«Fratelli Tutti»: Papa propõe «novo paradigma de humanidade sem muros, sem fronteiras, sem barreiras, sem exclusão e sem discriminação»

Isabel Varanda, professora da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, comenta, em entrevista escrita à Agência ECCLESIA, os pontos principais de um documento dirigido a toda a humanidade, em tempo de crise

Entrevista realizada por Octávio Carmo

Foto Agência ECCLESIA/LFS

Tal como a Laudato Si’, em 2015, procurou responder com o conceito de ecologia integral aos desafios das alterações climáticas, em pleno debate que levaria ao Acordo de Paris, o novo texto parece propor conceitos fundamentais como fraternidade e amizade social a um mundo marcado pela pandemia.

Temos em mãos uma encíclica social, um texto universal, que não deixará, certamente, ninguém indiferente. Muito pelo contrário, aceitar ler um texto ao qual é dado o título Todos irmãos (FT) já permite antever que dele não sairemos ilesos: é uma espécie de murro no estômago, que aperta o coração e deixa a razão envergonhada. Se é verdade que o tema é mais do que pertinente neste tempo de pandemia, da qual ainda não conseguimos vislumbrar o fim, também me parece que o Papa Francisco escreveria esta Carta ao mundo em algum momento do seu pontificado. Ele próprio diz: “as questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações” (FT §5). Por isso, a encíclica Todos Irmãos é escrita como um contributo para a reflexão sobre a crise dramática de fraternidade, que é crise dramática de humanidade, na esperança de que “um sonho novo de fraternidade e amizade social” (FT §6) possa motivar o ser humano para modos benfazejos de habitar o mundo, modos benfazejos de fazer o mundo e modos benfazejos de ser mundo.

Ao longo dos últimos anos, encontramos numerosas intervenções de Francisco, seja nas encíclicas, nas exortações apostólicas, nas mensagens, nos discursos ou nas alocuções, onde claramente exprime preocupação aguda para “com as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros” (FT §6). Parece bem ao Santo Padre reunir algumas dessas muitas intervenções e transpô-las para um âmbito de reflexão mais alargado. Resulta uma carta encíclica organizada em 8 capítulos, com 287 parágrafos e 288 notas de rodapé. Cerca de 55% das notas de rodapé e referências bibliográficas remetem para as múltiplas intervenções do Papa. Podemos dizer, por isso, que este é o pensamento de Francisco, esta é a Carta que Francisco sempre desejou enviar a todos os seres humanos, lembrando-lhes: Somos Todos Irmãos.

Adota um tom pedagógico, num estilo redaccional polimorfo. Incisivo, não deixa de dar nome às coisas e aos fenómenos, não se esquiva aos pormenores, pois não nos quer poupar ao traumatismo do encontro com as dores do mundo e com as feridas em carne viva da fraternidade. Não se dirige a uma elite ilustrada, retorica, clerical ou académica; a linguagem é afável, mas sempre interpeladora e frontal: “somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades” (FT §65), “sintomas de uma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento” (FT §66), constata. Alguma ironia, algum tom magoado de quem muito sabe, muito vê, muito experimenta, muito sente, muito sofre e muito reza. Lamento de irmão ferido. Não evitando também a linguagem dura, a crítica cortante, a palavra incomodativa: “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (FT §45). A voz do Papa Francisco é voz que destoa no tom e na tónica; expõe, dá nome à maré de desumanidade que avança inclemente e inconsciente: denuncia tudo o que fecha, tudo o que reduz, tudo o que exclui, tudo o que esconde, tudo o que apouca, tudo o que descria o mundo e a humanidade.

Só um pequeno resto mantém esta ousadia e este discurso, um ainda mais pequeno resto é sensível ao que é dito e só um ínfimo resto se deixa envolver no espírito de mudança, de conversão à tarefa histórica de priorizar o bem comum e a vida boa para todas as criaturas. O facto é que o desejo de mudança e a motivação para a mudança só ocorrem se estivermos convictos de que a mudança é para algo melhor do que o que temos; precisamos de sentir que vale a pena o esforço; só esta convicção nos moverá para outros caminhos, mais fraternos, mais inclusivos, mais “percursos de esperança” (FT §54).

 

Lampedusa
Foto: Osservatore Romano

Em 2013, a primeira viagem do Papa levou-o a Lampedusa para condenar a globalização da indiferença e colocar a questão inicial de todo o edifício ético ocidental, vinda do próprio Deus: Onde está o teu irmão? O que é o irmão, no pensamento católico?

