CIBERCULTURA – Escutar o bater do coração

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Em Aldea del Fresno, Izan Ilevaba de 10 anos segura-se aos ramos de uma árvore para sobreviver à noite de solidão da torrente do rio Alberche. Não sabe o que aconteceu à sua família. Tem medo de perder as forças e não sobreviver. Na manhã de segunda-feira, Eduardo Cañadas encontra Izan e salva-o. O menino diz-lhe apenas «Gracias, gracias, gracias.». Este é um drama recente gerado pela intensificação das catástrofes naturais devida às alterações climáticas. Pouco a pouco, os receios começam a sair do papel dos relatórios que alertam há muito para estes efeitos e entram na vida concreta da famílias. Antes da JMJ, no coração dos jovens que participaram no 4º Congresso Internacional pelo Cuidado da Criação, organizado pela Fundação João Paulo II para a Juventude, está um Manifesto; que expressa as razões do batimento do seu coração por tudo aquilo que está a acontecer à nossa casa comum.

Foto de Aziz Acharki em Unsplash

A experiência do bater do coração é o sinal mais evidente de estarmos vivos, assim como pensar no batimento do coração de quem mais amamos (familiares, amigos, colegas), mas quando o Papa pede para escutar o batimento do coração da criação e do coração de Deus, é somente uma frase bonita, metafórica e apenas para nos inspirar a aspirar às coisas do alto ou às mais profundas, mas inconsequente? A metáfora é importante no processo de compreensão da realidade se faz sentir ao nosso redor, mas sempre me questionei como seria possível experimentar esta metáfora do batimento do coração da criação e do coração de Deus.

O batimento de um coração traduz um ritmo que serve para bombear sangue que vivifica o corpo de todo o ser vivo, levando o oxigénio às nossas células que desse precisam para funcionar. O coração da criação no contexto da nossa casa comum poderia corresponder às plantas e árvores que produzem o oxigénio necessário à nossa respiração. Mas sem a energia solar, não seria, também, possível haver ventos que transportam esse oxigénio para todas as partes do nosso planeta. O coração da criação é um conjunto complexo de relações incertas e sensíveis aos nossos comportamentos. Por isso, escutar o coração da criação implica conhecer e compreender um pouco melhor estes relacionamentos e isso é um grande desafio porque implica aprender coisas novas a partir daquilo que os cientistas nos explicam e esses (eu inclusivé) estão ainda a aprender como comunicar o que é complexo de um modo compreensível (não simples). Aliás, “Informarmo-nos e formarmo-nos” é um dos compromissos dos jovens naquele Manifesto. E poderíamos pensar que escutar o coração de Deus seria mais evidente, mas talvez não seja.

O coração de Deus faz-me recordar o coração de Jesus que batia no seu tempo, mas parou com a Sua morte. Porém, com a Ressurreição, o coração de Jesus transforma-se num bater misticamente presente em cada coração do cristão. Pelo menos na Tradição Católica, este bater místico é também físico pela experiência de que na Eucaristia, o nosso corpo é cristificado e transformado (de algum modo ainda por compreender) n’Ele. Por isso, a dificuldade em escutar o bater do coração de Deus está na necessidade de desenvolvermos a capacidade de reconhecer Deus em cada irmão e de percepcionar a Sua presença na própria criação.

É possível escutar o bater do nosso coração se estivermos num espaço imerso num grande silêncio. Recordo-me de numa caminhada por um trilho, a um dado momento ouvia um – «tum, tum, tum,…» — e só após alguns segundos é que me apercebi de que estava a ouvir o bater do meu coração. Pensamos que a dificuldade em escutar o coração de Deus esteja no facto de acreditarmos mais ou menos n’Ele, ou de termos uma vida mais ou menos profunda no que diz respeito à fé. Porém, parece-me que a dificuldade esteja em encontrarmos os espaços de silêncio interior e exterior que nos permitem compreender, criativamente, os ritmos e as razões de não nos alienarmos da realidade física e espiritual viva ao nosso redor.

O ritmo de vida humana na Era Digital, imersos como estamos em informação no espaço cibercultural que habitamos, além de acelerado é ruidoso. Não nos oferece muitas pausas para reflectir, estarmos atentos e escutarmos o tal “bater do coração”. Quando penso novamente no «gracias, gracias, gracias» do jovem Izan, questiono-me se não se assemelha a um bater do coração que bombeia gratidão. Será a gratidão uma espécie de oxigénio que faz a nossa consciência funcionar de modo a nos sensibilizar mais para o valor que a vida tem?

Até dia 4 de Outubro permanece o convite a meditarmos e agirmos criativamente sobre como o Tempo da Criação pode transformar a visão que temos do mundo e as nossas escolhas. Um dos grandes desafios da experiência cristã, hoje, está no modo como testemunhamos a humanização da vida espiritual que temos, independentemente dessa ser mais ou menos profunda. Escutar o bater do coração parece-me ser um dos modos de gradualmente acertarmos o nosso ritmo de vida com o ritmo da criação. Um ritmo mais lento que permite desfrutarmos das pequenas coisas que nos assombram e nos levam a uma das orações mais simples e profundas diante do mundo natural — «uau…»


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