A Eucaristia: Fonte e Cume da vida e da missão da Igreja

Sínodo dos Bispos, XI Assembleia Geral Ordinária – Instrumentum Laboris Índice PREFÁCIO INTRODUÇÃO A Assembleia sinodal no Ano da Eucaristia O Instrumentum laboris e o seu uso I PARTE A EUCARISTIA E O MUNDO DE HOJE Capítulo I : FOME DO PÃO DE DEUS Pão para o homem no mundo Alguns dados estatísticos essenciais A Eucaristia nos diversos contextos da Igreja A Eucaristia e o sentido cristão da vida Capítulo II : A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL O mistério eucarístico, expressão de unidade eclesial A relação entre a Eucaristia e a Igreja, ‘Esposa e Corpo de Cristo’ A relação entra a Eucaristia e os outros sacramentos A estreita ligação da Eucaristia com a Penitência A relação entre a Eucaristia e os fiéis Sombras na celebração da Eucaristia II PARTE A FÉ DA IGREJA NO MISTÉRIO DA EUCARISTIA Capítulo I : A EUCARISTIA, DOM DE DEUS AO SEU POVO A Eucaristia, mistério da fé A Eucaristia, nova e eterna aliança A fé e a celebração da Eucaristia A fé pessoal e eclesial A percepção do mistério eucarístico entre os fiéis O sentido do sagrado na Eucaristia Capítulo II : O MISTÉRIO PASCAL E A EUCARISTIA A centralidade do mistério pascal Os nomes da Eucaristia Sacrifício, memorial e banquete A consagração A presença real III PARTE A EUCARISTIA NA VIDA DA IGREJA Capítulo I : CELEBRAR A EUCARISTIA DO SENHOR “Nós Vos damos graças porque nos admitistes à vossa presença” Os ritos de introdução A Liturgia da Palavra A liturgia eucarística A Comunhão Os ritos de conclusão A ars celebrandi A Palavra e o Pão de vida O significado das normas Urgências pastorais O canto litúrgico O decoro do lugar sagrado Capítulo II : ADORAR O MISTÉRIO DO SENHOR Da celebração à adoração Atitudes de adoração À espera do Senhor A Eucaristia dominical IV PARTE A EUCARISTIA NA MISSÃO DA IGREJA Capítulo I : A ESPIRITUALIDADE EUCARÍSTICA A Eucaristia, fonte da moral cristã Pessoas e comunidades eucarísticas Maria, mulher eucarística Capítulo II : A EUCARISTIA E A MISSÃO DE EVANGELIZAÇÃO Atitude eucarística As implicações sociais da Eucaristia A Eucaristia e a inculturação A Eucaristia e a paz A Eucaristia e a unidade A Eucaristia e o ecumenismo A Eucaristia e a inter-comunhão Ite missa est CONCLUSÃO PREFÁCIO A Igreja vive da Eucaristia desde as suas origens. Nela, encontra a razão da sua existência, a fonte inesgotável da sua santidade, a força da unidade e o vínculo da comunhão, o vigor da sua vitalidade evangélica, o princípio da sua acção de evangelização, a fonte da caridade e o impulso da promoção humana, a antecipação da sua glória no banquete eterno das Núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19,7-9). Entre os diversos graus de presença do Senhor ressuscitado na sua Igreja, ocupa lugar de destaque o sacramento da Eucaristia, em que, pela graça do Espírito Santo e as palavras da consagração, o pão e o vinho se tornam corpo e sangue de Jesus Cristo para glória e louvor de Deus Pai. Esse inestimável dom e grande mistério realizou-se na Última Ceia e, por ordem explícita do Senhor Jesus – “Fazei isto em memória de Mim” (Lc 22,19) –, foi-nos transmitido pelos Apóstolos e seus sucessores. A esse respeito, escreve São Paulo em referência ao pão e ao cálice da nova Aliança: “Eu próprio recebi do Senhor o que por minha vez vos transmiti” (1 Cor 11,23). Trata-se de Tradição sagrada, que se transmite fielmente de geração em geração até aos nossos dias. O depósito da fé eucarística, não obstante diversas controvérsias doutrinais e disciplinares, chegou até nós, por graça da Divina Providência, na sua pureza original, em virtude sobretudo da doutrina de dois Concílios ecuménicos: o de Trento (1545-1563) e o do Vaticano II (1962-1965). Muito contribuíram para uma melhor compreensão do mistério eucarístico diversos Sumos Pontífices, entre os quais merecem particular menção os Papas Paulo