Alguns aplausos e um lamento

O pior que pode acontecer a uma norma moral não é ser recusada, mas ser ignorada, escreve Jorge Teixeira da Cunha A encíclica Humanae Vitae é um caso de popularidade, por bons e por maus motivos. Entre as razões que justificam esta popularidade está o facto de dizer respeito a uma matéria, a chamada “regulação dos nascimentos”, que concerne a vida de quase todas as famílias em todo o mundo. Além disso, o ano 1968, em que foi publicada, é um ano charneira a muitos títulos: a nova mentalidade relativa ao sexo depois da comercialização da pílula contraceptiva, a conhecida turbulência de Maio, o auge dos gloriosos trinta anos de desenvolvimento europeu, o momento em que a televisão começa a globalizar o mundo, o entusiasmo do programa espacial, a reforma do Concílio Vaticano II que prosseguia nos vários sectores da Igreja. O texto caiu como um duche gelado sobre as costas da geração de sessenta! A história de efeitos que desencadeou, desde a primeira hora, com discussões mediáticas e teológicas, pronunciamentos amortecedores de Conferências Episcopais, tem que ver com o confronto doloroso que se joga no seu interior entre dois modelos de justificar a moral cristã. Começamos pelos aplausos ao texto. O primeiro deles vai para a consagração de uma teologia personalista do matrimónio. Dentro da Comissão que preparou a Humanae Vitae havia um grupo fortemente empenhado numa proposta diferente no que toca ao lugar do amor na visão do matrimónio. Entre os que a integravam convém lembrar o saudoso P. Bernhard Häring. Ora o ponto de vista desta linha, que vinha do Concílio, ficou consagrado no texto. Basta ler o belíssimo n. 9, onde se fala do carácter humano, total, fiel e exclusivo, fecundo do amor matrimonial, para ver como um sangue novo circulava nos canais romanos por essa altura. Este ponto é muito importante e deve ser recordado como um marco miliário num combate inacabado por pensar o matrimónio na base da relação e do amor que o próprio Deus deposita no coração humano e não somente na base jurídica do contrato, pressupondo uma desconfiança rigorista e pouco cristã em relação ao amor. Outro aplauso vai para a afirmação muito clara de que a decisão de procriar pertence primeiramente ao âmbito da ética e só depois pertence a outros âmbitos. Este ponto é também muito importante e vamos explicar porquê. Existe na cultura recente uma perigosa tendência, que por esses anos sessenta também era denunciada por um homem insuspeito como Michel Foucault, de recusar a soberania da ordem moral para se ir, ingenuamente, lançar nos braços da ordem normalizadora, representada pelo Estado higienista, ou por outras correntes da cultura massificada. Nestas condições, a questão da sexualidade, da vida conjugal e da procriação deixam de ser regradas pela moral e pela liberdade das pessoas e passam a ser governadas pelos Estados que se tornaram senhores da vida dos cidadãos ou por outros interesseiros grupos de pressão. Citemos o n. 17: “Deste modo, os homens, querendo evitar dificuldades individuais, familiares, ou sociais, que se verificam na observância da lei divina, acabariam por deixar à mercê da intervenção das autoridades públicas o sector mais pessoal e mais reservado da intimidade conjugal”. O convicto combate pela prevalência da ordem moral em relação a outros “magistérios” mais subtis é um ponto que merece, a nosso ver, um merecido aplauso. Vamos agora à lamentação relativa ao texto da Humanae Vitae. É sabido como a norma moral principal, relativa à regulação da fecundidade, provém da outra corrente da Comissão, representada, entre outros, pelo P. Marcelino Zalba. Essa norma é alheia ao contexto personalista do amor, que se propõe nas orientações gerais, e desfocada em relação à defesa da precedência da moral, num contexto de manipulação. Eis famoso n. 14: “É, ainda, de excluir toda a acção que, ou em previsão do acto conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação”. Este número sempre foi interpretado como proibindo a regulação artificial da fecundidade, sobretudo por meio de contraceptivos hormonais. É certo que outros pronunciamentos, mais localizados, tentaram pacificar os fiéis dizendo que, em circunstâncias de grande densidade, a consciência pessoal pode legitimar o recurso a esse procedimento. Mas a norma está aí. Mais adiante, o texto diz que se pode recorrer aos períodos infecundos da mulher, pois nesse caso o acto conjugal permanece aberto à fecundidade. Queríamos justificar diante dos leitores o tom de lamentação que apusemos a este parágrafo. Vamos alinhar algumas razões pelas quais nos permitimos dizer que ocorre uma revisão desta norma. Primeiro, porque não é tida em conta e o pior que pode acontecer a uma norma moral não é ser recusada, mas ser ignorada. Em segundo lugar, porque esta norma não tem o seu fundamento na caridade cristã que é o único fundamento indiscutível das normas morais. Ela reflecte um fundamento naturalista e biologista que é difícil religar a uma razão iluminada pela fé. Em terceiro lugar, parece-nos que há outras maneiras de chegar a exprimir as exigências éticas que não seja por este conformismo com o funcionamento da natureza. Entre essas a que faz decorrer essas exigências da “sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo” (Decreto Optatam Totius, 16). E, já agora, “fiéis” são os casais cristãos que não foram suficientemente ouvidos nesta matéria e é urgente que sejam numa revisão desta norma num futuro texto. Jorge Teixeira da Cunha, Director-Adjunto Faculdade de Teologia

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