A encíclica Laudato Si ‘ (24 de maio de 2015) recordou ao mundo, de modo luminoso, que todas as criaturas, humanas e não humanas, visíveis e invisíveis, estão intrinsecamente ligadas e, por isso, tudo o que acontece com a mais ínfima partícula ou com a mais gigantesca forma de vida inscreve-se, de forma indelével, na biografia comum da criação. A evidência de pertença à “carne do mundo” e da interdependência fundamental pode ser difícil de aceitar ao pôr aparentemente em causa os devaneios prometeicos do ser humano, um certo entendimento da autonomia, da liberdade, do poder e da capacidade de domínio. Mas, não há volta a dar. Esta é a condição da vida tal como a conhecemos, e é uma condição feliz. Esta é a nossa identidade: nem o planeta terra é solitário, nem o ser humano é solitário; somos solidários e isto não é opção; é condição. A fragilidade ou mesmo ausência desta consciência de pertença a algo mais do que eu, maior do que eu e diferente de mim, é fator determinante do modo como vemos e nos relacionamos com o outro, os outros e com tudo o que nos rodeia. Como passamos do reconhecimento desta solidariedade biológica para uma fraternidade universal? O que faz com que reconheçamos um outro, que não sou eu, portanto, importante aos meus olhos, digno de contemplação e de admiração, digno do meu desejo, merecedor do meu cuidado e do meu amor, a tal ponto que posso equacionar a possibilidade de dar a vida por ele? Saber que tal é possível maravilha-me e diz muito sobre quem é o ser humano, quem somos nós e do que somos capazes. Se ousasse uma tentativa de resposta, sempre insuficiente, diria: isto é Amor. E só o amor nos permite reconhecer o outro meu próximo, próximo a mim e de quem eu sou próximo, meu irmão, que me interpela, me responsabiliza, me seduz e me enche de admiração; ele aparece-me, fora de mim, e desencadeia um turbilhão de valorização ética até ao reconhecimento: Ecce frater – Eis o irmão. Sabemos todos, no entanto, que se trata, muitas vezes, de uma fraternidade ferida e tantas vezes ferida de morte. Por isso, ressoa através dos tempos e dos espaços e no íntimo de cada um de nós a pergunta vinda do próprio Deus: “onde está o teu irmão?” (Gn 4,9).  Em Lampedusa e em todas as Lampedusas e “estradas desoladas” do mundo onde deixamos um ser humano ferido, abandonado, ignorado, humilhado, explorado, enxovalhado, “caído nas margens da vida” (FT§ 68): Ecce homo – Ecce frater.

“A mim que me importa?” “Sou, porventura, guarda do meu irmão?” (Gn4,9). A 13 de setembro de 2014, no Sacrário Militar de Redipuglia, em itália, o Papa Francisco chorou a morte de milhares de seres humanos, e apelou a que não mais se dissesse: “a mim, que me importa?” e convidou a que se passasse do “a mim, que me importa?” para o pranto. “O pranto. Irmãos, a humanidade precisa de chorar; e esta é a hora do pranto”, assim concluiu a homilia.

A encíclica FT traz-nos, no capítulo II: “um estranho no caminho”. Pela milionésima vez na nossa vida somos convocados para aquela narrativa de Lc 10,25-37, consagrada como a parábola do Bom Samaritano. Vale a pena escutá-la de novo. Francisco consegue contá-la como se fosse a primeira vez, arrastando o leitor para o centro do drama de fraternidade que ali decorre: “Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios direta e determinante: a qual deles te assemelhas?” (FT §64) E Francisco continua: “Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo sem se compadecerem com o sofrimento do ferido na estrada” (FT §67). Ecce frater! E isto é dignidade humana! isto é fraternidade, fraternidade universal, – o ferido não tem nome – aberta a todo e qualquer ser humano e alargada a todas as criaturas nossas irmãs, como nos mostra Francisco de Assis.

Não seria necessário evocar a religião ou a fé para se chegar à afirmação da fraternidade humana. Para os cristãos, esta fraternidade humana e cósmica é fraternidade cristã porque intimamente ligada a Jesus Cristo, o Filho de Deus, por quem, com quem, em quem, todas as criaturas, à sua maneira própria, são convidadas a reconhecer e a aceitar a filiação divina. No Filho, todos os filhos dizem, de vez em quando, Pai-nosso, o que nos obriga a olhar para o lado e dizer: Irmão- meu.

