Eterna saudade ou saudade do Eterno?

Padre João Carlos Rodrigues
Diocese de Bragança-Miranda
Congregação dos Padres Marianos da Imaculada Conceição

Novembro é um mês dedicado pela piedade cristã à visita aos cemitérios e à oração pelos defuntos. É particularmente neste mês que manifestamos a saudade que sentimos dos nossos familiares e amigos falecidos, colocando flores nas suas campas, acendendo velas em sua memória, recordando os bons momentos que com eles passamos e rezando pelo seu eterno descanso. Ter saudade de um defunto é sentir a sua presença na vivência da ausência da sua querida companhia. Por vezes, a saudade que temos dos nossos falecidos é de tal maneira intensa que não sabemos como qualificá-la devidamente e dizemos que é eterna. Porém, em rigor, a famosa expressão “eterna saudade” não faz sentido nem para crentes nem para não-crentes. A experiência da saudade pode parecer uma eternidade, até pode durar uma vida inteira, mas jamais pode ser sempiterna. A saudade pelos defuntos morre connosco: se tudo acabar com a morte, a saudade acaba no derradeiro momento de morrer; se a morte for uma passagem para a eternidade, a saudade extingue-se no momento do reencontro com os antepassados.

Todavia, parece-me que a expressão “eterna saudade” pretende mais exprimir o desejo de eternidade e a esperança na vida eterna do que a ansiedade ou o desespero perante a fatalidade da morte enquanto fim definitivo. Deste modo, a expressão “eterna saudade” é um ilogismo que deveria traduzir-se propriamente como saudade do Eterno, ou seja, desejo de Deus. A saudade pelos defuntos não só nos transporta o passado para o presente, enquanto afetuosa recordação do tempo que já foi, mas também nos projeta para o futuro, enquanto desejo de que os nossos antepassados estejam vivos na eternidade de Deus. Em hebraico, a palavra “eternidade” deriva do verbo alam, que significa “esconder”, pelo que, no sentido bíblico, eternidade significa “além do horizonte”, apontando para algo distante e escondido no tempo e no espaço. Deus envolveu de obscuridade o destino para além da morte, pelo que só nos é lícito imaginar como será a vida do além, ainda que nos seja possível descrever a esperança de uma purificação progressiva no mistério do além.

E é aqui que surge o Purgatório, que, erroneamente imaginado como um lugar, é antes um estado de purificação espiritual daqueles que morreram na amizade com Deus, mas não de todo santificados, pelo que, embora seguros da sua salvação eterna, precisam ainda de sofrer um processo radical de pleno amadurecimento humano, “a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do céu” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1030). O Purgatório é essa graciosa possibilidade que Deus concede ao ser humano para recuperar a sua integridade original antes de entrar no estado de felicidade suprema e definitiva que consistirá numa comunhão plena de vida e de amor com Deus, contemplando-O “face a face” (cf. 1 Cor 13,12; Ap 22,4), vendo-O “tal como Ele é” (1 Jo 3,2). O Purgatório é um processo doloroso, como todos os processos de maturação, superação e ascensão, mas não é um campo de concentração para o cumprimento de penas nem tão-pouco um castigo divino para reparar as faltas do passado.

Aliás, o Purgatório é pura obra de misericórdia enquanto uma última oportunidade que nos é concedida. Os sofrimentos que iremos padecer durante o processo de purificação final não têm comparação com a alegria que iremos experimentar intimamente ao sabermo-nos e sentirmo-nos salvos e quase na posse da plenitude da felicidade celestial. As chamas do fogo purificador do Purgatório são chamas de indizível saudade e amor e não chamas de tormentos insuportáveis e de torturas cósmicas. A dor purificadora do Purgatório assemelha-se à amargura das lágrimas que Pedro chorou após se ter cruzado com o olhar amoroso de Jesus, depois de o ter negado três vezes (cf. Lc 22,61-62). Provavelmente, no momento da morte espera-nos um purgatório como este: “o Senhor olha-nos cheio de amor e nós sentimos uma ardente vergonha e um doloroso arrependimento pelo nosso comportamento mau ou ‘simplesmente’ insensível” (Youcat, n. 159). Neste sentido, o papa Bento XVI identificou o fogo do Purgatório com o próprio Cristo que, com o seu olhar amoroso, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus (Spe salvi, n. 47).

Se o Purgatório é um longo processo de purificação espiritual e de maturação pessoal, então faz todo o sentido e tem muito valor rezarmos pelos nossos irmãos falecidos. Não que nós tenhamos poder de eximi-los do seu processo de purificação, mas podemos alcançar-lhes graça e oferecer-lhes consolação através da nossa oração e penitência, das nossas boas obras e, acima de tudo, da celebração da Eucaristia. E Deus, que está na eternidade, vê como presente a nossa oração futura ou mesmo passada e pode, portanto, por nossa intercessão, autocomunicar-Se amorosamente às almas do Purgatório, penetrando-as com o fogo do seu amor purificador e inflamando-as de amor ardente por Ele, apressando o definitivo encontro com Ele na glória do Céu. A nossa oração pelos defuntos pode não só ajudá-los a eles no seu caminho de purificação espiritual, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 958) para vivermos a nossa peregrinação terrena como um tempo de graça e misericórdia que Deus nos oferece para realizar a nossa vocação à santidade e para decidir atempadamente, com seriedade e responsabilidade, o nosso destino último. A possibilidade de rezar pelos defuntos numa atitude de intercessão solidária e suplicante compromete-nos a viver a nossa esperança na salvação dos outros numa atitude proativa de amor e misericórdia. Nesta perspetiva misericordiosa, Santo Estanislau Papczyński (1631-1701), Fundador dos Marianos da Imaculada Conceição, considerava a solidariedade espiritual em favor dos fiéis defuntos como “a mais elevada manifestação de amor” (Templum Dei Mysticum, Cap. XXI [193]), pelo que vivenciava a devoção às almas do Purgatório não como uma mera prática piedosa, mas como um autêntico apostolado da misericórdia, oferecendo por elas as diversas provações da sua vida pessoal a par das suas orações e mortificações.

Nesta linha de pensamento, o Papa Francisco exorta-nos também a valorizar a súplica de intercessão pelos defuntos na medida em que a intercessão ilumina as recordações do passado, tranquiliza o coração no momento presente e ajuda-nos a continuar a lutar com esperança no futuro (Cf. Gaudete et exsultate, n. 154). A vida humana é como uma viagem no mar da história, com altos e baixos, com névoas e tempestades, uma viagem na qual devemos perscrutar as estrelas que nos indicam a rota. Os nossos entes queridos que souberam viver a vida com retidão são como que estrelas de esperança na nossa vida. Jesus Cristo é o Sol Nascente que se ergue sobre todas as trevas da nossa história humana, mas para chegar até Ele, durante a nossa travessia pela noite escura precisamos de astros luminosos, de pessoas que dão luz recebida da luz d’Ele. E quem mais do que a Virgem Maria, Mãe da graça e da misericórdia, poderia ser para nós sinal luminoso de consolação e de esperança, Ela que pelo seu «sim» abriu ao próprio Deus a porta do nosso mundo, agora, pela sua poderosa intercessão, resplandece na eternidade como Porta do Céu e como Estrela do Mar, socorrendo os vivos e os defuntos, que procuram levantar-se do abismo da culpa (cf. Antífona mariana Alma Redemptoris Mater). Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Ámen.

Padre João Carlos Rodrigues
Congregação dos Padres Marianos da Imaculada Conceição

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