Homilia de D. António Carrilho, Bispo do Funchal, na Missa e “Te Deum”, na Sé, no fim do ano 2008

«O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz (Nm 6, 26)» Ao terminar este ano de 2008 e no limiar dum novo ano, cantamos hoje em atitude de acção de graças o hino do “Te Deum”: “Nós vos louvamos, Ó Deus, nós vos bendizemos, Senhor (…) Salvai o vosso povo, Senhor, e abençoai a vossa herança; sede o seu pastor e guia através dos tempos e conduzi-o às fontes da vida eterna”. O louvor e a acção de graças representam a oferenda da nossa vida ao longo do ano que acaba. Unidos a Cristo, mediador da Nova Aliança, dirigimos ao Pai que é fonte de toda a vida e de toda a esperança, o nosso sacrifício vespertino. Em primeiro lugar, o coração contrito, disposto a receber de Deus o perdão e o ânimo novo capaz de olhar a vida com a vigilância da fé e com a esperança que salva. Depois, tudo o que representam de positivo e de construtivo o nosso esforço, responsabilidade e trabalho na edificação do povo de Deus e na construção da cidade humana. Assim, nesta tarde, louvamos, bendizemos e damos graças a Deus por todos os benefícios recebidos ao longo deste ano, na nossa Diocese e Região, e nesta Cidade do Funchal, cujas comemorações dos seus 500 anos agora se encerram. E ao mesmo tempo que agradecemos esses dons recebidos, imploramos também as maiores bênçãos de Deus para cada um de nós e nossas famílias, para a Igreja, para a nossa Sociedade e para o Mundo, tendo presente a leitura do livro dos Números, que acabámos de escutar. A verdadeira bênção de Deus A missão da tribo de Levi, na qual se exerce o sacerdócio do Antigo Testamento, é a de abençoar os filhos de Israel. Que significa esta bênção? Em primeiro lugar, ela manifesta a fidelidade de Deus à sua Aliança. Deus continua a acompanhar o seu povo com a sua bênção e encarrega os sacerdotes de a transmitirem. Com a bênção vem o dom da paz, da protecção e da prosperidade. Por ela, Deus faz brilhar sobre o seu povo a sua face. A face de Deus que deve brilhar em nós, como cristãos, é a de Jesus Cristo. A grande bênção de Deus é agora para nós Jesus Cristo que é a nossa paz e reconciliação. A verdadeira luz do mundo é a luz de Cristo e como diz S. João na sua primeira Carta (2, 10): “Aquele que ama o seu irmão, permanece na luz”, isto é, torna-se um outro Cristo, porque irradia a sua luz. Trabalhar pela dignidade de todo o homem Quando Deus abençoa também revela a dignidade de todo o homem, pois mostra como nele brilha a sua própria face divina. Na verdade, Deus fez-nos à sua imagem e semelhança. É missão dos cristãos trabalhar incansavelmente pela dignidade de todo o homem, vendo nele a face de Cristo tantas vezes desfigurada pelo pecado, pelo sofrimento, pela exclusão, pela alienação nas drogas e no álcool, pelo cansaço e pelo desânimo. Como afirma a Mensagem ao Povo de Deus do último Sínodo dos Bispos, no passado mês de Outubro (n.º13): “O cristão tem (…) a missão de anunciar a Palavra divina de esperança pela sua partilha com os pobres e com os que sofrem, pelo testemunho da sua fé no reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz, pela sua proximidade amorosa que não julga nem condena mas que apoia, ilumina, conforta e perdoa, na linha das palavras de Cristo: ‘Vinde a mim, vós todos que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei’ (Mt 11, 28)”. Não se pode portanto cruzar os braços diante da exigência constante que vem do amor de Deus: a de ir ao encontro dos pobres, qualquer que seja a forma da sua pobreza, material ou espiritual. As iniciativas em favor da erradicação da pobreza, não apenas material mas também espiritual, são hoje mais do que nunca necessárias e fazem parte do testemunho profético dos crentes. Inaugurar um futuro de esperança Abençoar significa igualmente confiar, inaugurar um futuro de esperança. A bênção de Deus é para o presente e para o futuro. Ela liberta do temor do futuro, ajudando a estar atento e a ser fiel ao presente. O Papa Bento XVI dizia na sua recente encíclica sobre a esperança: “Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do ser humano, no crescimento do homem interior, então aquele não é um progresso mas uma ameaça para a humanidade e para o mundo” (Spes salvi, 22). Esta afirmação do Papa, constantemente lembrada também pela Doutrina Social da Igreja, leva-nos a crer que a crise económica de que actualmente tanto falamos tem uma das suas causas fundamentais numa crise cultural e na falta de fundamentos éticos, que sejam não só proclamados mas sobretudo concretamente vividos nas situações diversas da vida humana. Daqui resulta uma crise de confiança generalizada e o medo que dificulta o funcionamento da vida social. “O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz” (Nm 6, 26). Estas palavras do livro dos Números lembram-nos que o dom de Deus por excelência, a expressão concreta da sua bênção, é a paz. O “Nome de Deus”, o “olhar de Deus” trazem em si mesmos o dom da paz. A Revelação de Deus é a revelação da paz. Por isso, nunca se poderão separar a glória de Deus e a paz do mundo: “Glória a Deus e paz na terra aos homens por ele amados”, diz o hino de aclamação que cantámos no início da celebração. Educar para a paz Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 2009), intitulada “Combater a pobreza, Construir a paz”, que bem merece ser lida na íntegra, o Papa Bento XVI refere que uma dimensão essencial da busca da paz no mundo, supõe como primeira preocupação a de lutar contra todas as formas de pobreza. Para isso importa ter constantemente em vista o bem comum “que exige ser servido plenamente (…), com base numa lógica que tende à mais ampla responsabilização. O bem comum exige a busca constante do bem de outrem como se