Espiritualidade: «A Igreja do futuro deve ser a Igreja que acompanha» – padre Tomás Halík

Teólogo checo apresenta em Portugal a sua nova obra, «O sonho de uma nova manhã. Cartas ao Papa»

Foto: Agência ECCLESIA/TAM

Entrevista conduzida por Octávio Carmo

Antes da segunda sessão da Assembleia Geral do Sínodo, foi citado numa das meditações do retiro, com a afirmação “o futuro da Igreja depende da sua capacidade de ir ao encontro dos que procuram, na nossa sociedade”. Ir ao encontro. Ainda somos demasiado autossuficientes como católicos?

Penso que deveríamos concentrar-nos mais num setor muito brilhante da sociedade. As pessoas respondem à pergunta “qual é a sua filiação religiosa?” com “nada, nenhuma”. Chamamos-lhe, em sociologia, os “nenhuns” [nones]. Alguns deles são ateus dogmáticos, mas é uma minoria. Alguns são apateístas, apáticos à religião, é algo que não lhes interessa. Mas também há muitos buscadores espirituais. Há também muitas pessoas que foram educadas como católicas, mas que depois deixaram a Igreja, porque não encontraram as verdadeiras respostas para as suas questões existenciais.

Portanto, este é um sector [nones] muito colorido e crescente das pessoas do nosso mundo. E penso que devemos encontrar uma forma de dialogar com eles, de os tentar compreender. Não podemos empurrá-los de volta para as estruturas existentes da Igreja, as estruturas institucionais, as estruturas mentais. Devemos abrir mais estas estruturas, abrir a nossa mentalidade e acompanhar estas pessoas. Isto é também a sinodalidade. O Papa Francisco disse que a Igreja deve ser acolhedora, a Igreja deve ser capaz de integrar muitas pessoas, a Igreja para todas as pessoas, todos, para todos. Por isso, penso que este diálogo com essas pessoas, especialmente com os que procuram [o autor usa a expressão inglesa ‘seekers’], é muito importante. Não creio que tenhamos feito o suficiente, neste aspeto.

 

No seu novo livro, encoraja a redescobrir a força interior esquecida da religião…

Sim, a força interior da religião é a espiritualidade. Concentramo-nos demasiado nas estruturas institucionais, nos rituais, mas também nas questões morais. Todas estas coisas são importantes, mas mais importante ainda é a vida espiritual pessoal das pessoas, o estilo do ser cristão. E isso está ligado à dimensão espiritual da vida humana, penso que deveria ser a coisa mais importante atualmente, no nosso trabalho pastoral.

Isso era evidente no tempo da Covid-19, quando as igrejas estavam fechadas. Para algumas pessoas, o cristianismo era praticamente ir à Missa de domingo. Mas as igrejas estavam fechadas e tiveram de encontrar outra forma de praticar a sua fé. E penso que foi realmente a pedagogia de Deus. Por vezes, Deus fecha-nos algumas portas, algumas portas tradicionais, e temos de procurar criativamente outras. Para muitas pessoas, foi a oportunidade de falar sobre a fé nas suas próprias famílias. Há muitas famílias católicas que nunca falam de fé em casa, francamente, sobre as suas dúvidas, sobre os seus problemas.

E neste tempo do coronavírus, quando as igrejas estavam fechadas, começaram, algumas delas, a ler a Bíblia em casa, a falar sobre a fé. E acho que isso é muito importante.

 

A propósito disso, insistiu que a chamada perda de fé na sociedade secular não é um esgotamento da espiritualidade humana. Tem impacto nas formas institucionais de religião. Isto é um desafio para a Igreja Católica?

Sim, claro, mas temos de ser flexíveis e criativos, encontrar novas formas. Por exemplo, penso que a vanguarda do novo estilo pastoral é o chamado cuidado pastoral por categorias. Os capelães do exército, os capelães das prisões, os capelães das escolas, os capelães dos hospitais, são para todos. O capelão da prisão não é só para os criminosos piedosos, é para toda a gente. Penso que é o nosso futuro, porque toda a gente tem uma dimensão espiritual na sua vida, na sua personalidade, e as pessoas precisam de ser acompanhadas, porque a vida espiritual é algo que não é dado por completo no início. É uma vida, e na vida há crises, há buscas, há algumas noites escuras. É assim na nossa vida, e é assim na nossa vida espiritual, é assim na nossa fé.

