As linhas fundamentais da acção da Igreja nas migrações humanas

Agradeço aos organizadores desta manifestação por me terem dado a possibilidade de traçar em grandes linhas, as numerosas intervenções da Igreja em favor dos migrantes. De facto, o fenómeno da Mobilidade humana esteve constantemente no centro dos cuidados da Santa Sé, com intervenções que evidenciam quer a profundidade de leitura desta notável realidade social, quer a capacidade de propostas pastorais, em vista de uma plena aceitação do estrangeiro e do seu património cultural e religioso. De uma inicial atitude alarmista, perante os numerosos perigos implícitos, passou-se a ver também nestes, as potencialidades espirituais e culturais, segundo o plano divino da história, sem contudo desconhecer o custo humano da experiência migratória e as suas múltiplas incidências sociais, económicas e políticas. Assim, depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto em algumas Nações eram encaminhadas várias iniciativas assistenciais e religiosas para os migrantes, sentia-se a necessidade de uma intervenção particular da Santa Sé, que relançasse e organizasse o vasto e complexo campo da pastoral e da assistência religiosa a este respeito. A intervenção concretizou-se na Constituição “Exsul Família”, de Pio XII, em Agosto de 1952. Com este documento, o Papa tornou-se o promotor, sobretudo, de uma reestruturação da assistência aos migrantes das várias nacionalidades, estabelecendo uma disciplina comum e universal na Igreja católica. Por este motivo a “Exsul Família” é considerada a “magna charta” do pensamento da Igreja sobre as migrações: e é, de facto, o primeiro documento oficial da Santa Sé que delineia, de modo global e sistemático, do ponto de vista histórico e canónico, a pastoral para a assistência espiritual dos migrantes. No plano dos princípios, o Documento afirmava que a assistência seria executada por sacerdotes da mesma língua ou nacionalidade dos migrantes, adequadamente preparados e sob a autoridade do Ordinário do lugar. Entre os instrumentos pastorais recomenda-se a erecção de paróquias nacionais e de “missio cum cura animarum”, na qual “os poderes” do missionário resultam cumulativos aos do pároco local. O problema étnico tinha entrado então na “administração” da Igreja universal, ainda que numa óptica estritamente institucional. Introduziam-se substancialmente elementos de pluralismo na assistência aos migrantes, contra a tendência para uma imediata assimilação característica da pastoral praticada por muitos Episcopados de acolhimento dos migrantes. À luz da história pode, com certeza, observar-se no documento algumas lacunas: assim, o empenhamento dos religiosos e das religiosas não aparece evidenciado na peculiaridade da sua contribuição e os leigos não têm particular relevo na parte normativa. Mas o maior limite está na norma que limita a “cura pastoral” específica para os migrantes somente até á segunda geração, dando, assim, por concluído, o processo de inserção eclesial. Estas lacunas serão corrigidas por sucessivas intervenções do Magistério eclesial. Assim, nos anos sessenta, a Igreja procurará dar resposta às numerosas alterações que, em continuidade, repõem o quadro complexo das migrações internacionais, ou seja o processo de integração europeia, a estabilização dos fluxos migratórios intra-europeus, o surto e a difusão da migração dos países do Terceiro Mundo, o aparecimento de algumas metas migratórias em alguns países de rápida expansão da área do petróleo e da explosão do fenômeno maciço dos refugiados nas regiões de tensão internacional. São estes, os anos que marcam a grande época do Concílio, da renovação nas estruturas da Igreja e do seu renovado empenho de evangelização. A Igreja confronta-se com a nova realidade do mundo contemporâneo com um novo espírito de colaboração, vendo nos fenómenos salientes do mundo os “sinais dos tempos”, à luz da Palavra de Deus e do Magistério. Assim, também os problemas migratórios encontram no Concílio a sua colocação. Se insistirá sobre a dignidade, os direitos do migrante e sobre a dimensão cultural do fenómeno migratório; se denunciarão as causas das velhas e novas migrações e, isto é, o desenvolvimento desordenado da economia e certas opções político-económicas; se exprimirá a convicção de que a Igreja, na sua catolicidade, poderá tornar-se sinal e instrumento de novas ordens, também em favor dos migrantes. O relançamento conciliar levará então a um empenhamento das Igrejas particulares, que, cada vez mais, debaterão o problema migratório no seu interior, e prepararão adequados meios de intervenção, sentindo-se já primeiras responsáveis pelo fenómeno. O Concílio Vaticano II e os documentos sociais de Paulo VI já tinham pois, lançado as bases de uma actualização também da pastoral migratória, em relação aos temas fundamentais da Igreja, do desenvolvimento e da paz. Enquanto a nível nacional surgiam e se consolidavam as várias Conferências Episcopais e os organismos especializados para a migração, era considerada oportuna, também a nível central, uma reformulação de toda a matéria, coisa que se fez com o Moto Próprio “Pastoralis migratorum cura”, de 1969. Os dois documentos referem-se à complexa problemática da mobilidade contemporânea. No processo de integração na sociedade