 

Podemos ver no atual pontificado a proposta da Fraternidade e do respeito pela dignidade de cada pessoa e cada comunidade como uma alternativa ao globalismo sem rumo?

Tudo o que for sem rumo, seja movimento global, seja movimento local, é arriscar-se na deriva, no vaguear. Nas últimas décadas fomos fortalecendo a consciência prática de que passávamos bem sem memória do que nos precede, sem referências extrínsecas claras e consistentes, sem Deus e sem os outros. Os mitos de autossuficiência, de individualismo, de milagre tecnológico, do poder de saber e de ter, de prosperidade e de abundância, têm tido efeito semelhante a um anestésico, que mergulha as sociedades e os indivíduos num reconfortante torpor. “Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada” (FT §30), escreve o Papa.

O século XXI não cessa de nos dizer que fomos longe de mais, temos ido longe de mais. Estamos a ser forçados a sair do torpor e o sobressalto é terrivelmente angustiante e desconcertante. As duas grandes crises globais que devastam o presente ano 2020 – a crise ecológica e a crise pandémica – vergam e desfazem todas as ilusões. O mundo inteiro agita-se ansiosamente em busca de sinais que indiquem que estamos a voltar ou vamos voltar ao que eramos, ao que tínhamos, ao que fazíamos. Ora, é provavelmente erro de expetativa. Edgar Morin, do alto dos seus extraordinários 99 anos de vida, escreve um pequeno livro em tempos de Covid 19 e dá-lhe o título : Changeons de voie – Mudemos de caminho”. Sim, mudemos de caminho, não voltemos ao mesmo. Este é um tempo de luto e de tomada de decisões cruciais. Estamos de luto, não só pelos milhões de pessoas que a pandemia está a levar, mas pela vida e pelo mundo de antes, ao qual não regressaremos. Mudemos de caminho, tracemos juntos “um rumo verdadeiramente humano” (FT §29) enfrentando juntos, de mãos dadas, numa frente universal fraterna, os caminhos que escolhermos e que podermos abrir; de outro modo “enfrentaremos juntos a vala comum”, vaticina o sociólogo polaco Zigmunt Bauman.

Estaremos já preparados para escolher individualmente um modo fraterno de vida comum? Estaremos preparados para “pensar e gerar um mundo aberto”? (cf. FT cap. III). Em todo o caso, podemos começar por estabelecer que a educação formal e informal seja também educação para a relação com o outro, para a consciência de pertença, para o bem comum, para o cuidado e “amizade social”, para uma “sobriedade feliz”, para uma visão aberta do mundo e das suas circunstâncias, para o valor da vida, para a atenção privilegiada à fragilidade e à vulnerabilidade. Quiçá, a educação possa contribuir, de modo determinante e decisivo, para dotar as gerações que nos sucedem de sabedoria e competências humanas para evitar “o cisma”, que talvez já esteja em curso, entre o individuo e a comunidade humana, “neste mundo que corre sem um rumo comum” [cf. FT §31).

 

Foto: ACNUR

Que importância têm as mensagens do Papa sobre populismos e discursos racistas, xenófobos?

O que nos aconteceu? Como foi possível chegarmos lá? De onde nos vem o poder e a autoridade de olhar o outro de alto? Com que fundamento decidimos que ele é de fora e que tem de corresponder aos meus critérios e padrões para poder entrar? Como foi possível tornar os mais necessitados e vulneráveis reféns dos nossos esquemas desumanos, dos nossos discursos racistas e xenófobos, transformá-los em objeto de ódio, de desdém e de violência?

Mais perigoso do que o vírus Sars Cov 2 é o vírus inominável que se propaga nas nossas sociedades, entre os nossos amigos e nas nossas famílias como fogo em palha. Pasmo ao ver tanta gente com responsabilidade social, cultural e eclesial acrescidas serem contagiadas e conseguirem elaborar narrativas de autoconvencimento e de autojustificação para se desviarem dos valores humanos que sempre alicerçaram as suas vidas e, em muitos casos, para se desviarem, de modo indecente e inconsciente, do Evangelho de Jesus Cristo. Que vos aconteceu, meus irmãos e minhas irmãs? Que ressentimentos tão grandes carregais convosco ao ponto de não suportar a diferença do outro, a necessidade do outro, a cor do outro, o respirar do outro, a vida do outro? Quem é o teu próximo, afinal? E tu és próximo de quem, afinal? Como foi possível chegar lá? O que nos aconteceu? Não sei e não encontro palavras para exprimir a repugnância por todo o tipo de populismos e de racismos insanos que envergonham a humanidade neste século XXI. Na nova Encíclica, Francisco aborda desassombradamente a questão de “líderes populares” cujo poder degenera num “populismo insano, quando se transforma na habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder” (FT §159).