As pessoas precisam de alguém que as acompanhe com respeito, que as escute, não apenas para ter todas as boas respostas para todas as perguntas. Não, para ouvir, para acompanhar, para irmos juntos, e esta é a sinodalidade, irmos juntos. Por isso, penso que, neste acompanhamento das pessoas, a Igreja do futuro deve ser a Igreja que acompanha.

 

O seu novo livro chega num momento muito especial, uma vez que já mencionou a sinodalidade, o processo sinodal. Este livro é composto por uma série de cartas a um Papa imaginário, Rafael, e nos seus sonhos há uma nova forma de olhar para o serviço de um Papa. O próprio processo sinodal também revisitou a questão das formas como o bispo de Roma exerce o seu ministério. Que mudanças podemos esperar?

O papado é uma das instituições mais antigas do nosso mundo e está a mudar, na história. Está a mudar muito: se vir os Papas na antiguidade, na Idade Média, no século XIX e atualmente, há grandes diferenças. Até durante a minha vida, quando era criança, se vir as fotografias e os filmes com o Papa Pio XII, há um triunfalismo com todo os desfiles, e isso muda passo a passo. Mas também, durante a minha vida, vi o Papa Paulo VI, que era levado na cadeira gestatória, e agora o Papa Francisco está a beijar e a lavar os pés a mulheres muçulmanas na prisão…

Portanto, há grandes mudanças. Também o Papa João Paulo II ofereceu um diálogo com as Igrejas não-católicas sobre o papel do sucessor de Pedro como bispo que constrói as pontes entre as Igrejas. Este é o seu papel, e penso que muito foi feito, mas ainda há muito a fazer, para encontrar estas formas de construir pontes, e precisamos do Papa como representante de todo o Cristianismo, porque para o diálogo com os muçulmanos e com as outras religiões é muito importante que tenhamos um porta-voz. O Papa Francisco é muito popular entre muitas pessoas fora da Igreja – é muito criticado por algumas pessoas dentro da Igreja – e penso que este seria o objetivo do papado no futuro, construir pontes.

 

A esse respeito, acha que seria importante promover a celebração de um Sínodo ecuménico sobre a evangelização, como sugerido no documento final da última Assembleia Sinodal?

Sem dúvida. Enviei uma carta ao Papa Francisco com algumas propostas. Tive a ideia de que talvez o próximo passo no caminho sinodal devesse ser o Sínodo ecuménico dos teólogos.

Em maio, estive a acompanhar o encontro sinodal dos párocos, em Roma: foi importante, porque os párocos são muito importantes na Igreja, mas também os teólogos são muito importantes na Igreja, e penso que também merecem algum tipo de Sínodo, que deveria ser ecuménico. Especialmente no aniversário do primeiro Concílio Ecuménico [Niceia, 325], no próximo ano, é uma boa oportunidade para convocar este primeiro Sínodo teológico, o Sínodo ecuménico.

Há muitas conferências, também as conferências ecuménicas, mas é algo diferente, este método sinodal. Não é apenas a conferência científica, é esta conversa no Espírito Santo. Há este momento de nos ouvirmos uns aos outros, de contemplarmos juntos, e penso que seria um grande acontecimento, um Sínodo de teólogos, mas ecuménico. E o tema deveria ser reconhecer os sinais dos tempos, quais são os desafios do nosso tempo, e como a Igreja deve reagir a esses desafios.

 

Nesta perspetiva, que papel desempenhará a sinodalidade no futuro da Igreja?

Penso que é absolutamente decisivo, é o mais importante, porque deve ser a forma da Igreja. O Papa Francisco disse que a sinodalidade é uma nova forma de ser cristão, é uma nova forma de ser Igreja no nosso mundo. Portanto, nova e velha, porque, de certa forma, está a regressar às raízes apostólicas da Igreja. A velha Igreja, a Igreja dos inícios, era a Igreja sinodal, mas, especialmente durante a modernidade tardia, a Igreja tornou-se uma espécie de contracultura contra a cultura moderna, a ciência moderna, a filosofia moderna, etc. Sem a sabedoria de reconhecer o que é realmente mau e perigoso, mas o que é também uma promessa.