VI e João Paulo II, de veneranda memória, ambos empenhados em aplicar a nível da Igreja universal as deliberações do Concílio Vaticano II. Durante o Pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica foi enriquecida com grandes documentos sobre o sacramento da Eucaristia. Basta recordar o Catecismo da Igreja Católica, a Encíclica Ecclesia de Eucharistia e a Carta Apostólica Mane nobiscum Domine. Também o actual Santo Padre Bento XVI entende colocar o seu Pontificado na mesma perspectiva de actuação do Concílio Vaticano II e em fiel continuidade com a bimilenária tradição da Igreja, ao anunciar, já na primeira alocução dirigida através do Colégio dos Cardeais à Igreja inteira, que a Eucaristia é o centro permanente e a fonte do serviço petrino que lhe foi confiado. Os referidos documentos contêm uma densa reflexão sobre o sacramento da Eucaristia com incidências significativas tanto espirituais como pastorais. Verificar, no início do Terceiro milénio do cristianismo, de que modo tão rico património da fé é posto em prática na realidade da Igreja Católica espalhada pelos cinco continentes, é uma questão de sensibilidade pastoral, de responsabilidade episcopal e de visão profética. Não foi, portanto, uma surpresa a proposta das Conferências Episcopais de todo o inteiro e de outros organismos eclesiais, consultados pela Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos e de acordo com o Conselho Ordinário, de apresentar à aprovação do Santo Padre o tema da Eucaristia para a XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Dada a importância da matéria, Sua Santidade acolheu de bom grado a sugestão, estabelecendo o tema: “A Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja”, e o tempo da assembleia: 2-23 de Outubro de 2005. É claro para todos como na escolha do tema exista uma explícita referência ao ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a Eucaristia, nomeadamente da Constituição dogmática Lumen gentium (n. 11), retomado mais tarde na Encíclica Ecclesia de Eucharistia (nn. 1 e 13). Não se trata de uma referência casual, mas programática, procurando reavivar o entusiasmo do Concílio Ecuménico Vaticano II e ver de que forma o ensinamento sobre o sacramento da Eucaristia foi posto em prática à luz do sucessivo Magistério da Igreja. Com a ajuda dos Membros do Conselho Ordinário, a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos começou a preparação da XI Assembleia Geral Ordinária, com a elaboração dos Lineamenta. Tal documento foi publicado no início do ano de 2004 com a intenção de suscitar uma ampla reflexão eclesial sobre o mistério da Eucaristia, celebrado e adorado nas dioceses e nas comunidades da Igreja Católica e anunciado ao mundo inteiro. O documento foi, com efeito, enviado às Conferências Episcopais, às Igrejas Orientais Católicas sui iuris, aos Dicastérios da Cúria Romana e à União dos Superiores Gerais, com o expresso pedido de responderem, após reflexão e oração, a um Questionário sobre diversas questões pastorais relativas à Eucaristia. O mesmo documento foi também objecto de larga difusão na Igreja e no mundo através dos meios de comunicação social. O Povo de Deus, guiado pelos Pastores, deu uma boa resposta à consulta, oferecendo válidos contributos sobre o tema em ordem à preparação da assembleia sinodal. Em diversos países foram promovidos debates a nível de dioceses, paróquias e outras comunidades eclesiais. Conseguiu-se realizar, assim, uma análise sobre a fé e a prática eucarísticas a nível da Igreja universal. As reacções chegaram à Secretaria Geral: em forma de “respostas”, as dos organismos acima referidos com notável dimensão colegial; em forma de “observações”, as dos que espontaneamente quiseram contribuir para o processo sinodal. Os resultados foram recolhidos no presente Instrumentum laboris, que é uma síntese fiel dos contributos recebidos. Reflectindo