de Nazaré, diante da possibilidade de mais uns momentos de “paz armada”, ainda para mais, se essa condenação era vontade do Sinédrio, dos responsáveis judaicos? Pilatos, o governador incapaz de reconhecer e acolher a verdade; o político que cede às pressões, que não hesita em tomar as decisões mais populares.

São Marcos faz também referência aos soldados, mercenários a soldo do Império, profissionais da guerra, que não perderam a oportunidade de uns momentos de diversão à custa daquele homem que lhes tinha sido entregue para ser crucificado, tratando-o como um “ninguém”, um objecto sem dignidade. A ironia é evidente: como é que um pobre galileu se atrevia a dizer-se rei? Eles sim, serviam o Imperador romano, verdadeiro Senhor de toda a terra!… de tal modo que não hesitaram em encenar uma coroação e mesmo uma adoração daquele condenado — um manto de púrpura, uma coroa de espinhos, a saudação ao rei falhado, o cuspo na face e a adoração fingida… Um joguete nas suas mãos. Mas S. Marcos não deixa de evidenciar a ignorância dos homens diante da Sabedoria de Deus: sem o saberem, diante deles, encontrava-se, de facto, o Rei e Senhor de toda a terra.

No caminho para o Calvário, os soldados requisitam um homem para ajudar a carregar a cruz. “Passava por ali, vindo do campo”, diz S. Marcos (15,21). Sabemos que, depois, este homem se tornou cristão — Marcos diz que era “pai de Alexandre e de Rufo”, personagens suficientemente conhecidos dos cristãos de Roma para dispensarem outras referências. Sabemos que este Simão era originário de Cirene (Cireneu), uma cidade situada na actual Líbia: era, portanto, um imigrante agricultor. Foi requisitado: foi forçado a partilhar o peso da cruz no caminho para o Calvário. Uma tarefa que, hoje, qualquer um de nós gostaria de realizar, mas que aquele homem fez porque foi obrigado.

Encontramos ainda os dois ladrões, crucificados na mesma ocasião. S. Marcos diz-nos, apenas, que “lançavam ultrajes”, fazendo coro com a maioria dos que passavam. S. Lucas recorda o arrependimento de um deles (a tradição dá-lhe o nome de “Dimas”), no último momento, e a promessa do Paraíso que Jesus lhe fez (cf. Lc 23,39-43; Mt 27,44) — o ladrão que, partilhando o sofrimento de Jesus e entregando-se nas suas mãos, recebeu a promessa da vida.

Junto da cruz estão também “os que passavam”. Muitos deles teriam estado, como nós hoje, aclamando o Senhor ao entrar na Cidade, com Hossanas e ramos de oliveira. Agora, insultam-no: “Salva-te a ti mesmo!” (Mc 15,30). Para estes homens e mulheres, a credibilidade de Jesus é dada pela capacidade de se salvar a si mesmo antes de pensar na salvação dos demais: “dizias que eras capaz de destruir o Templo e de o reedificar em três dias, e não és sequer capaz de te salvar a ti mesmo!”. Pensam como, ainda hoje, a grande maioria: “quem não olha primeiro para si, não é capaz de, depois, salvar os outros”. São homens e mulheres que não se apercebem do momento único que estão a viver, nem concebem que alguém se possa esquecer de si para se entregar totalmente ao serviço do próximo. São transeuntes que passam, indiferentes, pela cruz do Salvador, sem se deixarem interrogar por ela, distraídos pelo quotidiano das suas vidas — egoístas que procuram construir a sua vida sobre o egoísmo.

Diante da cruz de Jesus encontramos ainda os partidários dos Sumo-sacerdotes e dos escribas. Eles, os conhecedores das Escrituras, que, ironicamente, são incapazes de reconhecer o momento em que Palavra de Deus se realiza. São incapazes de reconhecer o Messias esperado, que está ali, diante deles; incapazes de acolher o rei de Israel que se encontra de braços abertos, no trono real da cruz. E clamam: “O Messias, o rei de Israel, desça agora da cruz, para vermos e acreditarmos nele!” (Mc 15,32). O conhecimento das palavras fechou-os ao encontro com a Palavra!

Ali estão, ainda, algumas mulheres. São o que resta dos discípulos. Os homens fugiram, cheios de medo. Elas permanecem, ainda que à distância. Conhecemos o nome de algumas: Maria de Magdala; Maria, mãe de S. Tiago Menor; Salomé… “E muitas outras”, diz S. Marcos. Durante a vida pública do Senhor, seguiam Jesus, serviam-no, e com Ele subiram a Jerusalém. Acompanham-no até ao fim, e irão, depois, ser as primeiras testemunhas da ressurreição.

Jesus, abandonado por todos nos momentos finais — no momento da luta decisiva, da “última tentação”!

Mas eis que um homem, um soldado romano, comandante de um grupo de 100 homens, um “centurião”, no meio de toda esta terrível cena, se deixa interpelar por aquilo que está a acontecer. Ele está “frente” a Jesus. Possivelmente, deixou que o seu olhar se cruzasse com o Crucificado. É ele — este homem que faz parte da multidão e do mundo dos pagãos — que se deixa conquistar e transformar por aquele condenado. É ele que percebe que na humilhação, no abaixamento daquele Crucificado, naquele momento e naquele lugar de sofrimento e ignomínia, tinha lugar a revelação maior do amor de Deus, a salvação do mundo e da história.

É ele que, mesmo que sem perceber totalmente o alcance das suas palavras, é capaz de realizar a profissão de fé perfeita e plena: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39). É ele, este centurião, que se tornará doravante o modelo de fé para quantos se deixam interpelar pelo Crucificado.

“Verdadeiramente, este crucificado é o Filho de Deus!”. A cruz deixou de ser sinal de morte, de vergonha, de maldição. Transformou-se na cruz gloriosa porque nela se manifestou plenamente o amor de Deus por nós e por toda a humanidade, de todos os tempos e lugares.

Se nós estivéssemos presentes em Jerusalém, naquele dia!… Que atitude é, de verdade, a nossa diante de Jesus crucificado? Como nos deixamos interpelar por este amor de Deus, assim manifestado? Peçamos ao Senhor que, hoje, e ao longo de toda esta Semana Santa,  toda a verdade do nosso ser acompanhe as palavras daquele centurião romano: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus”!

Sé do Funchal, 28 de março de 2021

D. Nuno Brás

Bispo do Funchal

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