Homilia de D. António Carrilho no Dia Mundial da Paz

«A maternidade divina de Maria, nos caminhos da Paz» No encerramento da oitava do Natal, primeiro dia do novo Ano, a Igreja convida os seus filhos e filhas a contemplar a figura de Maria e a meditar o mistério da sua Maternidade Divina. Há precisamente uma semana, toda a nossa atenção se centrava em Jesus Menino, o Deus que Se fez um de nós, assumindo as nossas fraquezas a fim de as redimir, elevando a frágil natureza humana à comunhão plena e definitiva com a glória da Divindade. Oitos dias depois, é em Sua Mãe e no Mistério da sua Maternidade, que está centrada a Liturgia deste primeiro dia do Ano. Recordando a História, percebemos como não foi fácil aceitar-se este título de “Mãe de Deus”, referido à Virgem Maria. Temia-se que ele pudesse evocar, de alguma forma, qualquer resquício de paganismo. Mas a fé do povo cristão jamais vacilou! E quando o concílio de Éfeso, no ano de 431, proclamou solenemente que a Virgem Maria era verdadeiramente “Theotókos”, isto é, Mãe de Deus, estava a fazer-se eco de uma convicção que sempre animou a Fé dos crentes: Jesus Cristo é verdadeiro Deus; Maria é verdadeiramente Sua Mãe; e, por isso, é justo que ela possa receber o título de “Mãe de Deus”. O ponto de partida é a afirmação solene da Divindade de Jesus! Alegremo-nos, irmãos e irmãs em Cristo, pela gloriosa Maternidade de Maria, modelo e figura da própria Igreja. E invoquemos para o novo Ano a poderosa e constante intercessão daquela que Jesus nos deixou como Mãe nossa e da Sua Igreja. Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja Na liturgia da Palavra deste dia, são-nos apresentadas três leituras muito curtas, mas de uma riqueza verdadeiramente singular. Na primeira leitura, tirada do Livro dos Números, escutámos a belíssima “Oração da bênção”, recitada pelos sacerdotes da Antiga Aliança sobre o povo. Nela se invocam para todos a protecção e os favores divinos, e de modo particular o dom da Paz: “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a Paz” (Nm 6, 26). A Paz – e neste primeiro dia do ano, uma vez mais, a Igreja convida a humanidade inteira a celebrar o Dia Mundial da Paz – antes de ser uma forma exterior de estar ou de agir, é uma disposição interior, uma atitude do coração, que requer silêncio, escuta e acolhimento. Procuremos e cultivemos esta Paz interior e as relações entre os homens serão marcadas pela verdadeira concórdia! Na segunda leitura, o Apóstolo São Paulo, cujo Jubileu a Igreja inteira está a celebrar até o próximo 29 de Junho, relembra que o nascimento de Cristo se dá de forma verdadeiramente humana: Jesus não aparece como por magia ou surgindo do nada, mas “nasce de uma Mulher e sujeito à Lei”. Jesus, nascido de Maria, é Aquele que os profetas anunciaram, a Sua Vinda significa o cumprimento pleno da História da Salvação, e Maria, com o seu “Sim”, é plenamente integrada neste plano salvífico de Deus, tornando-se Mãe de Deus e Mãe da Igreja. A missão de Jesus é fazer de cada homem e de cada mulher filho e filha de Deus. Em nossos corações o Espírito clama “Abbá! Pai!” (Gl 4, 6); por isso, já não somos escravos, mas filhos! Na eternidade, no Céu, o único título que havemos de manter será este: o de “filhos de Deus”. Acabarão todos os outros títulos usados em contexto terreno: tanto os títulos de sangue ou de parentesco, como os sociais e os profissionais. Mas o de nos chamarmos “filhos de Deus”, esse permanecerá para sempre! Ao escutar o Evangelho, como não nos maravilharmos com a atitude da Virgem, diante das palavras dos pastores! Escreve São Lucas: “todos se admiravam daquilo que os pastores diziam”, enquanto Sua Mãe “conservava todos estes acontecimentos, meditando-os em seu coração” (Lc 2, 19). Oh, como é salutar guardar no coração aquilo que não se compreende, em vez de tudo querer entender e explicar! É verdade que o ser humano é sedento de saber… Mas a vida humana, a vida de cada um de nós, é um verdadeiro mistério a descobrir em liberdade e nunca o simples resultado de programações e de projectos a cumprir como se fôramos máquinas! Quantas desilusões, quantos fracassos, precisamente porque alguém não corresponde totalmente ao que dele esperam! Queridas mães e caros pais, não queirais a todo o custo que as vidas dos vossos filhos e filhas correspondam aos vossos projectos ou ambições! Acolhei-os e orientai-os com amor, sim, mas fazei-os crescer autónomos e responsáveis! Também neste aspecto, o exemplo de Maria é, a todos os títulos, admirável: ela deu à luz um Filho que nunca lhe pertenceu, antes foi consagrado inteiramente a Deus. A discrição de Maria, tão presente no modo como ela seguiu os caminhos de Seu Filho, permitiu que Deus transparecesse plenamente na vida e na pessoa de Jesus. Mensagem para o Dia Mundial da Paz E agora, caríssimos irmãos e irmãs, precisamente pelo motivo de hoje assinalarmos também o Dia Mundial da Paz, gostaria de, brevemente, percorrer convosco a Mensagem que o Santo Padre oferece à nossa reflexão para a celebração deste Dia, intitulada: “Combater a pobreza, construir a Paz”. Aconselho-vos vivamente a sua leitura, pela sua premente actualidade e pelos desafios que a todos nos lança! Quis o Papa dividir a referida Mensagem em duas grandes partes: “Pobreza e implicações morais” e “Luta contra a pobreza e solidariedade global”. Partindo do complexo fenómeno