sobre o teor das respostas, não se quis, com o documento, apresentar mais uma síntese teológica sistemática e completa do sacramento da Eucaristia, aliás já existente na Igreja, mas tão só recordar algumas verdades doutrinais de grande repercussão na celebração desse mistério sublime da nossa fé, realçando a sua grande riqueza pastoral. Daí que o documento se tenha concentrado sobretudo nos aspectos positivos da celebração eucarística, que congrega os fiéis e faz deles comunidade, não obstante as diferenças de raça, língua, nação e cultura. No documento, passa-se a mencionar também algumas omissões ou negligências na celebração da Eucaristia, felizmente bastante marginais, mas que servem para tomar uma maior consciência do respeito e piedade com que os membros do clero e todos os fiéis deveriam abeirar-se da Eucaristia para celebrar o seu sagrado mistério. O documento contém, por fim, uma série de propostas, sugeridas pelas numerosas respostas, e que são fruto de aprofundadas reflexões pastorais das Igrejas particulares e de outros organismos consultados. É óbvio que a celebração do sacramento da Eucaristia se exprima nos diversos países e continentes de forma muita variada, o que é evidente, se se consideram as diferentes tradições espirituais ou ritos da Igreja Católica. A diversidade, longe de enfraquecer a sua unidade, mostra a riqueza da Igreja na comunhão católica, caracterizada pela troca dos dons e das experiências. Os católicos de tradição latina descobrem essa riqueza na insigne espiritualidade das Igrejas Orientais Católicas, como resulta quer dos Lineamenta quer do Instrumentum laboris. Por sua vez, os cristãos das tradições orientais descobrem o notável património teológico e espiritual da tradição latina. Semelhante atitude tem também uma finalidade ecuménica, pois, se a Igreja Católica respira por dois pulmões, e disso é grata à Divina Providência, por outro lado, aguarda o feliz dia em que essa riqueza espiritual possa ser reavivada por uma unidade plena e visível com as Igrejas Orientais que, embora na falta de uma plena comunhão, em boa parte professam a mesma fé no mistério de Jesus Cristo Eucaristia. O Instrumentum laboris destina-se aos Padres sinodais como documento de trabalho e de ulterior reflexão sobre a Eucaristia, que, como coração da Igreja, a impele, na comunhão, para um renovado esforço missionário. A reflexão será certamente frutuosa, porque o espírito de colegialidade, próprio das reuniões sinodais, favorecerá a criação de consensos sobre as propostas destinadas ao Santo Padre. Conseguir-se-ão também abundantes frutos da reforma litúrgica, da investigação exegética e do aprofundamento teológico que marcaram o período a seguir ao Concílio Vaticano II. Das respostas sintetizadas no Instrumentum laboris emerge o voto do Povo de Deus para que os trabalhos dos Padres sinodais, reunidos com o Bispo de Roma, Chefe do Colégio episcopal e Presidente do Sínodo, e com outros representantes da comunidade eclesial, ajudem a redescobrir a beleza da Eucaristia, que é sacrifício, memorial e banquete de Jesus Cristo, Salvador e Redentor do mundo. Os fiéis aguardam orientações adequadas para celebrar mais dignamente o sacramento da Eucaristia, pão descido do céu (cf. Jo 6,58) e oferecido a Deus Pai no seu Filho Unigénito; para adorar mais devotamente o Senhor nas espécies do pão e do vinho e para reforçar os laços de unidade e comunhão entre os que se nutrem do Corpo e Sangue do Senhor. Tal expectativa não surpreende, uma vez que os cristãos que tomam parte na mesa do Senhor, iluminados pela graça do Espírito Santo, são parte viva da Igreja, corpo místico de Jesus Cristo; são suas testemunhas no ambiente de vida e de trabalho, atentos às necessidades espirituais e materiais do homem de hoje, e activos na construção de um mundo mais justo, onde não falte a ninguém o pão nosso de cada dia. Os Padres do Sínodo