Por isso, penso que devemos ser uma Igreja sinodal, isto é, a Igreja que é mais católica no sentido universal, ecuménica, aberta, acolhedora, integradora, portanto, realmente mãe e irmã.

 

Quando o processo sinodal começou em 2021, houve uma consulta global e muitas, muitas questões foram trazidas para a mesa. Nem todas foram decididas ou discutidas, claro, há grupos de trabalho agora no Vaticano até ao próximo ano, mas podemos imaginar, por exemplo, padres casados, os ‘viri probati’, para o serviço habitual nas paróquias? E que papel espera que as mulheres possam desempenhar nestas novas comunidades?

Em primeiro lugar, a Igreja precisa de uma descentralização, porque muitas coisas dependem da cultura. Sabe, já foi visto no Sínodo sobre a família [2014-2015], que a família em França é muito diferente da família em África, por isso não podemos ter uma orientação geral. Sim, há algumas coisas que são substanciais, mas há muitas coisas que são especiais, consoante a cultura e a mentalidade.

Há muitos padres casados na Igreja Católica. A Igreja Católica de rito oriental tem padres casados, e nós também temos na nossa parte latino-romana da Igreja Católica, houve padres casados durante mil anos, e agora há alguns deles, que se converteram do anglicanismo e de algumas igrejas protestantes, que são padres casados, e não há qualquer problema com isso. Haverá talvez, mas tem de haver uma reforma da educação, da formação dos padres, porque o padre com uma família está numa situação muito diferente do celibatário. Isso pode ajudar a resolver alguns problemas, mas haverá novos problemas, sei-o pelos meus amigos da Igreja Protestante, que têm pastores divorciados e por aí fora…

Não é a solução de todos os problemas, mas penso que no futuro haverá ambos na Igreja, padres casados e celibatários. Os celibatários talvez voltem às origens, que foram as comunidades monásticas, e isso tem sentido, mas para alguns padres nas paróquias seria talvez mais conveniente se tivessem a sua própria família. Veremos.

A situação das mulheres depende ainda mais da cultura, do reconhecimento da sua dignidade. A situação na nossa parte do mundo é bastante diferente da situação em muitos países africanos ou asiáticos. Por isso, penso que no futuro haverá muito mais lugares, cargos e possibilidades para as mulheres na Igreja. Passo a passo, o Papa está já agora a convidar as mulheres para alguns papéis importantes na Igreja, mesmo no Vaticano, e penso que este caminho irá mais longe, mas também depende das condições culturais.

 

Falou já do encontro sinodal dos párocos, quando esteve lá disse que o catolicismo deve livrar-se da heresia do triunfalismo. Isso é um sintoma de medo? Poderá explicar algumas opções políticas que se dizem cristãs?

O que chamo de triunfalismo é a tentação de não distinguir entre a Igreja na terra, a comunidade dos peregrinos, e a Igreja triunfante: não somos a Igreja dos santos no Céu, portanto também não somos os detentores de toda a verdade. Apenas Jesus Cristo pode dizer “eu sou a verdade”, nós não somos Jesus Cristo, somos seguidores de Cristo, somos discípulos de Cristo, estamos a caminho, somos ‘communio viatorum’, somos a comunidade dos peregrinos, esta é a definição da Igreja pelo Concílio do Vaticano, baseada nas fontes bíblicas.

Este triunfalismo é uma grande tentação e temos de dizer “não, a Igreja tem de ser a Igreja que está sempre a caminho”. Não podemos parar e dizer que agora está tudo bem, que não podemos mudar nada, não, a Igreja está sempre em movimento e a identidade da Igreja não é um conjunto de artigos, mas Cristo vivo ressuscitado, o Cristo que vive na Igreja, e a obra do seu Espírito está em curso, não podemos pará-la.

 

Falando de alt-right, disse que se as Igrejas se casarem com partidos políticos, pagarão sempre caro por isso. Porquê?

