Amar os estrangeiros

Homilia do Cardeal Sean O’Malley na Peregrinação do Migrante e Refugiado a Fátima Aqui me encontro hoje, diante de vós – centenas de milhares de peregrinos vindos dos quatro cantos do mundo para estar em Fátima na casa de Maria. Perante vós, volto-me para Jesus nosso Salvador, e do mais profundo do meu coração imploro: «Senhor, a tua Mãe e os teus irmãos estão lá fora e querem Te vem. E a resposta que Jesus dá hoje, é a mesma de há dois mil anos: «A minha Mãe e os meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática.» Aqui hoje em Fátima, vós sois verdadeiramente a família de Jesus porque acorrestes a louvar o nosso Pai do Céu e viestes buscar a força para abraçar generosamente a palavra de Deus. O Evangelho de hoje começa com Maria e os discípulos a baterem à porta do lugar onde Jesus está. Mas a nossa história começa com Deus a bater à porta da humanidade, começa com a Anunciação. E Maria abre essa porta que permite a Deus entrar no nosso mundo, na nossa história, na nossa família. Fiat – «Faça-se em mim segundo a tua palavra». Estas são das primeiras palavras de Maria no Evangelho. Ela diz sim a Deus, sim ao amor, sim à vida. O teólogo alemão Urs von Balthazar criou muitas expressões teológicas maravilhosas. Fala de Kniende theologie que quer dizer teologia de joelhos. É mais importante conhecer Deus – que saber coisas sobre Deus; e é na nossa vida de oração que descobrimos Deus. E quando descobrimos Deus, descobrimos quem nós somos, por que existimos e o que devemos fazer da nossa vida. Von Balthazar descreve o sim de Maria como Geschehenlassendes Ja – um sim que abre caminho para que algo aconteça. O sim de Maria abre a porta da História da Humanidade a Deus – que se faz um de nós em Cristo. Na entronização do Cardeal John O´ Connor estava presente aquela santa freira, a Madre Teresa de Calcutá, que quando se cruzou com ele, lhe sorriu e disse: «Bispo, abra caminho a Deus.», dê licença a Deus. Deus está à espera de ser convidado a entrar nas nossas vidas. Como Jesus que se oculta aos discípulos na estrada de Emaús e faz menção de continuar viagem quando esses chegam ao destino. Os discípulos no entanto convidam-no: «Fica connosco, Senhor.» O Senhor quer que o convidemos a entrar no nosso coração. Está à espera que lhe abramos caminho, que lhe digamos esse Geschehenlassendes Ja – esse sim que abre caminho para que algo aconteça. Se as primeiras palavras de Maria no Evangelho são: «Seja feito em mim segundo a tua palavra» – sim –, as suas últimas palavras encontram-se no Evangelho de João no relato das bodas de Caná: «Façam tudo o que Ele vos disser.» Maria é Mãe de Cristo porque ouve a palavra de Deus e a põe em prática. Ela é nossa Mãe e as suas últimas palavras dizem-nos para escutar a palavra de Deus e a pôr em prática. Na primeira leitura da Missa de hoje, o livro do Deuteronómio pergunta: O que quer Deus de vós? Que sigais os seus caminhos, que o amais, que sirvais o Senhor com todo o coração e toda a alma e que observais os seus mandamentos. A mesma leitura continua, descrevendo as acções de Deus: O Senhor defende o órfão e a viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe de comer e de vestir. E vós tendes que amar o estrangeiro porque vós mesmos fostes estrangeiros no Egipto. Hoje estão aqui muitos emigrantes que trabalham em terras distantes. É bom que possais ouvir esta palavra da Escritura que nos lembra o amor especial que Deus tem pelos estrangeiros e os emigrantes. A sorte dos emigrantes é sempre difícil, especialmente no princípio. Durante vinte anos, a minha missão de padre foi trabalhar com os emigrantes em Washington. Havia muitos portugueses que tinham deixado as antigas colónias depois da revolução e que procuravam uma nova vida na América. Mas a maioria eram refugiados hispânicos que tinham escapado da América Central onde as guerras civis tudo devastavam. Um dia veio ter comigo um homem. Entregou-me uma carta da mulher, sentou-se e começou a chorar. A mulher zangava-se com ele por a ter deixado à fome, a ela e aos oito filhos no devastado EI Salvador. Ela escrevia que tinha esperado mais de oito meses e ele ainda não tinha mandado notícias ou dinheiro. O homem contou-me então, que tinha deixado a sua aldeia no EI Salvador e vindo ilegalmente para Washington porque se tinha tornado impossível fazer agricultura com a guerra. Estava a viver num quarto que partilhava com mais seis homens e trabalhava em dois restaurantes a lavar pratos. Disse-me que ia a pé para o trabalho para não gastar dinheiro no autocarro e que não comprava comida mas que comia os restos dos pratos sujos que lavava. Todas as semanas mandava à mulher todo o dinheiro que ganhava mas ela não tinha recebido as suas cartas. Perguntei-lhe se mandava cheque ou dinheiro. Ele respondeu-me que mandava contante e que metia o dinheiro e a carta num envelope que punha no marco de correio azul ali