Homilia de D. Manuel Linda no Dia Mundial da Paz

“O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor dirija para ti o Seu olhar E te conceda a paz”

Esta fórmula de bênção, recitada sobre o povo, cada dia, no velho templo de Jerusalém, por altura do sacrifico matinal, exprime bem o desejo mais profundo do nosso coração, neste alvorecer do ano civil de 2010. Para nós e para os outros. Ainda que o formulemos somente com aquele prosaico “bom ano novo”.

Com estas palavras e sentimentos, nós, os crentes, fazemos uma verdadeira profissão de fé e de confiança: que precisamos da protecção do nosso Deus e de caminhar à luz do Seu rosto. Que só o Senhor do tempo e da história é o autor e a origem daqueles bens e daquela felicidade sem os quais não faria sentido o tempo que nos é dado viver. E ainda que o Deus Criador é também Providente, pois é Ele quem sustenta a nossa vida e a cumula de graça e de bondade.

Mesmo que fosse somente por esta invocação, já valia a pena reunirmo-nos em assembleia orante, como agora fazemos. Mas, neste dia, a Igreja apela-nos a outras considerações que concedem sentido profundo a esta liturgia: a jornada mundial da paz e Santa Maria, Mãe de Deus. Impõe-se uma palavra breve sobre cada uma delas.

 

1. Dia Mundial da Paz

Há quarenta e três anos que, sem interrupção, os Papas têm chamado a atenção para o valor da paz, dom divino absolutamente basilar para cada pessoa e para a inteira família humana. E fazem-no mediante uma mensagem que alerta para aspectos nevrálgicos ou refere condições do seu desenvolvimento efectivo.

Para este ano de 2010, pouco tempo após a ineficaz Cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas, o Santo Padre Bento XVI formulou assim o tema: “Se queres cultivar a paz, preserva a criação”. E desenvolve magistralmente esta ideia-base: quer nós, pessoas humanas, quer a natureza, somos criaturas de um Deus bom. Este Deus, que nos criou por amor e para Quem estamos a caminho, pensou em nós desde toda a eternidade e ofereceu-nos o mundo para que, mediante uma sábia e generosa administração, retiremos dele o necessário para a nossa subsistência e o entreguemos, melhorado e ajardinado, às gerações futuras. Mas o nosso egoísmo sôfrego boicoteou este plano de Deus e introduziu o por todos conhecido: degradação ambiental, exploração desenfreada dos recursos naturais, elevadíssimo consumo de energias fósseis, contaminação da água potável e má distribuição a nível planetário, alterações climáticas com consequências devastadoras essencialmente para os mais pobres, má gestão das florestas, um género de agricultura que compromete a qualidade dos alimentos com possíveis repercussões na saúde pública, etc.

E introduziu estas enfermidades na natureza porque o homem, particularmente o ocidental, está doente. Está moral e existencialmente doente nos seus comportamentos insolidários, no estilo de vida competitivo, no modelo de consumo que despreza a noção de «suficiente» para se tornar insaciável, enfim, na forma de produção quantitativa, insustentável sob o ponto de vista social, ambiental e até económico. E está doente, fundamentalmente, na sua relação com Deus que, muitas vezes, ignora ou despreza, e na relação com os outros, a quem, na prática, não reconhece como irmãos e membros de uma mesma família. Assim, este homem de más relações consigo, com os outros e com Deus, poderia manter boas relações com a natureza?

O problema ecológico é, pois, um problema moral, porque problema de comportamento. E não somente ou primariamente um problema técnico ou político. Foi este erro de perspectiva que ditou o fracasso da Cimeira de Copenhaga. Impõe-se um novo estilo de vida no qual predomine a harmonia: com Deus, a quem reconheçamos como Pai; com os outros, assumidos efectivamente como irmãos; e com a natureza, de quem nos sintamos responsáveis e não tiranos.

