Bispos, promotores de uma cultura e de uma espiritualidade

D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro

Como quem resume toda a comunicação, Bento XVI conclui o discurso aos bispos dizendo: “Vos confio a Nossa Senhora de Fátima pedindo-lhe que vos sustente maternalmente nos desafios em que estais empenhados, para serdes promotores de uma cultura e de uma espiritualidade de caridade e de paz, de esperança e de justiça, de fé e de serviço” O mesmo que serem educadores da fé e construtores de comunidades novas

Nestas palavras está, porventura, o programa de uma acção pastoral sinalizada, com presente e com futuro. Normalmente, os planos e programas pastorais, situam-se no âmbito interno da Igreja e concretizam-se em aspectos vocacionais, bíblicos, litúrgicos, catequéticos, de pastoral sacramental e familiar… Planos que visam o interior das comunidades e o viver dos cristãos mais assíduos ao templo e mais sensíveis ao apostolado dentro da Igreja. Fica-se, frequentemente, por apelos e orientações aos padres e a outros agentes apostólicos e poucas vezes se olha para a sociedade com seus dinamismos e necessidades, apelos e urgências. Porém, é na vida da sociedade, não dentro do templo, que se pode verificar o agir influente ou não da Igreja.

O pedido do Papa aos bispos para serem promotores de cultura e de espiritualidade, marca um sentido de novidade na acção pastoral, em que se entrelaçam a vida e a fé. A promoção desta cultura deve atingir o campo da caridade e da paz, da esperança e da justiça, da fé e do serviço, e dar à Igreja e à sua acção diária um rosto novo e actual.

Pode estar aqui, a meu ver, a chave de leitura de todo o discurso, ao olhar para as várias orientações nele contidas. Assim podemos ler: ” Os tempos que vivemos exigem um novo vigor missionário dos cristãos, chamados a formar um laicado adulto”; “Mantende viva a dimensão profética sem mordaças”; “Ser-vos-á útil conhecer e compreender os diversos sectores sociais e culturais, avaliar as carências e programar eficazmente os recursos”; “No sentir de muitos, a fé católica deixa de ser o património comum da sociedade e frequentemente se vê como uma semente insidiada e ofuscada por “divindades ” e senhores deste mundo”; ” O apelo corajoso e integral aos princípios é essencial e indispensável” ; ” Os Pastores não são apenas pessoas que ocupam um cargo, mas eles próprios são carismáticos, são responsáveis pela abertura da Igreja à acção do Espírito Santo”; “Durante demasiado tempo se relegou para segundo plano a responsabilidade da autoridade como serviço ao crescimento dos outros”; ” Queria pedir-vos para revigorardes em vós e ao vosso redor os sentimentos de misericórdia e de compaixão capazes de corresponder às situações de graves carências sociais”; “Criem-se e aperfeiçoem-se as organizações existentes, com criatividade para corresponder a todas as pobrezas, mesmo a de falta de sentido da vida e de ausência de esperança”; ” As dificuldades, agora mais sentidas, não vos deixem esmorecer na lógica do dom.”

Não se afigura possível dar resposta a estas recomendações sem o propósito, concreto e comum, de os bispos serem, por força do seu munus apostólico, verdadeiros promotores de uma cultura ou de um modo habitual de agir, inspirado no Evangelho, e de uma espiritualidade, activa e rejuvenescida, enraizada na vida concreta e na fé assumida.

É este propósito que parece orientar a reflexão dos bispos ao pretenderem agora  “Repensar juntos a pastoral da Igreja em Portugal”, a partir das interpelações socioculturais que lhes são feitas em campo aberto.

O facto de participarem activamente nas Jornadas Pastorais do Episcopado (14-16 de Junho), quatro leigos qualificados para ajudar a reflectir os sinais interpelantes que a sociedade faz à Igreja e à sua acção, é um sinal, ao lado de outros, de que a reflexão pastoral, realizada a nível de Povo de Deus, pode ser mais objectiva e consequente, que a habitual reflexão sobre os problemas da Igreja, feita em circuitos fechados, quase só por eclesiásticos. A Igreja é Povo de Deus e o Espírito anima todos os seus membros.