de acolhimento deverá rejeitar-se uma assimilação passiva e uma integração acrítica e danosa para o indivíduo e para o grupo étnico. O imigrante deverá ser respeitado como tal, com todas as suas formas expressivas, culturais, sociais e religiosas. A emigração comporta direitos e deveres e o primeiro é o direito de emigrar, ao qual corresponde o dever de contribuir lealmente, por parte do migrante, para o desenvolvimento do país de acolhimento. Tal ensinamento será retomado nas frequentes solicitações de João Paulo II (particularmente sensível aos problemas religiosos e culturais dos migrantes) o qual, nas encíclicas e nos seus numerosos discursos lançou constantes apelos à solidariedade humana e cristã para com os migrantes. Com base na colegialidade, em sentido largo, como aludimos acima, são enfim as Conferências Episcopais das Nações particulares, as primeiras responsáveis pela coordenação da pastoral dos migrantes. Além disso, para o apelo à participação efetiva de todas as componentes eclesiais à evangelização, segundo a vocação própria de cada um, são contudo os leigos, os religiosos e as Instituições eclesiásticas antigas e os movimentos novos que, juntos, devem fazer frente aos problemas criados pelos fluxos de populações provenientes de áreas cada vez mais distantes, no consequente confronto intercultural e inter-religioso. O quadro dos intervenientes a favor dos migrantes enriquecia-se em 1970, de estruturas específicas com a criação, por parte de Paulo VI, da Comissão Pontifícia para a Pastoral das Migrações e do Turismo (transformada em 1989, no atual Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes) ao qual foram confiados importantes deveres de coordenação, animação e estímulo, no que diz respeito, sobretudo, às Conferências Episcopais individuais. Também muitos Sínodos diocesanos, referentes ao problema e á pastoral migratória, demonstram o crescimento de sensibilidade para a inserção dos migrantes na vida comunitária, civil e eclesial. João Paulo II, nas suas frequentes intervenções sobre a problemática – humana, social e religiosa – da migração, deu e continua a dar este fenómeno, hoje cada vez mais visível, uma particular marca pessoal, caracterizada pelo forte humanismo das suas encíclicas. A defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana torna-se uma das vias privilegiadas através da qual também se exprime o anúncio evangélico. O património cultural próprio de cada grupo étnico assume assim um vínculo especial com a mensagem cristã, a fim de encarná-lo. Portanto, a defesa da herança cultural de um povo é, de certo modo, protecção daquilo que o distingue na sua evolução e caracterização histórica, em estreita relação entre fé, cultura e civilidade. “Exsul Família”, “Gaudium et Spes”, “Pastoralis Migratorum cura”, e agora “Erga migrantes caritas Christi”: a sucessão das intervenções do Magistério da Igreja é impressionante. Em vários momentos a Igreja ofereceu ao mundo passos decisivos da sua Doutrina Social tais como: a centralidade da pessoa, a defesa dos direitos fundamentais do homem, a tutela e a valorização das minorias na sociedade civil e eclesial, o valor das culturas na obra de evangelização, a contribuição das migrações para a pacificação universal, a dimensão eclesial e missionária do fenómeno migratório, a importância do diálogo e do confronto no interior da sociedade civil, da comunidade eclesial e entre as diversas confissões e religiões. A Igreja está interessada e é solícita para com todas as categorias da mobilidade humana: além dos migrantes, económicos e políticos, refiro-me aos refugiados, aos turistas e peregrinos, aos marítimos, ao povo “rom” e “sinti” (ciganos), aos circenses e “feirantes” e aos estudantes estrangeiros. Elas têm empreendido um confronto e um diálogo com o Islão, com migrantes muçulmanos e de outras confissões religiosas. No seu interior, tem “despertado” os leigos cristãos, chamando-os a uma responsabilidade concreta de animação nas suas comunidades em comunhão profunda com os seus bispos e sacerdotes; tem criado estruturas pastorais para o serviço religioso dos migrantes; tem elaborado novos modelos operativos, em vista de uma presença mais incisiva no território e na construção de comunidades integradas; tem exposto, enfim, uma dimensão universal e missionária à acção pastoral, no momento em que o pluralismo étnico e cultural se está tornando traço característico da sociedade hodierna. Portanto, a Igreja, não olha somente para si mesma. Ela olha para o mundo inteiro, ela tem diante de si todos os homens e mulheres, de cada cor, raça, nacionalidade e religião. Com a nova Instrução “Erga migrantes caritas Christi”, a comunidade eclesial toma cada vez mais consciência da sua missão universal no mundo e na história, diante de Deus e dos homens, confiante que os migrantes serão finalmente instrumentos de unidade e de paz, num mundo cada vez mais unido, no bem, e solidário. Intervenção do Cardeal Stephen Fumio Hamao, Presidente do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, na abertura da Peregrinação Internacional do Migrante e Refugiado a Fátima, 12 e 13 de Agosto de 2004, integrada na XXXII Semana Nacional de Migrações “Consolidar a Paz para não ter que emigrar”

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