 

2. Santa Maria, Mãe de Deus

O segundo aspecto desta celebração faz-nos regressar ao presépio. Mas agora já não para contemplarmos o encanto do Menino, “verdadeiro homem”, como confessamos no Credo, mas sim para professar a sua divindade de “verdadeiro Deus”. Quando chamamos a Santa Maria a “Mãe de Deus”, dirigimos o nosso olhar e a nossa mente para o Verbo eterno, para a Palavra reveladora e definitiva pronunciada pelo Pai.

“O Verbo se fez carne e habitou entre nós”: eis a síntese última do mistério do Natal, cuja oitava hoje se encerra. Acentuamos a noção de Verbo, Palavra. É que, por aqui, tudo começa. Em cristianismo, a primazia concede-se à Palavra revelada que incentiva a inteligência a procurar a verdade: “A fé entra-nos pelo ouvido”, diria S. Paulo. Primeiro, portanto, a mente que recebe a comunicação e só depois o sentimento que lhe concede aceitação afectiva: a inteligência antecipa o coração. E esta ordem não pode ser alterada, sob pena de se cair na pura irracionalidade. É por este motivo que o cristianismo preza muito a racionalidade e a inteligência.

Infelizmente, é traço característico da nossa cultura ocidental, dita pós-moderna, o privilegiar do mero sentimento. Tende-se a usar a inteligência apenas como pura razão instrumental, científica e técnica. O que comanda a sociedade de massas é a noção do «apetece-me ou não me apetece», o «quero ou não quero», mesmo –e quase sempre – sem razões nem justificações. Semelhante cultura, obviamente, não quer, nem sabe dialogar a respeito dos grandes temas que constituem as verdadeiras encruzilhadas da humanidade actual. Às pessoas que a perfilham, basta-lhe o enquadramento legal, as normas das leis civis, que procuram cumprir para não serem incomodadas. O moral –e até o antropológico – arruma-se para o sótão das inutilidades. E não faltam políticos que procurem atrair as simpatias das massas, indo ao encontro da sua sensibilidade e dando-lhes o que elas reclamam, sem qualquer reflexão, diálogo ou tentativa da procura da verdade.

Aqui reside a dificuldade da Igreja contemporânea, mas também a urgência de ser, agora como no passado, “sal da terra e luz do mundo” desta cultura do mero sentimento: o seu esforço em puxar para cima, para a inteligência, o que a lei do menor esforço teima em fazer baixar para o mero sentimento. É nesta perspectiva que deve ser lida a sua tomada de posição sobre os grandes temas antropológicos contemporâneos: aborto, eutanásia, despersonalização da morte, aviltamento da sexualidade, ataques sistemáticos à família constituída à base de união da vida e de amor de um homem e de uma mulher abertos ao dom da vida dos possíveis filhos como estrutura mais básica e mais determinante da sociedade, etc. É nesta perspectiva – e só por ela – que a Igreja que está em Portugal ousa pedir que, nestes assuntos de suma importância, não se dêem passos sem uma ampla discussão esclarecedora em ordem à procura da verdade.

Na nossa Arquidiocese, o presente Ano Pastoral estrutura-se à base da noção do “Acolher a Palavra”. Vemos bem a urgência deste tema. Refere-se, simultaneamente, ao acolhimento do Verbo de Deus Encarnado nas nossas vidas, à assimilação da Sua Revelação que deve constituir como que o travejamento dos nossos pensamentos e raciocínios, e mesmo ao dever de formarmos a inteligência também nos âmbitos da fé, para podermos dar ao mundo o testemunho de uma racionalidade amiga da verdade objectiva, como tantas vezes os cristãos souberam fazer ao longo da história. É o que o nosso tempo reclama como muito urgente.

É isto também que, por intermédio de Santa Maria, Mãe de Deus, pedimos ao seu Divino Filho para o novo ano, juntamente com o dom da paz e da Sua bênção.

1 de Janeiro de 2010

+ Manuel Linda, Bispo Auxiliar

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