Homilia do bispo da Guarda na celebração da «Paixão do Senhor»

Sexta-Feira Santa é dia de silêncio e de contemplação diante da Cruz de Cristo.

Queremos transportar-nos ao Calvário para fazer memória do inocente condenado, que dá a vida para que todos possam ter vida em abundância.

A Igreja não celebra hoje a Eucaristia, porque quer ir à fonte, ao acontecimento de onde brota a mesma Eucaristia, que é o lado aberto de Jesus trespassado pela lança, como refere o Evangelho de S. João.

Hoje, na Adoração de Cruz, partilhamos os sofrimentos de Jesus, mas também dos doentes, dos pobres, de todos os abandonados e desprezados deste mundo; e sofrimentos agravados pela pandemia.

Ora, o sofrimento, e em particular o sofrimento dos inocentes, continua a ser um grande enigma, que não sabemos decifrar. Mas diante da Paixão de Cristo, começamos a encontrar caminhos para integrar o sofrimento e também a morte, assim como as nossas muitas limitações, no sentido positivo da vida.

Também começamos a compreender que o sofrimento, por maior que seja, nunca pode ser razão para acabar com a vida, mas sempre desafio à procura de meios que o ajudem a superar ou pelo menos diminuir. Tal como a morte o sofrimento é inevitável e a autêntica sabedoria está em saber integrá-los na vida verdadeira.

Voltamo-nos agora para a Palavra de Deus, que acabámos de escutar.

Aquela figura do Servo de Javé de que nos fala o Deutero-Isaías representa Jesus. Ele é o eleito de Deus. Apesar de desprezado, perseguido e castigado, não se revolta.

Carrega com as nossas enfermidades, com as nossas dores e sofrimentos. Pelas suas chagas somos curados. Entrega-se como cordeiro levado ao matadouro e sofre as consequências dos pecados do seu povo, oferecendo a vida como sacrifício de expiação.

Deus é a sua recompensa e isso é indiscutível

Ora, ao escutarmos o relato da Paixão e Morte de Jesus, hoje na versão do Evangelista S. João, descobrimos como os traços deste Servo de Javé se iam cumprindo em Jesus. Assim, Ele entrega-se voluntariamente aos que vinham para o prender. Depois, julgado em dois tribunais – o religioso e o civil – em ambos ficou provada a sua inocência.

Todavia, a inveja e a maldade de muitos pressionaram os tribunais e acontece a história de sempre: os interesses apagam a justiça e a verdade e levam Jesus até ao patíbulo de cruz.

Pilatos ainda lhe pergunta o que é a verdade, mas não espera resposta, porque não está interessado nela, mas tão só em defender o seu lugar, o que não aconteceria se contrariasse a fúria popular incentivada pelo regime. Por isso, depois de reconhecer a sua inocência, entrega-O para ser crucificado. Em todo este processo ferido de iniquidade, Jesus manteve sempre a inabalável confiança em Deus até às últimas palavras – Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. Isto, apesar da traição de quem o entregou e do abandono dos amigos mais diretos, os apóstolos.

Explicação para esta Morte encontramo-la na carta aos Hebreus: Jesus é o único Sacerdote que oferece o único sacrifício capaz de, de uma só vez, des­truir por completo o mal do mundo e abrir a todos o caminho da sal­vação.

Hoje e amanhã, no silêncio e no recolhimento que nos são recomen­dados, queremos recordar todas as vítimas inocentes que continuam a exis­­tir, por causa da guerra, das ditaduras, da violência diária, que infelizmente entra no seio das próprias famílias; por causa das leis injustas que atingem prin­­cipalmente os mais frágeis.

Só a luz do crucificado pode desfazer as trevas que envolvem o nosso mun­do e não nos deixam ver as crianças que continuam a morrer de fome, ou­tras que não podem ir à escola; os idosos abandonados; povos inteiros destruídos ou compulsivamente deslocados pela guerra e pelo terror, como continua a acontecer no norte de Moçambique e tantos outros sofrimentos provocados pela maldade e pelos interesses.

A Cruz de Cristo é o grande sinal de esperança que não desilude e responde aos muitos sofrimentos que se vivem nestes tempos de pandemia. E entre os que mais sofrem, por causa da pandemia, estão pessoas, famílias e mes­mo povos já há muito tempo provados pela pobreza, pelas calamidades ou pelos conflitos armados. Também para esses a Cruz é aquele farol que aponta porto seguro a quantos lutam no mar da vida contra ondas muito alterosas

Continuamos o nosso recolhimento silencioso diante da cruz de Cristo, no dia de hoje e durante todo o dia de amanhã, ajudados pela prática do je­jum, da penitência e da oração.

D. Manuel R. Felício
Bispo da Guarda

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