cumprirão as suas tarefas sinodais seguindo o exemplo da Bem-aventurada Virgem Maria, Mulher eucarística, na sua disponibilidade a fazer a vontade de Deus Pai e em espírito de abertura às inspirações do Espírito Santo. Num trabalho tão importante, confiam no apoio dos vínculos da comunhão com o clero e com os fiéis, que neste Ano da Eucaristia e com renovado zelo não cessam de rezar, celebrar, adorar e testemunhar com a vida cristã e a caridade fraterna a fecundidade do mistério eucarístico, anunciando com novo vigor apostólico aos de perto e aos de longe a beleza do grande mistério da fé contido no sacramento da Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja para o Terceiro milénio do cristianismo. Nikola Eterović, Arcebispo tit. de Sisak, Secretário Geral INTRODUÇÃO A Assembleia sinodal no Ano da Eucaristia 1. A próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que se realizará de 2 a 23 de Outubro de 2005 sobre o tema A Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, é precedida de uma fase preparatória que empenha toda a Igreja espalhada no mundo, graças também ao magistério de João Paulo II, que promulgou a Encíclica Ecclesia de Eucharistia e a Carta Apostólica Mane nobiscum Domine, e dos bispos e teólogos do 48° Congresso Eucarístico Internacional de Guadalajara no México.[1] Também se consideram de certa forma relacionados com o tema sinodal a Instrução Redemptionis sacramentum e o subsídio Ano da Eucaristia. Sugestões e propostas, documentos da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, este último publicado por ocasião da abertura do Ano da Eucaristia que, aberto a 17 de Outubro de 2004, encerrará precisamente com o Sínodo. Para orientar a preparação específica, foram preparados os Lineamenta, não para oferecer um tratado completo sobre a Eucaristia nem para simplesmente repropor os ensinamentos doutrinais contidos nos documentos acima referidos, quanto para delinear as questões mais salientes no quadro dos pontos essenciais da doutrina eucarística da Igreja à luz da Sagrada Escritura e da Tradição. Sobre os Lineamenta e respectivo Questionário, receberam-se respostas das Conferências Episcopais, das Igrejas Orientais Católicas sui iuris, da Cúria Romana e da União dos Superiores Gerais, bem como observações de bispos, sacerdotes, religiosos, teólogos e fiéis leigos, que depois foram recolhidas no Instrumentum laboris. Este documento de trabalho da futura assembleia serve para informar sobre a realidade da fé, do culto e da vida eucarística das Igrejas particulares espalhadas pelo mundo e para confrontá-la com a da Igreja universal. O Instrumentum laboris e o seu uso 2. Para favorecer a reflexão e a discussão preparatórias, bem como as intervenções e o debate na sala sinodal, o Instrumentum laboris enuncia os dados doutrinal e pastoral. Nesses dois campos, de facto, se encontram constantemente empenhados os bispos no exercício do seu tríplice múnus episcopal de ensinar, santificar e governar o povo de Deus. Com efeito, a praxis da Igreja no mundo deve continuamente confrontar-se com a doutrina perene alimentada pela Sagrada Escritura e pela Tradição. Aplicando o método ao tema do Sínodo, há que verificar se a lei da oração corresponde à lei da fé; ou seja, perguntar em que crê e como vive o povo de Deus para que a Eucaristia possa ser cada vez mais a fonte e o ápice da vida e da missão da Igreja e de cada fiel, através da liturgia, da espiritualidade e da catequese, nos âmbitos culturais, sociais e políticos. Das respostas aos Lineamenta emerge a necessidade de compreender a Eucaristia à luz da sua dúplice qualidade de fons et culmen na Igreja. O Sacrifício sacramental é fonte, enquanto, em virtude das palavras do Senhor e por obra do Espírito Santo, contém a eficácia da paixão de Jesus Cristo e a força da sua ressurreição. A Eucaristia é também ápice da vida da Igreja, enquanto leva