Bendigamos o Senhor que cura as nossas feridas

Carta Pastoral do bispo de Santarém 1. Recomeçar a partir de Cristo Na continuação do projecto pastoral que iniciámos no ano 2000, vamos, no próximo ano, debruçar-nos sobre os sacramentos da cura: a Reconciliação e Unção dos doentes. O perdão dos pecados e a cura dos doentes ocupam um lugar de relevo no ministério de Jesus e integram a missão por Ele confiada à Igreja: proclamar o evangelho a toda a criatura, perdoar os pecados e impor as mãos aos doentes para que eles fiquem curados (Cf Mc 16, 15-18; Act 2, 38-39)). Através dos sacramentos da Reconciliação e da Santa Unção, a acção curativa de Jesus continua a realizar-se na Igreja em todos os tempos. Na verdade, os sacramentos são gestos realizados pela Igreja que prolongam os gestos sanantes de Jesus. O segredo da eficácia da acção da Igreja nos sete sacramentos é a presença e a acção do Senhor Ressuscitado através do Espírito. Esta é a convicção que anima o percurso que vimos a seguir desde o ano 2000, apresentado na Carta Pastoral: “Jesus Cristo vivo na Igreja pela palavra e pelos sacramentos”. A presença de Jesus na Igreja é, portanto, o fundamento da nossa confiança e a fonte dos nossos programas pastorais. É Ele que nos fala quando lemos ou ouvimos proclamar, em atitude de escuta, a Sagrada Escritura; é a Ele que falamos quando rezamos; é Ele que vem ao nosso encontro, toca e transforma a nossa vida com a graça dos sacramentos; é Ele que é a vida e o segredo das nossas comunidades cristãs; é também Jesus Cristo que apresentamos ao mundo, erguido na cruz, como sinal de salvação para todas as criaturas, como fonte de reconciliação entre povos e civilizações, como alicerce seguro da paz, da dignidade e da fraternidade entre os homens. Assim, como meta de fundo dos programas pastorais, está a procura da contemplação do rosto do Senhor, “o primado da vida interior e da santidade” (NMI 38). Queremos realmente conhecer melhor Jesus Cristo para O seguir mais conscientemente. Principiando pela leitura orante das Escrituras. Na verdade, ignorar as Escrituras é ignorar Cristo, como afirmava São Jerónimo. A ignorância é o grande impedimento à fé e ao testemunho. Nesse sentido, propusemos para o primeiro triénio do programa (2001/2003) um contacto mais assíduo com a Escrituras, exercitando a tradição tão antiga e sempre nova da “lectio divina”. Através desta pedagogia, o contacto com a Palavra de Deus não termina no texto sagrado mas conduz-nos ao encontro da pessoa viva de Jesus, Verbo eterno de Deus. Depois, seguindo o itinerário de Emaús, dedicamos um segundo triénio (2004/2007) à liturgia como a acção da Igreja em que o Senhor Ressuscitado se torna presente e santifica a nossa vida. Publicámos para este triénio o guião “Das fontes da salvação saciai-vos na alegria”. A concluir este triénio, vamos dedicar o ano pastoral 2006/2007 aos Sacramentos da cura, Reconciliação e Unção dos doentes, sem perder o fio condutor: Jesus Cristo vivo na Igreja pela Palavra e pelos sacramentos. Estas prioridades são de sempre, vêm do evangelho e hão-de acompanhar constantemente a peregrinação da Igreja. Não são etapas percorridas mas dimensões a ter sempre presentes na nossa acção pastoral. Nesse sentido, precisamos de continuar a praticar a “lectio divina”. Por outro lado, queremos também definir algumas orientações em ordem à preparação adequada dos candidatos aos sacramentos e à sua celebração digna e frutuosa. 