Homilia do bispo de Aveiro na Missa Crismal

Fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos (Ap 1, 6).

  1. Cristo, o centro da vida do sacerdote

Estimados padres, diáconos, consagrados e Povo de Deus:

O texto da segunda leitura da Eucaristia de hoje faz parte da saudação que o apóstolo João dirige às sete Igrejas da Ásia Menor, que simbolizam todas as Igrejas, incluindo a nossa Igreja, a Diocese de Aveiro. O texto afirma que nós somos um povo de sacerdotes pelo Batismo e pela Eucaristia, cumprindo-se assim o que tinha sido dito no livro do Êxodo: «Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa» (Êx 5,10). Com o sacramento da Ordem, recebido no dia da nossa ordenação sacerdotal, cumprem-se em nós as palavras do profeta Isaías «o Senhor me ungiu e me enviou a anunciar a boa nova aos infelizes, a curar os corações atribulados, a proclamar a redenção aos cativos e a liberdade aos prisioneiros, a proclamar o ano da graça do Senhor» (Is 61,1-2).

O Decreto sobre o Ministério e a Vida dos sacerdotes, do Concílio Vaticano II, apela para que os presbíteros, no exercício do seu ministério, «não se conformem a este mundo, mas que vivam neste mundo entre os homens e, como bons pastores, conheçam as suas ovelhas e procurem trazer aquelas que não pertencem a este redil, para que também elas oiçam a voz de Cristo e haja um só rebanho e um só pastor» (PO 3).

Cristo é, de facto, o centro da nossa vida, dos nossos trabalhos e dos nossos projetos: Ele é o «Alfa e o Ómega, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso». Com Ele, “único pastor”, não temos nada a temer.

  1. O dom da vocação presbiteral

Nesta Quinta-Feira Santa, revemos a nossa identidade, as nossas dificuldades e possibilidades. A vida do padre está sujeita a muitas contradições na sociedade em que vivemos, mesmo nas comunidades cristãs onde exercemos o nosso ministério: somos vistos como pessoas solitárias, muitas vezes alheados das preocupações do mundo de hoje, ou então construímos um estilo de vida bastante individual e pouco comunitário. Sentimos também, no interior de nós mesmos, que há um divórcio entre a vida e a fé, que o anúncio do Evangelho, enquanto Boa Nova de salvação, não é entendido por muitos que vivem à nossa volta. O mesmo aconteceu com os apóstolos de Jesus, que experimentaram os sinais de incompreensão. Verifica-se uma certa incapacidade dos discípulos para compreender e reconhecer os sinais de Jesus – sinal de que apesar de terem respondido ao seu chamamento, de o seguirem e de serem enviados por Ele, não os tornou discípulos exemplares, uma vez que com a sua atitude, eles próprios se colocaram à margem do projeto de Jesus; daí precisarem de ser curados por Ele.

Onde buscar forças para sermos sal que dê sabor e luz que ilumine tantos dos nossos irmãos que andam afastados do projeto que Deus tem para a humanidade?

Olhando para a nossa vida de sacerdotes e diáconos (o mesmo se diga dos consagrados) quero refletir convosco e destacar algumas dimensões que nos podem ajudar na nossa vida de pastores ao serviço do povo de Deus (cf. Ratio fundamentalis – Dimensões da formação, V).

A dimensão humana deve estar muito presente na nossa vida e na relação com os nossos irmãos. Só assim será possível sermos sacerdotes de trato amável, autênticos, leais, interiormente livres, afetivamente estáveis, capazes de nos dedicarmos aos outros com a alegria de sermos amados por Deus.

A segunda dimensão é a da espiritualidade, a qual nunca se pode dar por adquirida. A consciência da nossa identidade presbiteral não se mede por aquilo que fazemos, nem pelo modo como organizamos a vida das nossas paróquias, mas sim em sermos discípulos verdadeiramente enamorados do Senhor, cuja vida e ministério se fundam na íntima relação com Deus e na configuração a Cristo, o Bom Pastor. Na companhia de Jesus, os discípulos foram aprendendo algo mais que uns ensinamentos; foram adquirindo um estilo de vida e, a pouco a pouco, foram participando da sua missão. Só depois de amadurecida a resposta e de fazer parte da sua nova família, assumindo as mesmas atitudes e o mesmo estilo de vida, podem os discípulos ser enviados a proclamar eficazmente a boa nova que Jesus anuncia, para que a vida de Deus se manifeste na vida do mundo.

