Homilia da Missa Crismal no Ordinariato Castrense

Caros irmãos no sacerdócio, queridos irmãos e irmãs,

1. Celebrar a Missa Crismal é sempre um dom e um compromisso singular para cada bispo, para cada sacerdote, e para o povo de Deus.

Na nossa Diocese, sabemos que isto representa uma rara ocasião de encontro entre vós, capelães militares, espalhados ao longo do território nacional.

Por um lado, a nossa Celebração faz-nos saborear a doçura de nos reencontrarmos novamente como presbitério, e o facto de ser por ocasião da Missa Crismal, que é o Encontro Sacerdotal por excelência, confere-lhe um sabor e um significado ainda mais especial.

Por outro lado, o nosso coração está, reconhecemo-lo, cheio de amargura: ao drama da guerra que, há mais de um ano, envolve a Ucrânia, barbaramente agredida pela Rússia, a Europa e o mundo, junta-se a má nova, agora comprovada com testemunhos e provas, de hediondos abusos molestadores perpetrados por indignos membros da Igreja, sobre vítimas inocentes e indefesas. Todas as Vítimas desses abusos estão no coração da nossa oração e da nossa súplica de perdão. A esta tristeza, veio juntar-se a dor da horrível e trágica morte do nosso irmão Capelão, Pe Luís Seixeira. É uma profunda e imensa amargura.

2. Podemos dizer que, em certo sentido, vivemos numa globalização da dor que não pode deixar indiferente nenhum sacerdote, sobretudo aqueles que, como nós, confiaram o seu sacerdócio e ministério a Deus, para que faça d’ele um instrumento de acompanhamento, de apoio, de santificação para os Militares e Elementos das Forças de Segurança. Esta situação dos abusos sobre menores constitui um autêntico murro no estômago, e que, mais do que qualquer outra tragédia, não só nos põe a fazer interrogações, como a questionar-nos sobre nós próprios, e a nossa condição de testemunhas do Amor de Cristo ressuscitado.

Hoje, ao renovarmos as Promessas sacerdotais, no Altar do Senhor, queremo-nos interrogar sobre o que significa recordar e viver a nossa vocação. Fazemo-lo através das respostas às questões previstas pela Liturgia, procurando, com a ajuda da Palavra de Deus e à luz do Mistério da Santíssima Trindade, fazer resplandecer o rosto do sacerdócio, na sua essência como um “sacramento”. Realizamos isso em três etapas, seguindo a bela intuição de Santo Agostinho sobre a Santíssima Trindade:

  1. Renovar o sacramento – o Filho, o Amado
  2. Dispensar os sacramentos – o Pai, o Amante
  3. Ser sacramento – Espírito, Amor

 

3. Renovar o Sacramento – O Filho, o Amado

«O Espírito do Senhor… me ungiu» (Lc 4,18), diz no Evangelho (Lc 4,16-21); “E vós, quereis renovar as promessas que fizestes?», pergunto-vos eu.

Jesus, o Filho, o Ungido, comunica o seu sacerdócio; e comunicar não é simplesmente dizer ou dar, mas é, essencialmente, partilhar. O nosso sacerdócio é o mesmo de Cristo, é o Seu próprio Coração de Filho-Amado.

Pergunto-me e pergunto-vos: queremos voltar a acolher este Amor, que nos precedeu, amou e chamou e chama ainda hoje?

Vamos, novamente, dar a Ele os nossos corações?

No limiar do Tríduo Pascal, neste hoje da história, procuremos responder com o coração aberto, escancarado ao mistério da dor, à imagem do Coração de Jesus, que entra no Mistério da sua Paixão como se mergulhasse num abismo com dimensões que, a Ele mesmo, parecem desmedidas, contudo, consciente de querer entrar nele, por amor a todos os homens. Diante do abismo da dor humana, nem Cristo recua, nem volta a cara, e, como Ele, também os sacerdotes não recuam, nem voltam a cara.