2. Estruturar a participação eclesial Ao longo do transacto ano pastoral 2005/ 2006, na celebração dos trinta anos da diocese, promovemos algumas iniciativas em ordem a desenvolver a comunhão e a participação na vida da Igreja. Estas datas são oportunidades para tomarmos consciência e reassumirmos o projecto de Igreja que está na origem da criação da diocese de modo a estruturar com mais solidez a participação dos fiéis na missão da Igreja. A prática da corresponsabilidade, que se traduz no chamamento e na preparação de colaboradores para o serviço do evangelho, torna-se hoje urgente no contexto pastoral das nossas paróquias e comunidades. O passo mais importante para o crescimento da participação activa dos fiéis na vida da Igreja foi, neste ano pastoral, a ordenação dos primeiros Diáconos Permanentes a 7 de Maio de 2006, que vinha a ser preparada há quatro anos. Este grau do ministério ordenado que realça, na missão da Igreja, o carisma do serviço fraterno da caridade, ligado ao serviço do evangelho e do altar, torna-se, para todo o povo de Deus da diocese, um estímulo para crescer numa maior participação activa na vida da Igreja e no espírito do trabalho em equipa. O Conselho Pastoral Diocesano foi outra iniciativa a assinalar os trinta anos da diocese. Este organismo constitui um incentivo ao crescimento na corresponsabilidade pois supõe e reclama o funcionamento dos Conselhos Pastorais a nível da vigararia e a nível da paróquia. Precisamos de formar os fiéis e criar condições para que estes Conselhos funcionem eficazmente em todas as paróquias e vigararias. Nesse sentido, recomenda-se o “Curso de Renovação Paroquial”, proposta já experimentada nalgumas regiões da diocese e apoiada por elementos didácticos, que incentiva e prepara para a participação activa e esclarecida na pastoral paroquial. Outra preocupação que esteve presente e que sempre deve acompanhar a acção pastoral é a formação dos colaboradores que exercem funções litúrgicas: leitores, acólitos, ministros extraordinários da Eucaristia, animadores das ADAP e cantores. A liturgia bem celebrada como acção festiva de toda a comunidade convida os fiéis a tornarem-se pedras vivas da Igreja. Convocámos também uma reunião das Confrarias ou Irmandades da diocese, organismos que na tradição da Igreja muito contribuíram para a vida comunitária e para a participação laical. Esta iniciativa foi correspondida com muito interesse pelos membros destes organismos que compareceram, participaram e pediram para que estes encontros sejam continuados nos próximos anos. Esperamos que esta iniciativa conduza à revitalização das Confrarias e Irmandades através da actualização dos seus estatutos, da integração de novos membros e de uma participação actualizada na vida das comunidades. Quisemos associar à celebração dos trinta anos os membros das autarquias. Sempre se têm mostrado acolhedores e apreciadores do contributo das comunidades cristãs na acção social, cultural e educativa da sociedade. Uma Igreja ao serviço da construção da cidade dos homens deve adoptar uma atitude de colaboração e de parceria com aqueles que foram escolhidos pelo povo para servir a sociedade. Esta colaboração é indispensável em muitos campos da actividade da Igreja, como: património, formação de jovens, instituições de solidariedade, etc. A participação na missão da Igreja não pode esquecer a família, hoje ameaçada por muitas forças contrárias e dispersa por muitas solicitações modernas. A família é a Igreja doméstica, escola de virtudes humanas e cristãs, lugar o­nde se faz a primeira transmissão da fé e, através desta, se coloca o alicerce para a formação dos filhos como pessoas livres, felizes e responsáveis. O sacramento do matrimónio confere aos esposos e pais uma missão de importância fundamental na vida eclesial e social e a graça para a pôr em prática: a de formarem uma comunidade de vida e de amor que seja fonte de felicidade para os esposos e para os filhos. Recomendamos, nesse sentido, os elementos de apoio para a preparação do matrimónio publicados pelo Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar. Achámos oportuno lembrar as opções feitas e o caminho proposto, pois algumas paróquias têm dificuldade em acompanhar o ritmo das prioridades diocesanas. Não podemos deixar que essas comunidades fiquem para trás. Precisamos de lhes prestar atenção e apoio para que todas cultivem a pedagogia da lectio divina, estruturem a corresponsabilidade, designadamente através do funcionamento dos Conselhos Económico e Pastoral, preparem e celebrem adequadamente os sacramentos, formem colaboradores para a liturgia e para a caridade. È toda a Igreja, em todas as células, que é chamada à renovação e à evangelização. O programa pastoral que propomos nesta Carta Pastoral situa-se na continuação deste itinerário. 