“Dai-nos a graça de nos envergonharmos daquilo que, como homens, fomos capazes de fazer… nunca mais, Senhor, nunca mais!”, clama o Papa Francisco.  Sim. Dá-nos a graça, ó Deus, de nos envergonharmos. (cf. visita do Papa Francisco ao Memorial de Yad Vashem em 26 de maio de 2014, FT §247).

Choremos, porque o tempo é de pranto e precisamos de aprender a chorar e descobrir a força purificadora do pranto pelo outro. É tempo de não avançar mais. É tempo de resistir à voragem destruidora e resgatar o que faz de nós pessoas: o amor fraterno universal e “a amizade social” que, por um lado, se se deveria estender pelos espaços mais e menos longínquos, dentro do mesmo país e entre países e, por outro, precisa de se fortalecer no reconhecimento e desejo cordial de estar aí para o próximo, para o mais próximo: mormente, o doente, o pobre, o desempregado, o analfabeto, o ignorante, o falante de outra língua, o velho, o homem e a mulher, o emigrante, o refugiado. Ecce homo – Ecce frater. Seriamos todos tão mais felizes! Esperemos que as bolsas de humanidade autêntica que ainda resistem no meio de tanta selvageria humana possam resgatar do medo e da frustração alienantes, dos quais muitos de nós estamos reféns, algum resto de humanidade. Não é aceitável, não se pode aceitar, e precisamos todos de nos tornar mais vigilantes para resistir ao contágio mimético. “Deixemos de ocultar a dor das perdas e assumamos os nossos delitos, desmazelos e mentiras” (FT §78). Isso é dignidade humana!

Precisamos todos de perceber que ainda vale a pena repropor, com a nossa própria vida, uma cultura de “amizade social”, um espirito de delicadeza e de justiça, uma linguagem sempre aberta e luminosa, que não permita que as sombras se apoderem do mundo e nos escondam, para sempre, o rosto do irmão.

 

O Papa propõe, sobretudo aos mais jovens, o ideal da Amizade Social, que inspira esta encíclica, para um mundo onde não há estranhos, de todos e para todos. Que consequências práticas é possível tirar desta “utopia”, digamos assim.

Tudo se resume ao modelo de sociedade que gostaríamos de ser, com a qual gostaríamos de viver e que decidiremos construir. As opções educativas derivam das nossas decisões e opções de sociedade e de vida comum. Tudo se resume a Educação, Educação, Educação onde conste explicitamente áreas de desenvolvimento e de aprendizagens essenciais no que respeita à vida, ao valor da vida, ao valor intrínseco de todas as criaturas, à dignidade da vida humana, ao Bem comum, ao sentido de pertença à humana communitas e esta à comunidade bioplanetária e cósmica.

Só podemos fazer a sugestão veemente da leitura da encíclica, por todos. Foi escrita para todos e para que todos a possam ler. As gerações mais jovens encontrarão nessa leitura chaves interessantes para pensar criticamente a sociabilidade virtual, ou mesmo, a amizade virtual e, em simultâneo, trabalhar o desejo de fraternidade aberta e de amizade social como pilares de uma vida pacífica e boa para a humanidade e para todas as criaturas. A todos nós pertence proporcionarmos uns aos outros experiências gratificantes de fraternidade e de amizade social. Lembro a exortação do Papa Francisco na Exortação apostólica Evangelii Gaudium: “Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!” (EG §101).

 

A encíclica sobre a fraternidade nasce, de alguma forma, em fevereiro de 2019, com a declaração conjunta assinada em Abu Dhabi, sobre este tema, com o imã Al-Azhar. Lembro que nesse encontro inter-religioso, Francisco deixou uma frase que pode definir a sua visão do diálogo entre religiões e destas com a sociedade: “Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a Arca de Fraternidade”. Isto foi antes de falarmos em estar todos no mesmo barco, como repetimos agora…

