Em Ti cantamos a Beleza da Misericórdia do Pai

Homilia de D. António Marto na Peregrinação Internacional Aniversária de Outubro de 2006 Diante da tua imagem de Nossa Senhora de Fátima, ó Virgem Mãe, como peregrino entre os peregrinos que hoje aqui acorreram em multidão, em seu nome e em nome pessoal, saúdo-Te afectuosamente com o conhecido hino: Ave, Maria, mulher admirável, honra do povo! Em Ti cantamos a grandeza do Pai! Humilde serva, formosa Senhora, Ditosa Mãe, na dor e na paz. Em Ti cantamos a grandeza do Pai! Nesta minha saudação de amor à Virgem, quero envolver num grande e afectuoso abraço todos vós que estais a viver com a vossa presença este momento de graça. Saúdo com fraterno afecto os meus irmãos bispos e sacerdotes concelebrantes, particularmente os bispos dos países de língua portuguesa que se reuniram em Fátima. Ao presidir hoje, pela primeira vez, a uma peregrinação do dia 13, na minha missão de Bispo de Leiria-Fátima, vem-me à memória a cena dum vitral da ábside duma pequena igreja de Bénodet, na Bretanha (França): a Virgem com o menino aparece a um bispo ornado com as insígnias: o báculo, a mitra e as vestes episcopais. E Maria, de pé, por cima dum altar, estende-lhe o menino Jesus. Pouco importa o acontecimento que motivou esta representação. O que interessa é a simbólica da mensagem. Parece que Maria está a dizer-nos: “Atenção! Não sou eu a mais importante nem tu, bispo, com as tuas insígnias episcopais: é o meu Filho! Como eu, com o sopro do Espírito, continuai a propô-lo ao mundo de hoje. Sede simples, verdadeiros e humildes para não chamardes a atenção sobre vós, mas sobre Jesus e a Sua mensagem. Proponde a Palavra de Deus, proponde os sacramentos da graça, conduzi à Fonte da Vida que é Cristo, Revelador do Pai e Redentor do homem e do mundo, ajudai a humanidade a descobrir e a contemplar a Beleza do Seu rosto e da Sua misericórdia e a deixar-se embelezar por ela.” Que missão mais bela poderia a Mãe de Jesus assinalar à Igreja hoje, a este santuário de Fátima, “catedral espiritual do mundo”, e ao seu humilde bispo, Ela cuja grandeza está na humildade e no seu serviço ao Filho e à humanidade? Contemplar a Beleza da Divina Misericórdia Hoje, com esta celebração eucarística, damos início ao Ano da Misericórdia para comemorar essa extraordinária manifestação da misericórdia através de Maria, aqui na Cova da Iria, há noventa anos. Por isso quero convidar-vos a contemplar juntamente comigo, com os olhos cheios de deslumbramento e o coração cheio de gratidão, a beleza do mistério da misericórdia. A liturgia de hoje, desde os cânticos até às orações e às leituras, é toda ela como que uma cantata, como uma grande variação sobre a bondade e a misericórdia de Deus, que tem o seu vértice na exclamação comovida de S. Paulo: “Deus é rico de misericórdia pelo imenso amor com que nos amou, precisamente a nós que estávamos mortos pelas nossas faltas”. Aqui S. Paulo oferece-nos a palavra-chave para compreendermos que a história da salvação – da nossa salvação – é uma epopeia da misericórdia divina. Mas particularmente significativa e iluminante é a página do Evangelho em que S. João visualiza o rosto concreto desta misericórdia no encontro da mulher adúltera com Cristo. Esta cena é uma pérola evangélica de incomparável beleza, de comovente ternura e profundidade doutrinal que Santo Agostinho sintetiza numa frase lapidar: “Relicti sunt duo: misera et misericordia”! Ficaram só os dois: a miséria humana e a misericórdia! A pobre pecadora aparece em toda a miséria da sua culpa: não só perdeu publicamente a honra, mas está prestes a perder a vida. Jesus manifesta-se como a misericórdia incarnada e pronuncia um juízo de absolvição: “Nem eu te condeno. Vai e não voltes a pecar”. Tu vales mais, infinitamente mais, do que o teu pecado. A dramaticidade da cena é dada pelo confronto entre o abismo da miséria humana e o abismo ainda maior do Amor que Deus tem por nós. Estamos diante das dimensões inenarráveis e indizíveis deste Amor, que S. Ambrósio comenta de modo admirável: “Não tenhas medo de que o Pai não te acolha; na realidade, Ele não se alegra com que os vivos se percam. Tu tremes por tê-lo ofendido; mas Ele restitui-te a tua beleza”. De facto, Jesus restituiu à adúltera a beleza perdida: salvou-a como mulher, na sua dignidade de pessoa, na sua humanidade, na sua feminilidade, na verdade do seu amor, na sua relação a Deus. Ela é, de ora em diante, um texto vivo e eloquente da misericórdia de Deus. Eis pois a beleza do Amor misericordioso que nela se espelha: o Amor que perdoa, cura as feridas, resgata, enche de graça e ternura, cumula de dons, rejuvenesce, defende com justiça os oprimidos, arranca ao poder do pecado e da morte, relança no caminho de uma vida nova. É aquele Amor entranhado do Pai que diz a cada um: Tu vales mais, infinitamente mais, do que o teu pecado. Tem confiança! Não há qualquer situação irremediavelmente perdida. Repensar a nossa história à luz da Misericórdia Na figura desta mulher do evangelho podemos ler os dramas da vida de cada um e da humanidade. Ela é imagem de uma humanidade que experimenta tremendas desilusões e gritos de desespero porque não consegue ser verdadeiramente humana; que se apercebe dos gérmenes de violência, ódio, crueldade e morte que traz consigo, mas que clama e espera por redenção. Quando