Assim, a pergunta sobre a dor da humanidade concretiza-se na pergunta sobre a nossa própria dor, e na relação que, como sacerdotes e filhos no Filho, vivemos com o sofrimento, com o fracasso, a doença, a crise e com o próprio mistério da morte. Se acolhido com o Coração de Cristo, ou na certeza de sermos amados, o mistério da dor transfigura o nosso rosto, torna-o semelhante ao rosto do Servo sofredor e, assim, mas só assim, ilumina todos os rostos do mundo, desfigurados pelo sofrimento, pela violência, pela fome e pelo desespero. No rosto da dor de Cristo há algo de «sacerdotal» que nos deve atrair, com a mesma força daquele que, ressuscitado, atrai todos a si. “Ei-l’O que vem entre as nuvens e todos olhos O verão, também aqueles que O traspassaram”, ouvimos na segunda leitura (Ap 1,5-8).

Num tempo, como o nosso, em que a vocação do sacerdote é frequentemente desfigurada por escândalos horríveis e pelo escândalo da superficialidade ou da mediocridade, o Rosto de Cristo Sacerdote, que vem crucificado todos os dias na humanidade trespassada pela dor, pela desumanidade da guerra, pelo enigma da morte e pelo drama de tantas vítimas inocentes, oferece-nos a possibilidade de renovar o nosso “sim” à promessa de reencontrar n’Ele o nosso verdadeiro rosto.

E a pergunta que se nos coloca é: “e tu, queres”? Responder, implica entrar na vontade de Jesus, na sua obediência total, até à cruz. A obediência é, em larga medida, o coração do sacerdócio, o único “voto”, e que permeia todos os outros. É transfiguração, amadurecimento, luminosidade da vontade porque é uma obediência de filho, feita vontade de filho.

“Sim, quero”, respondemos no dia da ordenação. Com Jesus devo renovar a minha livre escolha, sentir intimamente que ainda “O quero e amo”. Que essa livre opção, expressa nas promessas sacerdotais, embora desgastada pela vida, atravessada por crises, perturbada pelo sofrimento, esteja ainda viva e seja real em mim. É a livre decisão de alguém que é filho no Filho, e que faz a vontade do Pai.

4. Dispensar os sacramentos – O Pai, o Amante

Como é importante para um sacerdote, penetrar na comunhão de amor e de vontades entre o Pai e o Filho!

O Pai, ama tanto o mundo, que faz de nós um dom para o mundo, como dera o Filho Jesus; Ele envia-nos “a anunciar a boa nova aos pobres, a curar as feridas dos corações despedaçados, a proclamar a redenção aos cativos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a promulgar o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). E, tal como Jesus, nós compreendemos que, para o podemos fazer, para verdadeiramente darmos uma resposta contundente à dor humana, temos de assumir plenamente essa dor e enfrentar as perdas.

O Amor é a opção do Pai, não o sofrimento, nem a morte do Filho; mas sofrer e morrer é uma opção do Filho: que tomou a decisão de amar até ao fim, a sofrer, té à morte.

Com efeito, a vontade de Jesus é orientada, medida e plasmada sobre o mistério da dor humana que Ele viu, tocou, acariciou, curou e que agora, ao tê-la assumido, a vai superar definitivamente. Assim, a morte na Cruz torna-se oferta sacerdotal do Filho que se entrega ao Pai, na certeza de que a Vontade do Pai é o Amor que não morre. E o Pai acolhe essa vontade, acolhendo o Filho a quem oferece o Amor que, na Cruz e na Ressurreição, dá vida ao mundo. Para Jesus, entrar na Paixão é assumir verdadeiramente a vontade de amor ao Pai pelo mundo, completando o que tinha sido a sua entrada no mundo. “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4, 21).

Não é um evento do passado. O Amor concreto do Pai vivifica-nos hoje através dos sacramentos, e, portanto, através do sacerdócio. “Quereis permanecer fiéis dispensadores dos mistérios de Deus, sem ambiciona bens temporais, mas movidos unicamente pelo zelo das almas?”

Celebrar a Eucaristia, a Reconciliação, os outros sacramentos é deixar-se atravessar pelo Amor com que o Pai ama, cura, consola, perdoa e renova a vida. O nosso “Sim” de hoje, é a oferta reafirmada e bela de um sacerdócio, que se realiza na comunhão com Cristo, e é o “óleo” que unge tantas outras vidas que se recriam com a ajuda da graça.