à comunhão com o Senhor para a santificação e divinização do homem, membro de uma comunidade congregada à volta da mesa do Senhor. Desta verdade, fons et culmen, nasce o empenho de transformar as realidades temporais. Tal é o tema geral do Sínodo. Pode dizer-se que na Eucaristia está contido o sentido do sacrifício de Jesus: Deus doa-se total e gratuitamente, e o homem entrega-se completamente ao Pai que o ama. Trata-se de uma dupla expressão de amor, que de certa maneira corresponde à Eucaristia como sacrifício e como banquete. As respostas em geral apreciaram o facto de os Lineamenta terem convidado a olhar, não só para a Eucaristia da liturgia de tradição latina, mas também para a das liturgias das tradições orientais. A osmose é considerada enriquecedora e benéfica, até para realçar as luzes e dissipar as sombras que se verificam em não poucos lugares. O texto do Instrumentum laboris procura fazer o mesmo, abarcando a inteira tradição da Igreja, e não só a perspectiva do rito latino, embora não se possa ignorar que alguns fenómenos são próprios deste último. Este Instrumentum laboris é agora apresentado à reflexão dos Pastores das Igrejas particulares, para que, juntamente com o povo de Deus, se preparem para o Sínodo, onde os Padres oferecerão ao Bispo de Roma propostas úteis para a renovação eucarística da vida eclesial. I PARTE A EUCARISTIA E O MUNDO DE HOJE Capítulo I FOME DO PÃO DE DEUS “O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo. Disseram-Lhe eles: Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6, 33-34) Pão para o homem no mundo 3. À multidão que Lhe pedia um sinal para poder acreditar, Jesus apresentou-Se Ele próprio como o verdadeiro pão que sacia o homem (cf. Jo 6,35), o Pão que desce do céu para dar a vida ao mundo. Também o mundo de hoje precisa desse pão para ter a vida. No diálogo com Jesus, que Se apresentava como o Pão para a vida do mundo, a multidão espontaneamente pediu-Lhe: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”. É um pedido significativo, expressão do profundo desejo radicado no coração, não só dos fiéis, mas de todo o homem que aspira à felicidade simbolizada no pão da vida eterna. Também o mundo, neste ano do Senhor de 2005, apesar das dificuldades e contradições de vária espécie, aspira à felicidade e deseja o pão da vida, da alma e do corpo. Para dar uma resposta a esse anseio humano, o Papa fez um vivo apelo a toda a Igreja para que o Ano da Eucaristia fosse também ocasião de um empenho sério e profundo na luta contra o drama da fome, o flagelo das doenças, a solidão dos anciãos, as dificuldades dos desempregados e as deslocações dos migrantes. Os frutos desse empenho serão a prova da autenticidade das celebrações eucarísticas.[2] Não só o homem, mas toda a criação espera novos céus e nova terra (cf. 2 Pe 3,13) e a recapitulação de todas as coisas em Cristo, inclusive as terrenas (cf. Ef 1,10). Por isso, a Eucaristia, sendo o ápice para que tende toda a criação, é a resposta à preocupação do mundo contemporâneo, mesmo em vista do equilíbrio ecológico. De facto, o pão e o vinho, matéria que Jesus Cristo escolheu para toda a Santa Missa, unem a celebração eucarística à realidade do mundo criado e confiado ao homem (cf. Gen 1,28), no respeito das leis que o Criador imprimiu nas obras das suas mãos. O pão, que se torna Corpo de Cristo, seja produzido por uma terra fértil, pura e incontaminada. O vinho, que se transforma no Sangue do Senhor Jesus, seja sinal de um trabalho de transformação do criado segundo as necessidades dos homens, preocupados também em salvaguardar os recursos necessários para as gerações futuras. A água, que unida ao vinho simboliza a união da natureza humana com a divina no Senhor Jesus, conserve as suas qualidades salutares para os homens sedentos de Deus, “nascente de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14). Alguns dados