3. As feridas do homem de hoje. Nos sacramentos da cura Jesus Cristo vem ao nosso encontro nos momentos de prova e debilidade para nos libertar dos pecados e da culpa e para nos confortar na alma e no corpo. Nos anos anteriores aprofundámos os sacramentos da iniciação cristã (Baptismo, Confirmação e Eucaristia) e do serviço (Ordem e Matrimónio) em que Deus, nos momentos marcantes da vida, entra em contacto com a nossa existência, lhe dá sentido e transcendência e a enriquece com a Sua graça. As provações espirituais e físicas são também problemas que influenciam e afligem a vida humana e necessitam igualmente da ajuda divina. Nos evangelhos notamos como Jesus se aproximava e se dedicava aos pecadores e doentes para lhes restituir a dignidade, a santidade, a vida sã. Ainda hoje a Igreja, na continuação de Jesus cuida dos pecadores e dos doentes para os ajudar a vencer a debilidade espiritual e física. O sentido de pecado parece ter diminuído na consciência das pessoas mas as feridas causadas pelo pecado são bem visíveis: a ruptura e a infidelidade ao amor, os conflitos, as injustiças, as traições, a vaidade e ambição desmedidas, as invejas, os ódios, as vinganças, as violências, os crimes, as mentiras, a opressão. Estão apenas nos outros e na sociedade ou as suas raízes estão no coração de cada um?! A vida abre em todos muitas feridas e acarreta muitos sofrimentos: Feridas do luto, da solidão, do medo da doença, do desemprego, etc. As doenças e mortes prematuras deixam feridas abertas nos familiares: nos pais, nas viúvas ou nos órfãos. Muitas doenças graves e incuráveis vêm desarranjar as vidas de família: As pessoas não estão preparadas para estes dramas. Constituem sempre um choque profundo. Encontramos, deste modo, muitas feridas físicas, psíquicas e espirituais. A cura é um anseio profundo das pessoas da nossa época. Não apenas a cura das doenças físicas, que a medicina hoje mais desenvolvida oferece, mas também a cura psicológica e espiritual. Qual a resposta da Igreja que continua a missão de Jesus? Nem sempre as pessoas aceitam que lhes falem dos sofrimentos e das feridas que a vida lhes traz. Procura-se até esconder e ignorar esta realidade triste para que não perturbe a vida habitual. Mas, ao ouvirmos os idosos, escutamos muitas histórias de doenças, de sofrimento, de luto, de desengano, de cruz. Ninguém foge ao sofrimento. Se passarmos pelos hospitais ou pela casa dos doentes deparamos com esta realidade. Encontramo-la na nossa família. Encontramo-lo em nós. O sentimento da fragilidade da vida, o cansaço, o desânimo, a perda de sentido atingem-nos a todos. A Sagrada Escritura apresenta-nos como representante do sofrimento o patriarca Job. Para uns, este grande sofredor é familiar; para outros é chocante e deprimente. Mas a Sagrada Escritura não foge a enfrentar o problema. Job é um retrato da humanidade sofredora: apresenta-nos uma parte de nós mesmos. É o grande paciente das nossas dores. Ele lamenta-se, queixa-se a Deus e a nós: “Recebi em herança meses de desilusão. Agito-me angustiado até ao crepúsculo”. Mas Job não se deixa vencer pelo desânimo. Continua a procurar Deus, a implorar, a confiar. Deus vem em seu auxílio e Job redescobre o encanto da vida. Recordando o sofrimento de Job, a liturgia (no V Domingo Comum, B), convida-nos a rezar com o salmista: “Louvai o Senhor que conforta os corações dilacerados” (Sl 146). Face a tantas feridas que sentimos em nós e à nossa volta, esta oração do Salmo propõe-nos uma atitude de confiança e louvor a Deus que cura, purifica e dá sentido ao nosso sofrimento: “Bendigamos o Senhor que cura as nossas feridas”. 