da esquina. Olhei pela janela e vi o marco de correio azul da esquina. Era um caixote de lixo todo chique. Mais uma vez pude constatar quantos sacrifícios os emigrantes fazem pelas suas famílias e quantas provações e humilhações passam, numa terra estrangeira, onde se fala uma língua estranha, com costumes diferentes e não poucas vezes, um ambiente hostil. Na Missa, abraçamos todos os emigrantes. Os que foram abençoados com grande sucesso nas suas novas terras e os que ainda sofrem e lutam. O nosso Deus não vê a cor da pele nem faz diferença entre línguas ou costumes. Ele vê a Sua criança e quer que nós nos amemos e nos ajudemos. Fazemos parte da família de Jesus quando pomos em prática os ensinamentos de Jesus. Jesus veio para revelar a face misericordiosa do Pai e para nos ensinar o mandamento de amor de Deus. Nos Evangelhos Sinópticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do Grande Mandamento. Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha directiva é um Mandamento. Primeiro temos que amar a Deus com todo o coração e toda a força, sobre todas as coisas. A trabalhar com pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu estava sempre a ouvir era «Primero Dios» – Deus primeiro. Deus tem que ser primeiro nas nossas vidas, depois todas as nossas prioridades estarão correctamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas – mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do Grande Mandamento é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos na parábola do Bom Samaritano que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida – aquele que sofre e por isso tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais que os pagãos e os não crentes. Jesus manda-nos amar os nossos inimigos. E quão difícil isso é. Mas Ele mostra-nos do alto da cruz como perdoa os Seus carrascos e o Bom Ladrão. Chesterton dizia que Deus nos manda amar o nosso próximo e o nosso inimigo porque na maior parte das vezes são uma e a mesma pessoa. Mas quando chegamos ao último Evangelho, o Evangelho de João, encontramos o ensinamento do Senhor sobre o amor especial que deve caracterizar os Seus discípulos. Na Última Ceia, Jesus faz as suas despedidas e nesse momento tão emotivo, dá-nos um novo mandamento e um sacramento. Ao lavar os pés dos Seus Apóstolos diz-lhes: «Dou-vos um mandamento novo – Amai-vos uns aos outros como Eu vos amo». Este é o novo mandamento e é sobre o amor que deve existir entre nós, os que seguimos a Jesus. O Evangelho de João não fala do amor ao próximo, ao estrangeiro, ao inimigo mas do amor aos nossos condiscípulos na família de Cristo. Jesus diz «a isso todos saberão que sais meus discípulos se vos amardes uns aos outros». Jesus diz que não há maior amor que dar a vida pelo seu amigo. Sim, antes de morrer, Jesus acrescenta ao Grande Mandamento do amor a Deus e ao próximo, o novo mandamento «Amai-vos como Eu vos amo». O amor de Jesus é a tabela, a medida do amor que os discípulos devem ter uns pelos outros. João, o discípulo amado, autor do último Evangelho, viveu muitos anos no exílio na Ilha de Patmos. Já muito velhinho, a sua casa era uma caverna nas montanhas. Aos domingos vinham-no buscar e levavam-no em braços até à aldeia para ele pregar na missa dominical. Para espanto de todos, o seu sermão era sempre o mesmo: «Meus filhos, amai-vos uns aos outros.» Muitas pessoas se lamentavam de que o pastor fazia sempre o mesmo sermão, mas quando o pregador é São João, o que é que se há-de fazer? Até que alguém se encheu de coragem, foi ter com São João e perguntou-lhe porque é que ele fazia sempre o mesmo sermão. Ele respondeu que pregava sempre essa mensagem do novo mandamento, porque Jesus a repetia constantemente enquanto estava com eles. Nós que somos as mães, e os irmãos e as irmãs de Jesus temos que ter esse amor especial uns pelos outros, esse amor pela Igreja, comunidade de fé, Corpo de Cristo. Na Última Ceia, depois de nos dar o novo mandamento do amor, Jesus deixa-nos o sacramento do amor, a Eucaristia. Neste sacramento, Cristo faz-nos a entrega de si mesmo. Quando nós recebemos este sacramento com fé e devoção, encontramos a força para fazermos a entrega de nós próprios a fim de vivermos a nossa missão no mundo, o grande mandamento do amor a Deus e ao próximo – assim como o novo mandamento do amor pelos condiscípulos de Cristo. Juntamo-nos aqui em Fátima para pedir a Maria que nos dê a sua bênção e nos ajude a sermos discípulos fiéis que seguem o Senhor nos caminhos que Ele nos abre com a Sua vida e as Suas palavras. Jesus deixou-nos o grande mandamento e o novo mandamento; Maria pediu-nos «Fazei tudo o que Ele vos disser». Assim, se a exemplo de Maria, fizermos tudo o que Cristo nos disser, seremos de facto seus irmãos e irmãs, a Sua Família. Fátima, 13 de Agosto de 2007 Cardeal Sean O’Malley, Arcebispo de Boston

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