Como reagiu a Igreja em Portugal ao discurso do Bento XVI?

D. António Marcelino: «activismo pouco centrado no essencial e dificuldade de leitura actual» “Na situação actual da Igreja e do mundo, após um tempo tão largo de imobilismo e de medo por parte da Igreja ante as mudança sócio culturais do mundo, pode dizer-se que é mais seguro o risco de novas experiências, tão ponderado e medido quanto possível, que permanecer apegados a formas tradicionais, que hoje já não se adaptam à expressão da mensagem cristã.” (Karl Rahner) 1. Creio ser de justiça afirmar-se que, certamente, os responsáveis da Igreja em Portugal, com os seus colaboradores imediatos, conscientes da realidade que vivem e em que vivem, estão preocupados, para além da palavra do Papa, em encontrar caminhos adequados para responder ao maior desafio que é feito à Igreja no nosso país, o da evangelização, bem como o de dar à Igreja Diocesana e às suas comunidades, um rosto novo de cariz conciliar. É precisamente este o rosto de uma Igreja Comunhão, serva e pobre, expressão cada vez mais clara do Povo de Deus que caminha no tempo, em luta e sofrimento, portador das promessas e das certezas de Deus, a favor de todos, sem excepção. Até que ponto o estão logrando, é uma pergunta pertinente nesta hora e em todas as horas, dominadas pela urgência da missão, em tempos difíceis e, por isso mesmo, mais insistentes e desafiantes. Não basta, hoje, o que sempre se fez com generosidade renovada. Tempos diferentes, mundo diferente, desafios diferentes, pensares e saberes diferentes pedem uma acção igual nos objectivos, mas diferente nas suas diversas expressões, mesmo correndo riscos, como adverte K Rahner. 2. Bento XVI falou da necessidade de abrir caminhos de comunhão que permitam ver a imagem e o rosto inequívocos de uma Igreja que caminha ao ritmo do Vaticano II, na qual todos os seus membros, conscientes da sua dignidade e do seu lugar na comunidade, se sintam protagonistas integrados e participantes na vida eclesial. Insistiu, neste sentido, na necessidade de “mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros”. Isto exige que se veja, com verdade e coragem, se a Igreja em Portugal já assumiu ou está assumindo as características de uma Igreja Povo de Deus, por isso mesmo Igreja Comunhão, plural nos dons, nos carismas e nos ministérios, mas uma só na dignidade comum de todos os seus membros, na lei que os anima e compromete, na finalidade concreta da sua missão de anúncio de Jesus Cristo e de diálogo com o mundo. Não é fácil poder dizer-se que este caminho, que é, certamente, desejo e propósito de todos, está andado ou a ser andado com resultados visíveis. O Papa deu mais uma achega neste sentido, ao falar do “recto ordenamento da Igreja” em Portugal sobre a atribuição das responsabilidades que competem a cada um. De facto, a Igreja do Vaticano II não pode ser mais uma Igreja de cristandade, na qual a tradicional vertente clerical substitua ou impeça a integração dos leigos na vida e na missão concreta da Igreja. Se examinarmos esta primeira orientação pastoral do Papa, talvez tenhamos que dizer que os resultados não são tão positivos, a nível de todo o país, como seria desejável que já fossem, quarenta anos depois do Concílio. O ritmo tem sido diferente e os resultados não podem ser iguais, mas a verdade é que, também não se viu nenhum programa com linhas orientadoras do mesmo, emanado da Conferência Episcopal Portuguesa com essa finalidade. A autonomia das dioceses, com as suas tradições, caminhada própria e perfil humano e social diferentes, tem dificultado sempre iniciativas comuns necessárias em ordem a uma desejada e urgente renovação. Mas, sem estas, pensadas por todos os que no Povo de Deus têm capacidade para isso, e são muitos, e não apenas pelos bispos com os seus presbitérios, e acolhidas, responsavelmente, por todas e cada uma das dioceses, não se vislumbram mudanças na fisionomia da Igreja e no seu empenho actualizado da missão. Enquanto houver algum predomínio do clericalismo, aos diversos níveis, e do individualismo pastoral, que parece satisfazer cada um na autonomia do seu território, não será possível abrir caminhos novos para uma Igreja Comunhão, suporte de uma Missão que a identifica com o projecto de Jesus Cristo Ao longo deste ano não se viram muitas iniciativas nesse sentido e poderá dizer-se que, lamentavelmente, o processo de renovação, a nível nacional, continua mais ou menos parado, fazendo-se aqui e ali o que parece bem ou possível a cada um, sem qualquer exigência comum, como se, de Norte a Sul os grandes problemas são fossem iguais e os territórios geográficos não confinassem. 