4. Anúncio do evangelho e cura dos doentes. Os doentes são os primeiros a beneficiar do ministério de Jesus. Segundo o evangelista São Marcos, Jesus começa o seu ministério pela sinagoga de Cafarnaúm e aí realiza a primeira cura, a de um homem que tinha um espírito impuro. Sai da Sinagoga e vai para a casa de Pedro. Falam-lhe da sogra que está doente com febre e Jesus aproxima-se dela, pega-lhe pela mão e fá-la levantar. No outro dia curou muitas pessoas. Vemos, assim, como Jesus se identifica com as nossas dores, se aproxima dos que sofrem e os liberta, tanto no espaço religioso da Sinagoga como no espaço quotidiano da habitação. A pregação do evangelho do Reino é acompanhada de curas, entendidas como sinais que manifestam a libertação do mal, das doenças do espírito e do corpo. O sofrimento e a doença abalam a vida normal, põe à prova a pessoa na sua totalidade, questionam a fé e a vida. o­nde está Deus? Porque permite esta prova? A doença e o sofrimento do corpo perturbam também o espírito e a alma, provocam a sensação da ausência de Deus. A vida humana é um bem global, é um todo, integra espírito e corpo. A plenitude da vida experimenta-se nesta unidade e harmonia espiritual, psíquica e corporal. Nesta linha, Jesus oferece a salvação à nossa existência na sua totalidade e unidade. Notamos esta globalidade da salvação na cura do paralítico de Cafarnaúm. Ele procurava a saúde corporal mas Jesus oferece também o perdão dos pecados. Perante o escândalo dos fariseus, Jesus afirma:” Para que saibais que o Filho do homem tem na terra o poder de perdoar os pecados, Eu te ordeno, disse ao paralítico, levanta-te, pega no teu catre e vai para tua casa” Mc 2, 10-11). Jesus considera que o pecado, porque afasta de Deus, verdadeira fonte da vida, constitui uma fragilidade pessoal. Não significa que a doença de cada um seja castigo de um pecado pessoal, mas que o pecado gera o desequilíbrio e o conflito. Só Deus pode perdoar o pecado e restituir a harmonia, a beleza e a santidade à existência humana de cada pessoa. A resposta de Cristo ao pecado e à doença, devemos entendê-la no contexto global do mistério pascal, na sua paixão, morte e ressurreição, e não apenas num ou outro episódio isolado. Não só sofreu connosco e por nós. Ressuscitou e venceu a morte num nível diferente dos nossos horizontes. A Igreja tem o seu centro na Páscoa em que celebra o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. O júbilo da vida nova da ressurreição prolonga-se por todos os tempos e estende-se à vida de toda a humanidade. A vitória da vida é mais forte do que a escuridão da morte! Jesus Ressuscitado comunica aos seus discípulos, como primeiro dom pascal, o Espírito Santo como fonte de perdão dos pecados e da paz (Jo 20,21-23). O Cordeiro de Deus que pela sua entrega na cruz tirou os pecados do mundo e reconciliou o mundo consigo, oferece, deste modo, a vida nova da ressurreição a todos os que acreditarem, se arrependerem e receberem o perdão dos pecados. Jesus, pela sua vida, morte e ressurreição, apresentou o sofrimento como uma porta aberta para a vida nova e plena no seio de Deus. Deste modo, não só curou os doentes como sofreu e fez do sofrimento um caminho de redenção, dando-lhe sentido. A resposta de Deus nem sempre corresponde aos nossos pedidos de cura. As doenças seguem frequentemente o seu desenvolvimento normal e os nossos pedidos de cura podem parecer sem resposta. A resposta de Deus pode seguir numa direcção diferente, concedendo fortaleza e abertura para o encontro com Ele. Neste sentido, o sofrimento torna-se um meio de purificação e de redenção. Jesus Cristo ensina-nos, assim, que a vida é peregrinação para a eternidade, é dom e entrega até ao fim e que esta entrega se realiza totalmente na passagem difícil da morte. A doença do Papa João Paulo II exemplificou, no nosso tempo, esta doação total no amor, pôs em prática o que ele havia escrito na Carta Apostólica “Salvifici doloris” “O sofrimento está presente no mundo para desencadear o amor, para fazer nascer obras de amor para com o próximo, para transformar toda a civilização humana na civilização do amor” (S D 30). A forma como