Para o cristão há apenas um caminho para encontrar o que agrada a Deus – o do discernimento – discernimento este que depende da pessoa e da abertura da sua consciência ao Espírito: «E é isto o que eu peço, que o vosso amor cresça cada vez mais em conhecimento e sensibilidade, a fim de poderdes discernir o que mais convém» (Fl 1,9-10). Discernir não é defender a própria maneira de pensar, a própria iniciativa e a própria independência, mas renunciar ao saber que procede do mundo, para encontrar o saber que procede de Deus. É necessário, portanto, abrir o coração às sugestões interiores do Espírito, que convida a ler em profundidade os desígnios da Providência. O discernimento é essencial para a maturidade e o crescimento espiritual. O processo passa por escutar e aprender a reconhecer a ‘voz de Deus’ dentro de nós próprios. Diz-nos a experiência que quando a Igreja não responde satisfatoriamente aos anseios espirituais e existenciais do mundo na sua realidade histórica concreta, o mundo cria respostas e caminhos que procuram satisfazer as necessidades e angústias existenciais.

  1. Memória agradecida do nosso presbitério

Na origem da vocação ao presbiterado há uma espécie de eleição que Deus faz livremente, e fora de toda a consideração meramente humana, a favor de uma pessoa em relação à entrega de uma missão. É o que se conclui das palavras de Jesus aos apóstolos: «Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e dar muito fruto, e fruto que permaneça» (Jo 15,16).

Hoje, damos graças por todos os sacerdotes do nosso presbitério; pelo dom do sacramento da Ordem conferido há cinquenta anos ao padre José Nunes Ferreira dos Santos (10/4/1978) e os vinte e cinco anos dos padres Francisco José Rodrigues de Melo (10/1/1993) e José Augusto Pinho Nunes (15/8/1993). Dom gratuito de Deus, concedido pelo Espírito Santo, a vocação ao presbiterado é confiada aos cuidados da comunidade eclesial. A Igreja diocesana acompanha estes nossos irmãos com as suas orações, ao mesmo tempo que agradece todo o bem realizado em favor do reino de Deus.

O diácono é colocado «perante a Igreja como prolongamento visível e sinal sacramental de Cristo no seu próprio estar diante da Igreja e do mundo, como origem permanente e sempre nova da salvação» (PDV 16). A vocação é um dom do Espírito, que só pode frutificar quando é aceite pela Igreja local: bispo, presbíteros e comunidade cristã; e aceite na alegria, porque é dom de Deus. Agradecemos este dom do diaconado na nossa Igreja de Aveiro, recebido há vinte e cinco anos, no dia 15 de agosto de 1993, na pessoa dos nossos irmãos António Carlos Vilaça Delgado, Diamantino Neves Murteiro, Eduardo Rodrigues, Manuel Araújo da Silva e Porfírio Vieira de Carvalho e Silva.

Ao longo deste ano, o Senhor chamou a si o nosso anterior bispo de Aveiro, D. António Francisco dos Santos (11/9/2017); D. António Santos (26/3/2018), bispo emérito da Guarda e membro do nosso presbitério antes da sua nomeação episcopal; o padre Agostinho Teixeira que, sendo inicialmente beneditino, exerceu a maior parte do seu ministério no arciprestado de Anadia; o padre Júlio da Rocha Rodrigues, indelevelmente unido à paróquia de S. Pedro de Aradas; o padre José Manuel Regateiro da Silva, do presbitério de Évora, que dos quase setenta e cinco anos de sacerdócio passou quase a totalidade deles na Murtosa; e o diácono José Luís Macedo, que foi exemplo para nós na forma como soube levar a cruz do sofrimento unida à paixão do Senhor.

Irmãos sacerdotes, diáconos e consagrados, esperamos que brevemente a Igreja possa canonizar o Beato Bartolomeu dos Mártires, que foi modelo de frade dominicano, sacerdote e de bispo, sendo um trabalhador incansável da vinha do Senhor. Num gesto de memória agradecida, no final da nossa celebração será oferecido a cada um de vós um exemplar de uma das suas obras mais conhecidas – Estímulo de Pastores. Escrito por ele e para ele próprio na ocasião da sua ordenação episcopal, foi e continua a ser fonte de inspiração para todos quantos fomos chamados a identificar-nos com Cristo: «O pastor seja o primeiro na ação, mais que todos, dado à contemplação, discreto no silêncio, útil no falar, próximo de todos pela compaixão, companheiro humilde dos que procedem bem. Zeloso da justiça contra os vícios dos pecadores, não diminuindo o cuidado dos de dentro por causa da ocupação dos de fora, não deixando de providenciar aos de dentro por causa da solicitude pelos de fora».

Que a proteção da Virgem Maria, a Senhora do sim e a intercessão de Santa Joana Princesa, nossa padroeira, e a nos ensinem a ser discípulos missionários, enamorados do Mestre, pastores com cheiro a ovelhas, que vivam no meio delas para as servir e conduzir à misericórdia de Deus, na certeza de que somos amados por Ele.

Amen.

Catedral de Aveiro, 29 de março de 2018
António Manuel Moiteiro Ramos, Bispo

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