3. Bento XVI disse ainda, que o processo de renovação tem um ponto de partida essencial: o “encontro pessoal com Jesus Cristo que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”. Acrescenta que “a evangelização da pessoa e das comunidades humanas depende, absolutamente, da existência ou não deste encontro com Jesus Cristo”, no qual é importante, se não mesmo fundamental, o caminho da “iniciação cristã” nas comunidades paroquiais, que devem, agir como comunidades educativas da fé. Assim se poderá lograr uma vivência cristã, pessoal e comunitária, que seja garantia de fidelidade e de dinamismo apostólico, frente a uma sociedade laica, na qual Deus parece ter cada vez menos lugar. Os bons propósitos de uma iniciação cristã programada de que se foi falando em diversas instâncias, não foram longe e não se viu reflexão nesse sentido, nem a nível de CEP e seus serviços, nem a nível da quase maioria das dioceses, tanto quanto se sabe. O que se fez numa ou noutra foi constando tanto em dioceses como em movimentos laicais de cariz evangelizador. Fui, por curiosidade, recordar as intervenções de João Paulo II aos bispos portugueses em anteriores visitas ad Limina (1982, 1987, 1999). Bento XVI seguiu no mesmo sentido, com palavras iguais ou próximas, ante a necessidade de evangelização numa sociedade em mudança e com um povo eivado de tradições religiosas , por vezes pouco consistentes e menos esclarecidas. O tempo vai passando e estamos neste ponto: uma Igreja, com grupos maioritários válidos e apostólicos, mas pejada de pagãos ou de cristãos incoerentes. Que vão perdurando e não diminuindo por uma sacramentalização sem evangelização ou catequese. A nível geral e durante séculos, não se fez nas comunidades paroquiais, com raras excepções proporcionadas por movimentos especializados, uma verdadeira iniciação cristã, porque se considerava desnecessária numa Igreja de cristandade e de transmissão pacífica da fé. E, onde se começou um novo caminho neste sentido, com jovens e adultos, iniciativas válidas, sérias e reflectidas foram ficando pelo caminho, por falta de convicção pastoral e de educadores da fé, preparados e disponíveis, que acreditem que o caminho é este. Aparece mais visível, entre nós, a preocupação de responder positivamente ao desejo do Papa, quando ele disse aos bispos: “Apraz-me pensar em Fátima como escola de fé com a Virgem Maria por Mestra; lá ergueu Ela a sua cátedra para ensinar aos pequenos videntes e depois às multidões as verdades eternas e a arte de orar, crer e amar”. Em Fátima vão-se vendo coisas novas e esperemos que com futuro. 4. Passado mais um ano, é minha opinião, que, apesar da sua generosa entrega a actividades pastorais tradicionais, ainda que com alguma cosmética exterior de novidade, a Igreja em Portugal parece padecer de dois males do tempo, que paralisam, em grande parte, a sua acção e não permitem projectos pastorais inovadores. Trata-se de um activismo pouco centrado no essencial e para este orientado, e uma dificuldade concreta de paragem para ler a realidade, discernir com critérios válidos os apelos profundos das pessoas em geral e muito especialmente dos mais jovens. Assim aparece o empenho em rumos, traduzidos em propostas e respostas a uma sociedade que já não age na linha da fé, nem procura inspiração na mensagem evangélica e cristã. Muita gente generosa continua a esgotar-se em actividades sem futuro consistente; muitos planos pastorais aparecem mais voltados para os problemas internos da Igreja, por importantes que estes sejam, que para o seu dever como servidora do mundo que tem e ouvir para melhor dialogar; a muitos leigos bem preparados pede-se-lhes o que muitos outros podem fazer e não um contributo de reflexão e planificação para que têm saber e competência. O tempo passa e parece ser melhor caminho na Igreja, para alguns responsáveis, agir em função de imediatos que programar por objectivos. Organizar a Igreja como sociedade humana e com rosto social aceitável é muito diferente e, provavelmente, mais fácil, que revitalizá-la como comunidade de fé e como comunidade fraterna, capaz de uma missão no tempo, que é anunciar Jesus Cristo, como único Salvador, e saber dialogar com o mundo secularizado, em ordem à sua humanização e procura de melhores soluções para os seus maiores problemas, mormente no campo da justiça, da verdade e da paz. Neste contexto, para a Igreja e sua acção, a criatividade é fundamental, com tudo quanto esta exige em relação a meios necessários, que vão além dos habituais. 5. O problema da Igreja, hoje entre nós, parece ser o da sua capacidade de se situar validamente, quer na fidelidade dinâmica às orientações conciliares que a fazem regressar às raízes e às fontes daquilo que no cristianismo é evangelicamente essencial, quer de viver e agir num mundo diferente onde as dificuldades têm de ser consideradas como desafios e oportunidades. Ante tempos novos, Bento XVI está dando à Igreja a que preside, apesar da sua idade, um testemunho extraordinário de fidelidade corajosa ao essencial e de abertura, com uma sensibilidade invejável, ao mundo actual e aos seus dinamismos, dialogando sem receio e abrindo-se aos valores emergentes, venham de onde vierem. A visita pastoral recente a França e as notícias que cada dia nos chegam dos seus mais diversos encontros e intervenções, em Roma ou noutras paragens, mostram caminho a seguir e a actualidade das suas advertências e orientações. Hoje, para todos, mesmo não crentes, é preciso que a Igreja mais responsável dê razões de esperança, quer aos seus membros, quer à sociedade em geral. É este o seu dever A comunhão com Pedro para melhor serviço do Reino, também se situa nesta linha. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro

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