encarou o sofrimento e o mostrou sem complexos fez com que muitos se tornassem mais atentos ao sofrimento humano, físico e espiritual, dando ao sofrimento dignidade e valor, como afirmou o Papa Bento XVI no 1º aniversário da morte de João Paulo II. “Ó Cristo, nosso único mediador Tu és-nos necessário para entrar em comunhão com Deus Pai. Tu és-nos necessário, ó único verdadeiro Mestre das verdades escondidas da vida, para conhecer o nosso ser, o nosso destino e o caminho para o realizar. Tu és-nos necessário, ó grande paciente das nossas dores, para conhecer o sentido do sofrimento e para dar a este um valor de expiação e de redenção. Tu és-nos necessário, ó Cristo, ó Senhor, ó Deus connosco” (Paulo VI). 5. Igreja sinal e instrumento de cura. “Jesus percorria as cidades e aldeias ensinando nas sinagogas, proclamando o evangelho do reino e curando todas as enfermidades e doenças. Contemplando a multidão encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor. Disse então aos seus discípulos: “A messe é grande mas os trabalhadores são poucos. Rogai portanto ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe”. Jesus chamou então os doze discípulos e deu-lhes poder de expulsar os espíritos malignos e de curar todas as enfermidades e doenças” (Mt 9, 35-38). Este trecho do evangelho resume a acção de Jesus e, em poucas palavras, confirma o que atrás dissemos sobre a relação entre o anúncio do evangelho e a cura dos doentes, bem como sobre a globalidade da doença e da cura. Manifesta também como Jesus escolhe os doze, fundamento e animadores da Sua Igreja, para continuar a mesma missão e o mesmo estilo de proximidade e dedicação aos que sofrem na alma ou no corpo. De facto, os primeiros evangelizadores pregavam o evangelho e curavam os doentes. Os sinais das curas realizadas apoiavam e davam credibilidade à pregação dos apóstolos. Na realização desta missão compreendemos o lugar importante dos sacramentos da cura na missão da Igreja. A Reconciliação e a Santa Unção são momentos em que a graça redentora de Jesus toca a vida das pessoas em ordem ao seu restabelecimento. Estes dois sacramentos, porém, actualmente, parecem não revestir grande significado na vida de muitos fiéis nem conhecer grande renovação na forma como são preparados e celebrados. De facto, tanto a prática da Confissão como a necessidade da Santa Unção parecem ter diminuído. As grandes filas de espera para as confissões já não se verificam hoje como no passado. Por outro lado, a preocupação de chamar o sacerdote para celebrar a Santa Unção em momentos de doença grave não é tão visível. No entanto, a realidade que analisámos quanto às feridas que hoje causam sofrimento a tantas pessoas e a relação da evangelização com a cura dos doentes levam-nos a concluir a necessidade de descobrir o lugar destes sacramentos na vida cristã e dar-lhes, na acção pastoral, o lugar que lhes pertence e que os fiéis necessitam. 5.1 Sacramento da Reconciliação. A diminuição considerável de penitentes leva-nos a colocar algumas questões que podem explicar esta quebra. Seriam verdadeiramente penitentes todos os que, décadas atrás, se confessavam frequentemente e por hábito? Ou cumpriam um rito sem compromisso algum na atitude de conversão? Por outro lado, diluiu-se o sentido de pecado e de culpa perante Deus e a comunidade. Provavelmente porque diminuiu também a consciência da exigência do ideal cristão da santidade e da responsabilidade da vida perante Deus. Sem referência clara ao ideal baptismal e eucarístico, o sentido de pecado esbate-se. No entanto, as pessoas experimentam sentimentos de culpa, talvez mais como frustração ou incapacidade de alcançar expectativas criadas por uma idealização irrealista da vida do que em relação a Deus. Mas os discípulos de Cristo precisam da graça deste sacramento. Precisam de se converter a Deus de viver para Ele em vez de viver para o seu egoísmo, de entregar a sua vida ao evangelho em vez de a guardar para si mesmos. Precisam do diálogo libertador com o ministro