Mas não podemos deixar de ligar o discurso do Papa, em Fátima, à sua intervenção em Roma (2007), por ocasião da “visita ad Limina”. Trata-se de desafio pastoral, então mais falado, e que continua urgente e actual. Recorda o Papa o propósito assumido pelos bispos e sublinha-lhe o sentido de se ” oferecer a todos os fieis uma iniciação cristã exigente e atractiva, comunicadora da integridade da fé e da espiritualidade radicada no Evangelho, formadora de agentes livres no seio da vida pública.”

A iniciação cristã identifica-se com a pedagogia catecumenal, orientada no adultos para a celebração dos sacramentos da iniciação, que conduz à conversão pessoal a Jesus Cristo e que se torna consequente em todas as dimensões da vida pessoal, eclesial e social. Ao mesmo tempo, leva à integração do iniciado na comunidade dos crentes, para aí viver em Comunhão com todos e se sentir corresponsável na Missão da Igreja.

A iniciação cristã deve fazer-se no dia a dia da Igreja, mediante uma catequese de inspiração catecumenal, que se torna para todos um indispensável “ensinamento para a vida” e um caminho certo, rumo à maturidade da fé e ao compromisso cristão.

A Igreja que chegou até nós vem dos tempos de cristandade, carregada das suas cores. Tempos houve em que ser cristão era uma opção familiar e o Baptismo um sacramento a receber quanto antes. A prática religiosa ia-se aprendendo no seio da família que vivia a sua fé e a transmitia aos filhos com valores e hábitos cristãos, ou favorecia-se pela acção e pelo testemunho da comunidade, que dava, ao mesmo tempo, conteúdos da fé.

A iniciação cristã é para os baptizados em criança um projecto comum da família e da catequese. Por vezes não funciona, funciona mal, ou não presta atenção à nova cultura que se foi gerando com grande influência na vida e nos comportamentos.

A Igreja viu-se de repente uma comunidade cheia de pagãos baptizados, que a pouco e pouco abandonam a prática sacramental e optam por uma vida à margem do Evangelho. Muitos destes, como recordou Bento XVI são “crentes envergonhados que dão as mãos ao secularismo, construtor de barreiras à inspiração cristã”  ou são gente para a qual  “a fé católica deixa de ser património comum da sociedade”.

Os bispos portugueses estão conscientes desta realidade e sentem-se interpelados por ela. Estão, porém, dispostos a renovar, a partir daqui, a acção pastoral da Igreja?

Um desafio que não tem resposta fácil. Os restos da cristandade que perduram, criam ilusões perigosas, quando se diz, por exemplo, que os templos continuam cheios, os santuários recebem multidões, se diminuem os baptismos, os penitentes e os casamentos na Igreja, aumentam as comunhões eucarísticas, se os jovens deixam a missa do Domingo não deixam de peregrinar a Fátima, Taizé e Compostela, que o problema vocacional denuncia apenas uma crise de passagem, e, por aí adiante… Nunca faltam ocasiões de ilusão e consolação a quem fecha os olhos e deixa de ler e reflectir a realidade que se vive na Igreja e na sociedade

A iniciação cristã, por tudo isto, não é uma moda, é uma urgência. Requer gente com preparação para orientar e testemunhar. Com igual urgência se deve ver a catequese de adultos, um meio concreto de ajudar os leigos a serem cristãos no mundo; a formação de comunidades, acolhedoras e missionárias; o acordar da consciência dos presbíteros e diáconos, muitos deles nostálgicos do templo, para o essencial da missão; o ensinar os agentes pastorais a olhar a sociedade e os sinais dos tempos com objectividade e esperança; o fomentar a prática do diálogo, dentro e fora da Igreja…

Está nas mãos e no coração dos bispos dar resposta. Bento XVI termina, apelando aos bispos que sejam promotores de uma cultura e de uma espiritualidade, que, pelos valores que comportam, ajudem os cristãos a resistir ao tempo e a dar sentido à vida.

D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro

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