Não sei bem se a analogia marítima é assim tao fecunda. A bem dizer, eu dispensaria a Arca de Fraternidade e ficaria pelo movimento fraterno planetário dos “caminhantes da mesma carne humana”, com os pés bem na terra, avançando pelo solo comum. Na nova encíclica, o Papa lembra-nos que “Gozamos de um espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações” [§77) e propõe como metodologia: “começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local… Procuremos os outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete”, sugere. (FT §87)

Isto dito, vale a pena lembrar e aprofundar o marco de comunhão inter-religiosa que o documento de Abu Dabhi, assinado no dia 4 de fevereiro de 2019, pelo Papa Francisco e o Grão-Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, representa. É também com estes gestos concretos, neste caso dos católicos e dos muçulmanos, que se dão passos efetivos na construção da “Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”. “Em nome de Deus, da alma humana, dos pobres, dos miseráveis, dos necessitados e dos marginalizados, dos órfãos, das viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países, dos povos em guerra, da fraternidade humana, da liberdade, da justiça e da misericórdia e em nome de todas as pessoas de boa vontade, “declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta, o conhecimento mútuo como método e critério”.

Reconhecer o estranho como “meu irmão” não se decreta. Só uma imaginação livre, criativa e amorosa nos poderá iniciar ao desejo de diálogo, ao desejo de encontro de religiões, de culturas, de saberes, de “amizade social” e de convivência fraterna.

 

A transformação dos mais vulneráveis em sujeitos dispensáveis, descartáveis é uma das marcas mais negativas deste tempo. Penso em particular nos mais velhos. A ação social tem algo a aprender com o que se tem passado?

Não podemos mais fazer-nos de distraídos. Todos “vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”. A infeção pelo Vírus Sars Cov 2, que evolui para pandemia, pôs a nu as feridas em carne viva das nossas sociedades. A crise humanitária e sanitária global é um grito de irmão ferido. ‘Ecce frater’. Milhões de pessoas lutam desesperadamente para manter o seu emprego, para pôr alguma coisa na mesa para comer, para comprar um medicamento – são combates de irmãos, feridos numa luta desigual, sem fim à vista.

“Olhos que não vêm coração que não sente”, diz um adágio popular. Enfim, começamos a ver e é uma graça muito grande percebermos que muitos corações começam a sentir. O sobressalto, a perplexidade, o embaraço são grandes, confrontados com “as sombras de um mundo fechado”, que põe a nu uma sociedade doente de medo e de solidão (cf. FT cap. I). O Papa adverte para a exclusão dos pobres, dos vulneráveis, dos doentes, dos que são relegados para as “periferias da vida”, dos que jazem como mortos nas estradas desertas, dos que não se vêm, dos que se tornam invisíveis, dos “forasteiros existenciais” e dos “exilados ocultos”. Nestes últimos, Francisco reconhece um sem número dos nossos velhos, que opções políticas e culturais arrumam e escondem até que caiam no esquecimento e se tornem invisíveis. Não temos nós um retrato disso mesmo naquilo a que chamamos em Portugal lares clandestinos? Por definição, o clandestino é como se não existisse – etsi homo non daretur. Francisco lembra, e nós fazemos questão de o realçar, que, tal como cada um de nós, cada um à sua medida, também “os políticos são chamados a cuidar da fragilidade dos povos e das pessoas… cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio de um modelo funcionalista e individualista que conduz à cultura do descarte” [FT §188) e lembra ainda aquilo de que os nossos políticos gostarão de ser lembrados, a saber: “Na política, há lugar para amar com ternura” [FT £§194).

Um novo paradigma de humanidade sem muros, sem fronteiras, sem barreiras, sem exclusão e sem discriminação, assente no cuidar e no bem comum é o ideal que se perfila diante de todos os cidadãos do mundo e de modo particular diante dos grandes decisores mundiais e locais. Que estes, daqui a alguns a anos, no balanço da sua vida política não se perguntem: “Quantos me aprovaram, quantos votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim? As perguntas, talvez dolorosas serão: “Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o meu povo? Que laços reais construi? Quanta paz social semeei?” [FT §197)

 

Foto: Lusa/EPA

Podemos encontrar nas indicações deste pontificado, já com sete anos e meio, as indicações para um novo paradigma, que nos permita não voltar à normalidade doente, mas realmente a um mundo melhor, no pós-pandemia?

Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, é, na sua pessoa, sinal vivo de um resto de humanidade fraterna, de uma vida evangelicamente reconhecível e de um novo paradigma eclesial.

A esta luz e com esta nova encíclica, oxalá “descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas a vozes, livre das fronteiras que criamos” [FT§§35). Oxalá!

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