da globalização – fenómeno que, pela sua própria natureza, se apresenta com uma “acentuada característica de ambivalência” – pretendeu o Santo Padre evocar uma visão “ampla e articulada” (n.2) da pobreza. E, por essa razão, distingue cinco campos em que a pobreza deve ser equacionada como problemática ética ou moral. Pobreza e implicações morais O primeiro desses campos é o do desenvolvimento demográfico. A propósito das campanhas de redução da natalidade que, muitas vezes, não respeitam nem a dignidade da mulher nem os direitos dos esposos nem, infelizmente, o próprio direito à vida, afirma Bento XVI: “o extermínio de milhões de nascituros, em nome da luta contra a pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres dentre os seres humanos” (n.3). E, contrariando um preconceito frequente, o Papa constata que os índices de desenvolvimento dos países nos revelam que, afinal, a população se confirma como uma riqueza e não como um factor de pobreza (cf.n.3). Em segundo lugar, é referido o campo das epidemias. São apresentadas, a título de exemplos, a malária, a tuberculose e a sida. Lamenta o Santo Padre que os países afectados por estas epidemias sejam muitas vezes objecto de chantagem económica, quando se condiciona a ajuda financeira à prossecução de “políticas contrárias à vida” (n.4). Outro aspecto a considerar no combate às epidemias é a necessidade de “colocar à disposição também das populações pobres os remédios e os tratamentos necessários”, mesmo que tal exija uma “aplicação flexível das regras internacionais de protecção da propriedade intelectual” (n.4). Surge, em terceiro lugar, o âmbito da relação entre pobreza e infância. Constatando que “quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é constituída por crianças”, Bento XVI não esquece os diversos objectivos – os cuidados maternos, o serviço educativo, o acesso às vacinas, aos cuidados médicos e à água potável – mas afirma claramente que o empenho fundamental tem de passar pelo apoio e a defesa das famílias, pois “quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças” (n.5). Em quarto lugar, surge o âmbito da relação entre desarmamento e progresso. Evocando a célebre afirmação de Paulo VI de que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”, o actual Papa faz um apelo para que se procurem formas de reduzir as despesas em armamentos: deste modo, “os recursos poupados poderão ser destinados para projectos de desenvolvimento das pessoas e dos povos” (n.6). E, finalmente, em quinto lugar, surge-nos a problemática da crise alimentar. Semelhante crise “é caracterizada não tanto pela insuficiência de alimento, como sobretudo pela dificuldade de acesso ao mesmo e por fenómenos especulativos” (n.7). Por outro lado, a conjugação de dois factores – ou seja: a evolução tecnológica e a dinâmica dos preços – faz com que os pobres sofram aquilo que o Papa designa como “dupla marginalização”: “a obtenção de rendimentos mais baixos e de preços mais altos” (n.7). Luta contra a pobreza e solidariedade global Na segunda parte da Mensagem, o Santo Padre enuncia quais devem ser os dinamismos da luta contra a pobreza, em contexto de globalização: ·que a globalização seja guiada por uma “forte solidariedade global”; ·que se tenha consciência de que esta globalização, enquanto se refere apenas à proximidade geográfica, temporal ou económica, “não cria, só por si, as condições para uma verdadeira comunhão e paz autêntica”; essa globalização só é positiva se “cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos ligadas a elas” (n.8); ·que todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado mundial (n.9); ·que se supere um sistema de transacções financeiras baseadas numa lógica de brevíssimo prazo, desprovidas de consideração pelo bem comum, a qual se torna “perigosa para todos”, inclusivamente para aqueles que beneficiaram durante as fases da “euforia financeira” (n.10). Em síntese, afirma Bento XVI, “a luta contra a pobreza requer uma cooperação nos planos económico e jurídico que permita à comunidade internacional e especialmente aos países pobres individuarem e actuarem soluções coordenadas para enfrentar os referidos problemas através da realização de um quadro jurídico eficaz para a economia. Além disso, requer estímulos para se criarem instituições eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover uma cultura da legalidade” (n.11). Os pobres em primeiro lugar E concluo com as sábias e oportunas palavras com que o próprio Papa nos dá uma espécie de resumo de qual deve ser hoje a resposta ao grande desafio da pobreza: “Colocar os pobres em primeiro lugar implica que se reserve espaço adequado para uma correcta lógica económica por parte dos agentes do mercado internacional, uma correcta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional” (n.12). Feliz e Próspero 2009 Resta-me, apenas, caros irmãos e irmãs, expressar os meus votos de um Feliz e Próspero 2009 para todos os madeirenses e portossantenses, onde quer que se encontrem. Que os vossos projectos e sonhos para o Novo Ano sejam acolhidos pela bondade de Deus e a intercessão de Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, alcance para o mundo inteiro o dom da Paz. Feliz Ano Novo para todos! Sé do Funchal, 31 de Dezembro de 2008 † António Carrilho, Bispo do Funchal

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