do sacramento e de experimentar o sinal visível e eficaz da misericórdia de Deus que nos acolhe e dá a mão para nos levantarmos e recomeçarmos de novo o caminho para a luz e para a beleza da santidade. Precisam de se reconciliar com os irmãos, com a comunidade, com a vida e consigo próprios. Em ordem a renovar este sacramento, na perspectiva do Concílio Vaticano II, é necessário, antes de mais, redescobrir o universo penitencial e situar nele o sacramento. Não há vida cristã sem penitência, ou seja, sem conversão a Deus e renúncia a si mesmo, sem esforço por superar as resistências ao caminho para a vida nova da santidade. Nesse sentido, a celebração do sacramento deve ser situado num itinerário de conversão com uma preparação prévia e algumas propostas de conversão consequentes. Também a forma de celebrar o sacramento precisa de adoptar uma estrutura sacramental, com acolhimento, saudação, ajuda discreta e oportuna no exame de consciência, aconselhamento, absolvição e despedida. Por outro lado, a dimensão comunitária precisa de continuar a valorizar-se e alagar-se a todas as comunidades. 5.2 Sacramento da Unção dos doentes. A Igreja e os fiéis sentiram sempre como um mandato do Senhor a visita e oração pelos doentes em ordem a alcançarem a fortaleza perante a prova do sofrimento. “A assistência do Senhor pela força do Seu Espírito, visa levar o doente à cura da alma, mas também à do corpo, se tal for a vontade de Deus” (CIC 1520). A pastoral dos doentes, de um modo geral, funciona nas comunidades cristãs com o empenho de muitos fiéis, Sacerdotes, Diáconos, Ministros da Eucaristia, bem como pessoas sensíveis e dedicadas aos enfermos. A Unção dos doentes passou a ser entendida, após o Concílio, como o sacramento para confortar e recuperar os doentes e não apenas como preparação para a morte como, anteriormente, a designação de Extrema-Unção poderia dar a entender. É um sacramento a receber pelos fiéis quando por doença ou velhice começam a estar em risco de vida. Para os que estão em perigo iminente, a igreja oferece o Viático. No entanto, esta visão renovada não chegou ainda a todos os fiéis. Precisamos de aprofundar o conhecimento, a preparação e a prática deste sacramento. O Ritual, nos ritos iniciais, recorda a citação da Carta de São Tiago o­nde são referidos os efeitos do sacramento: “salvará o doente; o Senhor o confortará; se tiver pecados ser-lhe-ão perdoados”. Estas três expressões (salvar; confortar; perdoar), que nos lembram a visão integral da doença e da cura, aparecem depois confirmadas na oração sacramental: ” Curai pela graça do Espírito Santo a fraqueza deste doente, sarai as suas feridas, perdoai os seus pecados, tirai-lhe todas as dores da alma e do corpo, e restituí-lhe, por piedade, a plena saúde interior e exterior”. Nem sempre, na tradição da Igreja, demos suficiente importância à dimensão curativa deste sacramento. Têm sido outros movimentos, muitos fora da comunhão eclesial, que têm realçado, por vezes com abuso, o dom da cura. A formação dos fiéis para uma compreensão e vivência rectas da Unção dos doentes, deverá realçar a acção global do sacramento, sem lhe atribuir um efeito mágico, pois nem toda a cura espiritual é cura física. O Sacramento da Unção é um contacto sacramental com Jesus Cristo Bom Pastor que anuncia o evangelho e cura os doentes, infunde confiança, paz e fortaleza para enfrentar a doença e estende sobre nós a sua mão protectora para nos associar ao mistério da sua paixão, morte e ressurreição (Cf CIC 1520-1523). Os sacerdotes, (bispos e presbíteros), ministros dos sacramentos da cura, são convidados a revestir a mesma atitude de compaixão de Jesus: ” Contemplando a multidão encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor”. Ter compaixão é tornar-se próximo e partilhar o sofrimento das pessoas, é acolher e dedicar-se aos sofredores. “O ministro é chamado a reconhecer os sofrimentos do seu tempo no seu próprio coração e a tornar esse reconhecimento no ponto de partida para o seu