Claro, porque a Igreja deve ser realmente uma Igreja universal e, portanto, há pessoas que são mais de esquerda, algumas pessoas precisam de mudanças, são mais progressistas; já algumas pessoas sentem a responsabilidade da tradição. Ambas devem ter o seu lugar na Igreja e têm a liberdade de escolher os seus partidos políticos.

Claro que há alguns partidos extremistas, à esquerda e à direita, cujo programa não é compatível com os valores fundamentais do Cristianismo, por causa do racismo, da violência, etc. Há fanatismo da esquerda e da direita, temos de dizer não a esses partidos extremistas, mas há muitos partidos democráticos, têm programas diferentes e os cristãos têm a liberdade de escolher, como aconteceu nas últimas eleições nos Estados Unidos da América, quando o Papa disse que cada um deve escolher de acordo com a sua própria consciência.

 

No seu livro, fala das tecnologias digitais, que estão a transformar o nosso mundo e a nossa relação com a verdade. Pergunto-lhe se a teologia tem feito o suficiente, se tem estado suficientemente atenta a este facto?

A tecnologia está a mudar muitas, muitas coisas e a inteligência artificial é um instrumento muito poderoso, pode ser um instrumento para o bem e para o mal também. Por isso há muitos artigos teológicos sobre isto, mas ainda é uma questão em aberto e veremos no futuro a influência da inteligência artificial na pedagogia e também na Igreja.

 

Diz que o Papa levou o Cristianismo ao limiar de um lugar espiritual novo, mais alargado e anteriormente desconhecido. O que é que sonha para a Igreja, depois de Francisco?

Gosto muito do Papa Francisco e espero que o seu sucessor siga na mesma direção, é preciso ser sensível aos sinais dos tempos. O mundo está a mudar muito rapidamente, na nossa era, e será uma tarefa muito importante para o Papa ser o guardião da tradição, nós temos a responsabilidade pela nossa tradição, mas por outro lado temos de estar abertos, sensíveis aos sinais dos tempos.

Espero que o próximo Papa seja o homem que tenha a coragem de fazer algumas mudanças, mas também com a fidelidade ao que é realmente fundamental para os cristãos.

 

É curiosa a ideia de um lugar espiritual conhecido, porque como católicos temos tendência a pensar que já descobrimos tudo sobre a espiritualidade…

Penso que toda a gente, cada pessoa tem a sua vida espiritual, mas deve ser cultivada, tal como o sentido da beleza, o sentido da arte, da música, do humor. Penso que também é papel da Igreja que acompanha cultivar a nossa vida espiritual pessoal.

 

O mundo parece estar a desmoronar-se, com as guerras, as crises e as alterações climáticas, mas o seu novo livro é sobre sonhos. Devemos atrever-nos a ter esperança?

Claro que sim. A nossa tarefa é sermos o povo da esperança. Faço uma distinção entre otimismo e esperança. O otimismo é por vezes uma ilusão de que tudo será melhor, melhor e melhor. É uma ilusão. Por vezes, passamos por momentos muito difíceis, pelas noites escuras da alma, na nossa vida privada, também na nossa história, e temos de atravessar esta crise e tentações, estes períodos difíceis no caminho da Igreja, através da história e dos nossos caminhos individuais.

Assim, a esperança é uma força para suportar a situação, que é objetivamente difícil, mas temos a nossa confiança que Deus tem a palavra na sua mão; por vezes não compreendemos muitas coisas, mas a fé é também paciente. Escrevi sobre isso no meu primeiro livro, que foi traduzido para português, era a ‘Paciência com Deus’. Às vezes a fé em Deus está escondida, mas devemos ter paciência e confiança. A esperança é também a paciência para suportar uma situação dessas, porque estamos perante um mistério.

A fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério. Por isso, não podemos ter todas as coisas abertas, claras. São Paulo diz que vemos como num espelho, apenas parcialmente. Por vezes temos de viver com algumas questões em aberto, e não precisamos do otimismo como uma ilusão, de que tudo vai correr bem, mas da paciência e da força para suportar a situação difícil.

 

A paciência para esperar por uma nova manhã?

Com certeza.

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Agência ECCLESIA

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