Homilia do arcebispo de Évora na celebração da Paixão e Morte do Senhor

  1.     Consumado e consumido. Tudo isto está consumado (cf. Jo 19, 30). E  todo Ele está consumido. Jesus consumou a Sua missão e consumiu a Sua  vida: consumiu a Sua vida ao consumar a Sua missão. Estará tudo  terminado? É óbvio que Jesus morreu. Mas os primeiros cristãos não entenderam a  Sua morte como morte. E, na Liturgia Pascal, a Igreja até garante que  Jesus «destruiu a morte». Já Santo Agostinho notara que Jesus, com a  Sua morte, matou a morte: «em Si, Ele matou a morte»!

Guiados por São João, que espelha a Fé das primeiras comunidades cristãs, o que ouvimos não é dito – explicitamente — que Jesus morreu. O que ouvimos, nesta Sexta-Feira Santa, é que, após ter dito que «tudo estava consumado», Jesus «inclinou a cabeça» e «entregou o Espírito» («parédôken tò Pneuma») [Jo 19, 30]. Sucede que inclinar a cabeça é próprio não só de quem morre, mas também de quem adormece para acordar e viver de novo. Desde sempre, a Igreja acredita ter nascido não «do lado morto», mas do «lado adormecido» de Cristo. Também nós, adormecendo em Cristo, com Ele ressuscitaremos.

Acresce que a «entrega do Espírito» não tem de ser um indicador de morte. «Entregar o Espírito» (a Deus e aos homens) é uma poderosa  demonstração de vida. Haja em vista que, na Bíblia, o Espírito é  sinónimo de vida, pelo que entregar o Espírito é entregar a vida (cf.  Jo 6, 63). Não foi o que Jesus sempre fez? Eis-nos como Discípulos Missionários perante o Mestre, o Rabi da Galileia.


  1. É verdade que Ele foi dado como morto (cf. Jo 19, 33) e sepultado (cf. Mc 15, 46). Espantoso é o significado teológico atribuído a este  facto biológico. É que Jesus — mesmo depois de tudo ter consumado e de todo Ele Se ter consumido — não parou de Se entregar. São João é o único evangelista que nos dá conta do soldado que «picou» o «lado» de Jesus com uma lança (cf. Jo 19, 34). Sim, «picou». Segundo os exegetas do Novo Testamento, a tradução mais fiel do que se encontra no texto: «ényxen» é o aoristo do verbo «nýssô», que quer dizer «picar» ou «perfurar». Habitualmente,  as traduções dizem que o soldado «trespassou» o lado de Jesus. E, no fundo, este acto de «picar» foi um autêntico «trespasse»: de um lado para o outro; do lado de dentro jorrou para o lado de fora, do lado de Deus para o lado do homem.

É do lado de dentro (isto é, do lado de Deus) que brotam as fontes da salvação: o «sangue e a água» (cf. Jo 19, 34). Mas como era  possível dar mais quem já tinha dado tudo? Acontece que Jesus é dádiva sem fim, é dádiva até para lá do fim. O «sangue e a água» que correm do Seu lado aberto continuam a escorrer  pelo mundo inteiro: a água para lavar e o sangue para redimir. A água  sempre foi vista como alusão ao sacramento do Baptismo e o sangue  sempre foi acolhido como símbolo do sacramento da Eucaristia.

Admirável é que, uma vez mais, se faça sobressair uma luminosa afirmação de vida. A intenção de espetar a lança — e trespassar o corpo — era para testar a morte. Só que aquele coração estava repleto de vida:  da vida que, pelo Seu Filho, Deus ofereceu à humanidade. Como recordou o Papa Pio XII foi «do coração ferido do Redentor que  nasceu a Igreja». O coração sinaliza o imenso amor «que moveu o nosso Salvador a celebrar o Seu místico matrimónio com a Igreja».

É curioso notar como também Eva, a primeira mulher da humanidade, fora constituída a partir do lado (tselá) do primeiro homem adormecido (cf. Gen 2, 21-22). Não é, portanto, em vão que o Catecismo sufraga esta conexão: «Da mesma forma que Eva foi formada do lado de Adão adormecido, também a Igreja nasceu do coração trespassado de Cristo morto na Cruz».

 

  1. Amanhã, Sábado Santo, com Maria, Mãe e Modelo dos Discípulos Missionários, iremos acompanhar Jesus na sepultura. Também esta é encarada não como um lugar de aniquilamento, mas de repouso. Tal como Deus repousa após a obra da criação (cf. Gen 2, 2), também o Filho de Deus repousa após a obra da redenção. Neste Seu repouso, Jesus está em plena actividade. Ele vai visitar os  mortos. Como refere um conhecido texto do século IV, Jesus «faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte». Jesus é a «vida [até] para os mortos».

Santo Agostinho percebeu que Jesus, ao nascer para morrer, nasceu para viver a nossa morte. «Participando da nossa morte, torna-nos participantes da Sua vida». Jesus muda tudo: Ele vai ao ponto de nos «vitalizar» na própria morte!

A vida de Jesus não terminou. É transfigurada pelo Espírito que nos entrega «da parte do Pai» (Jo 15, 26). É no Espírito que Jesus vive eternamente. É no Espírito que também nós viveremos para sempre. A sede de Jesus antes do último suspiro (cf. Jo 19, 28) não é sede do vinagre que Lhe foi dado (cf. Jo 19, 29.30). Não é de vinagre que  Jesus tem sede. Jesus tem sede de nós: da nossa fidelidade, do nosso amor. Que nós, os seus Discípulos do Século XXI, tenhamos sede d’Ele como Ele tem sede de nós. Na Sua morte, disponhamo-nos a transformar a nossa vida e a sermos suas testemunhas, missionárias.

+ Francisco José, Arcebispo de Évora

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