ministério” (H Nouwen, em “O Curador Ferido”,Paulinas 2001, pg 10)) Toda a comunidade cristã, no conjunto de todos os fiéis, recebe a missão de testemunhar o ministério da cura. Todos os discípulos de Jesus são seus continuadores, chamados a colaborar na reconciliação e na cura das pessoas pelo cuidado dos doentes, pela pastoral da saúde, pela compaixão e pela oração. Através do amor e da ajuda fraternas, do acolhimento atento e da visita discreta aos que sofrem, os fiéis podem irradiar à sua volta a esperança, a harmonia, a serenidade. Podem igualmente participar na celebração comunitária dos sacramentos. Desta forma, a comunidade evangeliza preparando para o sacramento e prolongando-o na vida. 5.3. Pastoral das exéquias e das pessoas em luto Um dos momentos de grande sofrimento, hoje, é a dor do luto que a partida de pessoas queridas para a eternidade, sobretudo em circunstâncias trágicas e em idade activa, deixa nos familiares e amigos. É uma ferida que marca e permanece na vida dos que ficam. Não podemos iludir este momento de sofrimento. Para muitas pessoas, designadamente jovens, é uma altura de interrogação sobre o mistério da vida e da morte. A celebração das exéquias é o espaço privilegiado em que a Igreja pode consolar com o conforto da fé as pessoas em situação de luto, oferecer uma visão cristã da morte e da vida e orar por aqueles que partiram, abrindo a existência terrena à eternidade. Na verdade, a liturgia exequial celebrada com dignidade, solenidade e serenidade, participada activamente pela comunidade e na medida do possível pelos familiares, apazigua o sofrimento, conforta os presentes e ilumina a morte terrena com a esperança da eternidade. É um momento que requer da parte dos ministros (bispos, presbíteros, diáconos, bem como religiosos ou leigos investidos nesta missão) que, em nome da Igreja, presidem ou intervêm na celebração, uma grande sensibilidade, acolhimento e solidariedade. Através destes representantes, é Deus que se torna próximo dos corações atribulados. Uma proximidade não apenas física mas também humana e espiritual traduzida em sentimentos e atitudes de compreensão e compaixão. Na liturgia exequial, além da dignidade dos ritos, da Palavra, dos cânticos e do ambiente de interioridade, merece também uma preparação cuidada, pela atenção com que é seguida pelos presentes, a homilia. Alicerçada nas leituras pode proporcionar aos presentes uma interpretação à luz da fé da vida do defunto e da vida humana em geral e transmitir a convicção de que a vida não acaba mas apenas se transforma. Nesta linha, podemos considerar exemplar a homilia do então cardeal Ratzinger nas exéquias do Papa João Paulo II. Interpretou, de facto, a vida deste grande Papa à luz da Palavra de Deus e afirmou a fé na vida para além da morte: “Segue-me”, esta palavra lapidária de Cristo pode ser considerada a chave para compreender a mensagem que vem da vida do nosso saudoso e amado Papa João Paulo II (…). [Ele, que se mostrava] na janela do Palácio Apostólico, agora está na janela da casa do Pai, vê-nos e abençoa-nos.”. A celebração das exéquias será mais rica se não se reduzir ao momento pontual da encomendação dos que partem mas integrar também uma preparação e continuação. A vigília de oração pelos defuntos, orientada por um representante da Igreja devidamente preparado, é um caminho para enriquecer cristãmente a celebração das exéquias. Nesta linha precisamos de preparar animadores para acompanhar as pessoas em luto, orientar as vigílias de oração e, eventualmente, presidir às exéquias. Nossa Senhora que acompanhou Jesus no doloroso caminho do Calvário e permaneceu silenciosa junto à cruz como presença reconfortante, nos ensine a ser uma Igreja atenta e solidária com todos os que sofrem, nos obtenha a graça da cura das nossas feridas e nos console nas nossas aflições. Santarém, Festa da Natividade de Nossa Senhora, 8 de Setembro de 2006. D. Manuel Pelino Domingues, Bispo de Santarém.

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top