Homilia do bispo do Funchal na Celebração da Paixão

Foto Jornal da Madeira

Saiu para o chamado lugar do Calvário, que em hebraico se diz Gólgota

1. “Lugar do Calvário”, ou “lugar do crânio”  — em hebraico “Gólgota”: os quatro evangelistas são concordes sobre o local onde foi erguida a cruz do Senhor. É, certamente, uma referência geográfica precisa e conhecida naquele tempo, ainda que, ao longo dos séculos, tenha sido objecto de muitos debates.

No entanto, hoje, nesta celebração de Sexta-feira Santa, o que nos importa não são tanto as discussões sobre onde se situava o lugar em que o Senhor foi crucificado. O que nos importa é antes o seu significado salutar: importa-nos perceber como, na nossa vida cristã, nos devemos confrontar com a cruz salvadora, e como podemos deixar que aquele acontecimento histórico e as narrações que no-lo fazem conhecido sejam portadores de sentido e de vida para a nossa existência e para a existência do mundo. O que nos importa é deixar que Deus faça Páscoa connosco e passe pela nossa vida.

2. O modo como Jesus viveu a sua condenação permaneceu na memória de muitos: só esse modo único de caminhar para a cruz e de viver este castigo máximo, pode justificar que lhe tenham sido aplicados os textos do Profeta Isaías, escritos muitos séculos antes, anunciadores do Servo de Deus que se oferece pela salvação do mundo. Acabámos de escutar um deles como Iª leitura: era uma verdadeira descrição do Crucificado.

O seu rosto, dizia-nos Isaías, estava desfigurado, de tal modo que “tinha perdido toda a aparência de um ser humano”. Desfigurado pela flagelação; desfigurado pela coroação de espinhos e pelos maus tratos sofridos; mas  (sobretudo) desfigurado pela desumanidade do pecado que nele se encerrava. Porque nele toda a desumanidade encontrava corpo e expressão.

Nele não existia beleza que pudesse atrair. Porque a beleza atrai. Mas ali, naquele crucificado, nem sequer a comiseração: era “desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele diante de quem se desvia o rosto”. Ali, naquele Crucificado, se encontrava o feio em absoluto.

Desfigurado e desacreditado. Tudo o que era ainda uma réstia de fé; tudo o que era ainda um pouco de confiança em Deus salvador, se tinha perdido: Jesus, que falara do Pai como ninguém, ali estava, abandonado por Deus, condenado à cruz, sem ninguém que O defendesse. Nele se concentrava toda a falta de fé: ali se encontrava a certeza dos ateus que afirmam a não existência de Deus; ali estavam as dúvidas dos agnósticos; ali se reuniam as nossas hesitações de crentes.

“Um homem castigado, ferido por Deus e humilhado”: todo o mal, todo o pecado, toda a miséria do mundo pesavam sobre os ombros daquele crucificado, abandonado por todos: porque “o Senhor — diz ainda o Profeta — fez cair sobre Ele as faltas de todos nós”: “maltratado, humilhou-se voluntariamente e não abriu a boca. Era como cordeiro levado ao matadouro. […] Aprouve ao Senhor esmagar o seu servo pelo sofrimento”.

 

3. Tudo isto — este peso insuportável da concentração do pecado e do mal, confluindo de todos os tempos, vivido até ao limite por Aquele que “ofereceu a sua vida como vítima de expiação” — aconteceu ali, no Gólgota, no Calvário”, no “lugar da caveira”.

Desde muito cedo que os cristãos se interrogaram sobre o que poderia significar essa cruz erguida no “lugar da caveira”. Alguns diziam que, simplesmente, se tratava de um pequeno morro fora da cidade, onde habitualmente tinham lugar as execuções, ficando os corpos (as caveiras) ali abandonados; outros, diziam que esse pequeno monte tinha um aspecto de caveira. Mas encontramos também, desde muito cedo, a tradição de que ali, no lugar onde foi elevada a cruz de Jesus, se encontrava o sepulcro de Adão. Ali encontrava-se o túmulo do homem — do primeiro homem e do homem de todos os tempos. Era, por antonomásia, o “lugar do morto”. E ainda hoje, debaixo do lugar onde esteve erguida a cruz do Senhor, podemos visitar a “capela de Adão”.

Da terra, da morte, brota um madeiro. Se, em Adão, a morte tinha chegado pela árvore do Paraíso, agora uma outra árvore sustenta o novo Adão. Se, no início, com Adão, encontramos a desobediência e a revolta frente a Deus, agora encontramos a obediência e a entrega. Se, no início, encontramos o homem que se quer colocar no lugar de Deus, agora contemplamos a Deus que se humilha a si mesmo até à morte de cruz. A raiz da árvore da cruz são o pecado e a morte, o homem velho. Mas, das raízes da morte e do pecado,  a cruz ergue-se até ao céu como caminho que, por meio de Jesus, nos conduz, definitivamente ao Pai e à vida eterna. Nova humanidade, nascida do lado do novo Adão.

Por isso, ali, na cruz do Gólgota, os cristãos encontraram desde sempre o rosto de Deus. Um rosto que, por entre o feio do pecado, resplandece de beleza. Desapareceu, é certo, o bonito dos padrões da moda, mas aparece toda a beleza do amor — do amor com que Deus vem ao nosso encontro (ao encontro de cada um de nós), nos atrai e nos mostra que nele — e apenas nele ! — podemos entregar confiadamente toda a nossa existência, tudo o somos e temos.

Não sem razão, Jerusalém se considera o “umbigo da humanidade”, o lugar onde se concentra o drama humano, e onde a morte se transformou em vida por meio da Cruz salvadora de Jesus. Sobre a tirania da morte, ergue-se o troféu da vida.

Como diz S. Atanásio de Alexandria: “Uma vez que Adão escutou: ‘Tu és terra e à terra voltarás’ (e, por causa disto, à terra regressou), assim Cristo ali encontrará de novo Adão, a fim de dissolver a condenação. Por isso, em vez de ‘tu és terra e à terra voltarás’, Cristo pode dizer: ‘Levanta-te, vem aqui e segue-me, porque já não serás colocado na terra, mas erguer-te-ás até ao Céu” (De Passione et cruce Domini, PG 28:208).

Deixemo-nos olhar pelo homem da Cruz; encontremos nele a beleza do amor de Deus; deixemos que Ele nos erga do pecado e da morte (do homem velho), e nos conduza à vida divina, cumprindo a sua promessa: “já não serás colocado na terra, mas erguer-te-ás até ao Céu”!

D. Nuno Brás

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