Homilia do bispo do Funchal na Missa da Ceia do Senhor

“Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13,1) — deste modo iniciava o evangelista S. João o relato da Última Ceia que acabámos de escutar.

  1. A questão é de amor. Mas não daquilo a que nós erradamente chamamos “amor”, cheio de egoísmo. Para S. João, o amor como que resume toda a vida de Jesus. Não espanta portanto que o mesmo evangelista, tempos depois, tenha resumido com essa mesma realidade o próprio ser de Deus: “Deus é amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Amor é a vida de Deus. Ou seja: depois de estar, de viver com Jesus e, sobretudo, depois de viver o momento da cruz, S. João não hesita em retirar essa conclusão que podemos considerar como “revolucionária”, e que marcará, para sempre, a compreensão que nós, seres humanos, temos de Deus.

Que Deus tivesse amor ao seu povo, já Israel o tinha compreendido. Que Deus criasse tudo quanto existe como realidade boa, já era afirmado desde as primeiras páginas da Escritura. Mas que Deus fosse amor; que o seu ser fosse amor; que Ele não pudesse ser outra coisa senão amor, isso apenas foi perceptível a partir da cruz de Jesus Cristo. Essa é a marca distintiva do cristianismo.

E, assim, aqueles que vivem com Deus são os “amados” (Ἀγαπητοί), aqueles que participam do ser de Deus que é amor: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor”, diz ainda S. João (1Jo 4,7-8). “Amados”: esse é, nos escritos de S. João, o novo nome dos discípulos. É, verdadeiramente, uma nova identidade que o ser humano passa a ter e que nos caracteriza: amados por Deus.

 

  1. Mas S. João afirma que este amor que ele próprio experimentou é um “amor até ao fim”. Que nos quer dizer S. João com este “até ao fim” (εἰς τέλος)?

Podemos dizer que se trata de uma atitude de Jesus que marcou a sua vida do início até ao momento em que, na cruz, exclamou: “tudo está consumado!” (Jo 19,30). Jesus amou os discípulos desde que nasceu até à sua morte. Toda a sua vida foi um acto de amor. Foi por amor que o Verbo se fez carne. Foi por amor que escolheu os discípulos. Foi por amor que mudou a água em vinho; que curou o cego; que ressuscitou Lázaro; que celebrou com os seus a Última Ceia e lhes lavou os pés; e, por fim, foi por amor que morreu na cruz e ressuscitou.

Mas podemos — e devemos — ir mais longe. “Até ao fim” quer também dizer: “completamente”, sem falha alguma, entregando toda a sua vida àqueles que ama, sem nada reservar para si, sem qualquer ponta de egoísmo. Amou-os até ao máximo em que é possível amar, e do modo em que apenas Deus pode amar: de uma forma perfeita, completa. Ele próprio o disse: “Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida pelos amigos” (Jo 15,13).

E o gesto do “lava-pés” é sinal disso mesmo: é a explicação e antecipação, através de um gesto simbólico realizado durante a Última Ceia, do que haveria de suceder no dia seguinte, na cruz. “Se não te lavar os pés, não terás parte comigo”, diz o Senhor a Pedro. O mesmo é dizer: se não deixares que te salve na cruz, não terás parte comigo. E ao ladrão arrependido: “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

 

  1. Mas S. João afirma também que Jesus “amou os seus”. Quem são estes que Jesus amou? São aqueles discípulos que Ele chamou no início da sua vida pública; a quem convidou para partilhar o seu quotidiano como embrião de Igreja (Jo 1,35-44); que presenciaram os sinais por Ele realizados — Judas incluído; que, no momento da Paixão, não foram capazes da fidelidade; aqueles que Jesus voltou a encontrar depois de ressuscitado e a quem enviou como o próprio Pai O tinha enviado (Jo 20,21). São aqueles que lhe pertencem.

Mas, também aqui, podemos e devemos ir mais longe. Os “seus” são muitos mais que aqueles reunidos na Última Ceia. Os “seus”, aqueles que pertencem a Jesus, são todos os seus discípulos: “Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eram teus e Tu mos deste, e eles guardaram a tua palavra […]. Não peço apenas por estes, mas também por aqueles que acreditam em mim, por meio da sua palavra” (Jo 17,6.20).

Os “seus” somos nós que hoje lhe pertencemos, e todos quantos, até ao fim da história acreditam, quer dizer: quantos se deixam moldar pela sua palavra.

Somos aqueles que o Senhor ama “até ao fim”. Somos os “amados” por Ele. E como se mostra esse amor até ao fim que Jesus tem por cada um de nós, com a mesma intensidade e plenitude que àqueles Doze? Mostra-se, certamente, na cruz, quando Ele assume a nossa morte “até ao fim”, a ponto de dizer: “Tudo está consumado”. Mas mostra-se igualmente, e com não menos intensidade, naquele sacramento que, em cada tempo e lugar, torna presente a cruz de Jesus: a Eucaristia. Sim: o Senhor ama-nos de tal forma que permanece connosco. Tornou-se alimento, pão da vida, presença verdadeira e real para que nunca nos possamos separar dele.

  1. Mas os “seus”, aqueles que o Senhor ama “até ao fim”, estão no mundo. Sabemos que, em S. João, a palavra “mundo” (ἐν τῷ κόσμῳ) adquire dois sentidos: o mundo que se opõe a Deus e o mundo que Deus ama e quer salvar: “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito” (Jo 3,16).

Os discípulos do Senhor estão no mundo. Estamos nós no meio do mundo. Vivemos nele. É neste “mundo dos homens” que trabalhamos; é nele e com ele que nos tornamos “humanos”. É esse mundo que há-de receber o amor que brota da Eucaristia. É ele que há-de ser transformado pelos cristãos, a partir deste amor recebido e vivido à volta da mesa que Jesus dispôs para nosso alimento.

A Eucaristia — quando, ao celebrarmos, também nós nos sentamos à mesa do Senhor e comemos o seu Corpo e bebemos o seu Sangue — a Eucaristia afirma-nos a presença do Senhor connosco, ao nosso lado, em nós.

É por isso que não a podemos nunca dispensar. A Eucaristia é o nosso alimento, alimento de vida. E, por isso, não vemos a hora em que, de novo, a possamos celebrar todos, já sem os media como intermediários, mas presencialmente, uns com os outros. É também questão de sobrevivência!

Enquanto isso não é possível e nos vemos obrigados a este “jejum eucarístico”, celebremos a Páscoa do Senhor na certeza de que Ele está connosco e nos quer com Ele. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”.

 

Sé do Funchal, 9 de abril de 2020

D. Nuno Brás, bispo do Funchal

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