Trata-se de um verdadeiro milagre contemplar a renovação na vida dos nossos soldados, para os ajudar a crescer não só na fé pessoal, mas também no serviço que se torna capacidade de doação, justiça, perdão, e os torna maduros no ministério da paz para o qual são chamados a realizar. O vosso ministério, como capelães, é apreciado, desejado e procurado por todos eles.

Sim, neste tempo em que a guerra, como afirmou o Papa Francisco, continua a crucificar Cristo, a resposta não está no pacifismo vazio, superficial, irreal, mas em deixar o Amor chegar ao coração dos homens, para que as lanças se transformem em foices, a vingança em perdão, o ódio em amor, a guerra dê lugar à paz. Também os militares são e devem ser instrumentos deste amor. E vós, caros capelães, sois e deveis ser ministros deste Amor, para que o Pai-Amante invada o coração dos nossos soldados e daqueles que encontrarem no caminho da vida.

5. Ser sacramento – Espírito, Amor

«Quereis viver mais intimamente unidos a Cristo e configurar-vos com Ele, renunciando a vós mesmos e permanecendo fiéis aos compromissos que, por amor de Cristo e da sua Igreja, aceitastes alegremente no dia da vossa ordenação sacerdotal?». Esta terceira pergunta leva-nos à intimidade com o Senhor. Porque, sem intimidade não há amor e não há caridade.

O sacerdote deve manter o seu coração aberto ao amor que o permeia intimamente – corpo, espírito, sentimentos – e que se alimenta de proximidade, de confiança e de familiaridade. Numa palavra, devemos fazer circular em nós o Amor Trinitário.

“A minha fidelidade e bondade estarão com ele” (Sal 89, 24): canta David no salmo que recitámos. É um hino a cantar o “para sempre” do amor, que o faz transbordar de alegria e júbilo. Perguntar acerca da intimidade é perguntar sobre a oração, sobre os momentos de encontro com o Senhor, esse lugar onde se aprende a renunciar a si mesmo, abrindo o coração ao Espírito que transforma o nosso ser e a nossa mente: o Espírito faz-nos “ser sacramento”, sinal luminoso e autêntico de um Além, de um Outro a quem, na intimidade, temos acesso, e do qual somos transparência.

Esta é a pergunta, que me acompanha diariamente, sobre a minha oração como sacerdote; nos tempos e nos caminhos, no espaço que deixo para o “Tu” de Deus, no diálogo e na relação com Ele, na adoração e na escuta da sua Palavra.

6. Estamos em tempo de Sínodo, que tem sido um tempo de escuta. Oxalá, nos mobilize a ser argutos na disponibilidade para ouvir mais o Senhor e a sermos mais dóceis e sensíveis, para ouvir o grito de dor que atravessa o mundo. Uma dor que, escutada no Espírito Santo, volta como oração de intercessão e, graças ao Espírito, ilumina como mistério de comunhão.

Para responder à globalização da dor, precisamos, por assim dizer, de uma sinodalidade na dor. Não podemos fazer isso sozinhos! Nós, sacerdotes como Jesus, somos chamados a assumir o sofrimento humano, mas não podemos fazê-lo sozinhos. Precisamos de comunhão, precisamos de uma espécie de sinodalidade sacerdotal – que não nada tem a ver com o que o Papa chama de clericalismo! – mas que seja fraternidade forte e geradora, fermento na Igreja e no mundo, frutos do Espírito Santo a agir em nós!

Caros confrades, com simplicidade e alegria, renovemos hoje as nossas promessas, certos de que aqui está a resposta também para a dor do nosso tempo, para o drama da guerra e do sofrimento de vítimas inocentes, para as traições e para os crimes hediondos, que permanecem escândalo e mistério.

Façamos juntos este caminho pascal; façamo-lo “em sínodo”; em comunhão, na participação e missão! Esta é a resposta para tudo o que nos envolve como irmãos nascidos da Páscoa do Senhor. É a resposta do Mistério Trinitário que se doa a nós no sacramento, comunica-se aos outros como sacramento, faz de nós sacramento de Amor, que permanece vivo e eterno.

Assim seja!

Sé Catedral das Forças Armadas e Forças de Segurança (igreja da Memória, Lisboa), 05 abril 2023
+Rui Valério
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

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