fosse o próprio” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, 167). Hoje verifica-se de modo particular a necessidade de uma educação para a paz baseada na dignidade da pessoa humana e na busca do bem comum. A violência por palavras ou acções, onde quer que se encontre, a falta de civismo, o desrespeito pelas legítimas diferenças, a exclusão social, as formas de pressão de grupos com o objectivo de servirem os seus próprios interesses egoístas atentam contra a paz social e significam um retrocesso na busca duma humanidade mais justa e mais unida. A Palavra de Deus diz-nos que a paz anda sempre ligada à unidade verdadeira e, para nós cristãos, à comunhão de vida na Igreja como Corpo de Cristo e templo no qual habita o Espírito: “Conservai a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” – diz S. Paulo na Carta aos Efésios (4, 3). Alegria para os pobres Os primeiros a quem foi revelada a Boa Nova do nascimento de Jesus foram os pastores. S. Lucas lembra, assim, no Evangelho deste dia, que Deus se dirige aos mais pequenos da sociedade, aos pobres e aos pecadores, pois estes têm o coração aberto para acolher a novidade da sua acção a favor de todos os homens. Por causa do seu trabalho, os pastores deviam ser considerados como pessoas pouco frequentadoras das práticas religiosas, que caracterizavam a vida dos judeus piedosos. É exactamente a estes pastores, à margem da organização social de então, que o anjo do Senhor se dirige para lhes revelar o nascimento do Salvador. “Eles dirigiram-se à pressa para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”(Lc 2, 16). S. Lucas insiste na pressa desta viagem para Belém, assim como diz também que Maria, após a Anunciação, se dirigiu apressadamente ao encontro da sua prima Isabel. A Boa Nova que os pastores ouviram do Anjo e o acolhimento jubiloso que lhe dispensaram é sinal de que a Palavra germinou já no seu coração, antes mesmo de a contemplarem no presépio de Belém. Mas depois da escuta da Palavra vem o encontro com “Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”. Assim, a fé torna-se palavra e acontecimento. Ela é encontro com o Filho de Deus no seio duma família. Promover a estabilidade na família Como sublinha a Mensagem ao Povo de Deus do último Sínodo dos Bispos, “Cristo avança ao longo dos caminhos das nossas cidades e detém-se no frontal das nossas casas (…). A família é um espaço fundamental no qual deve entrar a Palavra de Deus (…). Cada lar deverá portanto ter a sua Bíblia, guardá-la com cuidado, lê-la e rezar com ela” (12). Promover a estabilidade na família é garantir a estabilidade e a coesão social. É afirmar o seu papel imprescindível na educação dos jovens, a permanência de valores como a fidelidade, a confiança, o dom generoso da vida e a unidade. O nascimento de Jesus, na simplicidade de Belém, é a fonte donde brotam todos estes valores. Não podemos deixar de nos mostrar preocupados, quando as estruturas sociais a quem compete propor um modelo estável de família optam por soluções fáceis que não têm na devida atenção a solidez dos compromissos familiares necessários para a educação das novas gerações e contribuem para a lenta diluição da família num tecido social, que só pode ser gerador de novas violências. Proclamar a Boa Nova “Assim que o viram, os pastores começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino” (Lc 2, 17). Como outras vezes no Evangelho, o encontro com Cristo implica uma missão de anúncio, de proclamação da Boa Nova. Os Pastores, renovados pela visita a Jesus, proclamam Aquele que certamente transformou as suas vidas. Na verdade, o encontro com o Salvador não pode deixar insensível. A luz de Cristo que se acende no coração deve, por sua vez, iluminar os outros. O Evangelho termina de forma concisa com a indicação do nome dado ao menino de Belém – Jesus, isto é Deus salva, nome já indicado pelo anjo na Anunciação e significativo da própria missão de Jesus. A identidade de Jesus é singularmente a sua missão como Filho único de Deus. S. Paulo na sua carta aos Gálatas apresenta-nos uma confirmação dessa missão destinada a fazer de todos nós filhos adoptivos. “Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abbá! Ó Pai!’” (Gl 4, 6). Ele mesmo experimentou na sua vida o que era ser Filho. Cristo chamou-o a si duma forma extraordinária, conduziu-o e fortaleceu-o, fê-lo apóstolo das nações e deu-lhe aquela ardente caridade, que o fez proclamar sem reservas: “Ai de mim se não evangelizar!” (1Cor 9,16). Neste Ano Paulino, o testemunho do Apóstolo surge como a grande proposta do que significa ser Filho de Deus, condição para ser construtor da paz. Exemplo e protecção de Maria Neste dia, em que celebramos Santa Maria Mãe de Deus, Rainha da Paz, ouvimos também no Evangelho que “Maria fixava todas estas palavras e pensava nelas no íntimo do seu coração” (Lc 2, 19). Ela compreendia e meditava nelas. Oferecia a vida ao seu Senhor na oração. Deixava-se conduzir pela vontade d’Aquele a quem tinha dado o pleno consentimento da sua inteligência e da sua vontade. O Senhor quis o seu coração, como Ele quer também o nosso, de modo a que, inteiramente transformado pela Sua graça, sejamos verdadeiras testemunhas da Sua paz. Feliz e Próspero 2009 Ao terminar, irmãos e irmãs, quero expressar os meus votos de um Feliz e Próspero 2009 para todos os madeirenses e portossantenses, onde quer que se encontrem. Que os vossos projectos e sonhos para o novo Ano sejam acolhidos pela bondade de Deus e a intercessão de Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, alcance para o mundo inteiro o dom da Paz. Feliz Ano Novo para todos! Sé do Funchal, 31 de Dezembro de 2008 † António Carrilho, Bispo do Funchal

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