desespera, está perdida; quando perde os horizontes de esperança, fecha-se, envelhece, morre, suicida-se. Cristo deu e dá ao mundo uma outra beleza: a da misericórdia, a do Amor que salva. Por isso, François Mauriac pôde dizer: “sobre o pecado e sobre o mal do mundo resplandece sempre a luz do Amor de Deus”. Que seria o nosso mundo sem a realidade da misericórdia? Uma terra donde fosse excluída a misericórdia poderia porventura ser legalmente justa, mas depressa se tornaria irrespirável e os homens tremeriam de frio. Ressoa hoje aqui, com o sabor de testamento, o último apelo de João Paulo II que não chegou a pronunciar por ter morrido na véspera da celebração do domingo da Divina Misericórdia: “À humanidade que, por vezes, parece perdida e dominada pelo poder do mal, do egoísmo e do medo, o Senhor ressuscitado oferece em dom o Seu amor que perdoa, reconcilia e abre o ânimo à esperança. É o Amor que converte os corações e dá a paz. Quanta necessidade tem o mundo de acolher a misericórdia divina” (L’Osservatore Romano 04/04/05). O amor rico em misericórdia é o verdadeiro rosto de Deus “o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação” (2 Cor 1,3). Se acreditarmos no Seu Amor e no Seu perdão regenerador a nossa conversão será profundamente sincera e não fruto do medo de um Deus justiceiro. Maria, Mãe e Rainha da Misericórdia Ao Pai das misericórdias faz eco a Mãe da misericórdia. Um grande teólogo, U. von Balthasar, afirma que se o olhar de numerosos cristãos parece hoje crispado, inumano e por vezes feroz, é porque negligenciaram na sua vida a presença da Mãe do Salvador, que proclama que a misericórdia de Deus se estende de geração em geração (cf. Lc 1,50). É à luz do mistério da misericórdia que devemos procurar compreender a extraordinária mensagem que daqui de Fátima começou a ressoar por todo o mundo desde aquele dia 13 de Maio de 1917. Aqui, Maria, a Mãe do Salvador, proclamou mais uma vez a misericórdia divina, fazendo sentir o grito da sua grande dor e do seu grande amor pela humanidade “que anseia por erguer-se do abismo” em que caiu. “É a dor da Mãe que a faz falar; está em jogo a sorte dos filhos” (João Paulo II). Fê-lo com uma mensagem impressionante de advertência, para que a humanidade e a Igreja tomassem consciência da dimensão infernal da loucura do mal e do pecado na história com o seu poder aniquilador; mas ao mesmo tempo, com uma mensagem de consolação e de esperança naquele Amor misericordioso que é sempre maior que o nosso coração, mais forte que os nossos males e de que se fez eco o seu coração terno e materno, o seu Imaculado Coração. Só a distância do tempo nos permitiu captar a profundidade e a relevância histórica e profética da mensagem. Ela continua a dar-nos ânimo no início do milénio: Abri o vosso coração a Cristo! Não tenhais medo! Não tenhais vergonha do Evangelho! A fidelidade e a misericórdia de Deus são mais fortes que toda a fatalidade e todo o pecado! Convertei-vos, convertei o vosso coração. Ao Teu coração materno, Senhora, queremos hoje confiar os nossos anseios e as nossas inquietações e as do nosso mundo, com a invocação que aqui fez ressoar o Papa João Paulo II: monstra Te esse Matrem, mostra que és nossa Mãe, Mãe de misericórdia! Mãe das crianças: como o foste de Jesus menino, ajudando-as a crescer em idade, sabedoria e graça; Mãe dos jovens: que pelo testemunho da beleza da tua humanidade e da tua fé possam descobrir o encanto e a beleza da vida com Cristo; Mãe dos lares e das famílias, a quem chamas a redescobrir a beleza do seu amor. Faz que ele se torne mais forte que toda a fraqueza e toda a crise; Mãe dos doentes e dos idosos: pela constante protecção nos seus sofrimentos e na solidão, sê para eles Consoladora dos aflitos; Monstra Te esse Matrem, mostra que és nossa Mãe! Mãe da nossa fé: que nos dás a conhecer Jesus, bendito fruto do teu ventre, e nos convidas a acolhê-Lo com a alegria e a prontidão do teu “sim”; Mãe da Igreja, humanamente limitada e pobre, santa e pecadora, mas empenhada como Tu em abandonar-se à acção do Espírito que a santifica, renova e embeleza, para que deixe transparecer a beleza do rosto de Cristo no mundo; Monstra Te esse Matrem, mostra que és nossa Mãe! Mãe do nosso mundo, da grande família humana; Mãe dos pobres, que recordas ao Pai na oração do Magnificat, dos humilhados e ofendidos na sua dignidade, dos que não encontram trabalho, nem casa, nem pão… Que vejam reconhecida a sua dignidade; Mãe dos povos, no início deste milénio, tão ameaçados por divisões e confrontos, por ódios, rancores, vinganças e terrorismos. Caminha com os povos para o diálogo das culturas e das religiões, para a solidariedade e para o amor; Mãe, particularmente, dos povos do Médio Oriente, do povo querido de Timor e do povo do Darfur, tão martirizados pela violência e pela guerra. Sê para eles Mãe do perpétuo socorro e Rainha da paz! Monstra Te esse Matrem, mostra que és nossa Mãe! Sim, continua a mostrar-te Mãe para todos, porque o nosso mundo tem necessidade de Ti, Mãe da divina misericórdia, Mãe da consolação, da esperança e da paz! Vela por nós, filhos teus, Mãe de Jesus, nosso Bem, Tu podes, és Mãe de Deus, Tu deves, és nossa Mãe! D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima Fátima, 13 de Outubro de 2006-10-06

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