estatísticos essenciais 4. O tema do Sínodo, A Eucaristia: fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, exige, portanto, que se olhe também para alguns dados significativos do mundo, em que a Igreja vive e actua. Na impossibilidade de dar um quadro completo e exaustivo, fazem-se algumas notas e considerações de carácter geral. Alguns dados mostram claramente a relação estatística entre a população em geral e os fiéis que professam a fé católica. Note-se, a propósito, que os católicos em 2003 eram cerca de 1.086.000.000, com um aumento de 15.000.000 em relação ao ano precedente, assim distribuído por continentes: + 4,5% na África, +1,2%; na América, + 2,2% na Ásia e +1,3% na Oceânia. Na Europa existe uma situação praticamente de estabilidade. A leitura dos dados sobre a distribuição dos católicos nas diferentes áreas geográficas mostra como 49,8% dos católicos do mundo se encontre na América, 25,8% na Europa, 13,2% na África, 10,4% na Ásia e 0,8% na Oceânia.[3] Em relação à população total, a percentagem dos católicos por continente é a seguinte: 62,46%, na América, 39,59% na Europa, 26,39% na Oceânia, 16,89% na África e 2,93% na Ásia.[4] Do ponto de vista da distribuição geográfica da Igreja, note-se que em 2003 as circunscrições eclesiásticas eram 2.893, mais 10 que no ano precedente, e com um aumento em todos os continentes.[5] O número de bispos no mundo cresceu 27,68%, passando dos 3.714 de 1978 aos 4.742 de 2003, enquanto os sacerdotes em 2003 eram 405.450 (268.041 diocesanos e 137.409 religiosos) e em 1978 eram 420.971 (262.485 diocesanos e 158.486 religiosos), portanto com uma quebra de 3,69%; devida a uma diminuição dos sacerdotes religiosos na ordem dos 13,30% e um correspondente aumento de 2,12% dos sacerdotes diocesanos. Também diminuiu de 27,94% o número de religiosos professos não sacerdotes (75.802 em 1978 e 54.620 em 2003). Verifica-se igualmente uma quebra de 21,65% no número das religiosas professas (990.768 em 1978 e 776.269 em 2003).[6] Sendo a celebração do sacramento da Eucaristia essencialmente ligada ao sacramento da Ordem, há que ter presente também o aumento de católicos por cada sacerdote no mesmo período 1978-2003. Passou-se, com efeito, dos 1.797 católicos por sacerdote do início do período para os 2.677 do fim. A proporção é bastante diversificada de continente para continente. Por exemplo, aos cerca de 1.386 católicos por sacerdote da Europa, a África apresenta cerca de 4.723, a América 4.453, a Ásia 2.407 e a Oceânia 1.746.[7] Note-se, por outro lado, que, no mesmo período, os diáconos permanentes constituem o grupo que mais cresceu: no conjunto dos cinco continentes, mais que quintuplicaram, com um incremento da ordem dos 466,7%. Tem o seu interesse o facto de essa figura religiosa ter larga difusão na América, sobretudo na do Norte, onde se encontra 65,7% de todos os diáconos do mundo; vem a seguir a Europa com 32%. É, do mesmo modo, relevante o papel que, em todo o mundo, desempenham na evangelização os missionários leigos (172.331) e os catequistas (2.847.673).[8] 5. O Sínodo realiza-se num momento marcado por fortes contrastes na família humana. A globalização facilita a percepção da unidade do género humano, também graças aos meios de comunicação social que informam do que acontece em qualquer canto do mundo. É um dado importante do progresso da técnica, que nas últimas décadas conheceu avanços excepcionais. Infelizmente, porém, a globalização e o progresso técnico não favoreceram a paz e uma maior justiça entre as nações ricas e as nações pobres do terceiro e quarto mundos. Tudo leva a crer que, infelizmente, enquanto os Padres sinodais estiverem reunidos, em várias partes do mundo continuarão a perpetrar-se actos de violência, terrorismo e guerras. Ao mesmo tempo, muitos irmãos e irmãs serão vítimas de diversas doenças, como por exemplo a sida, que semearão desolação em várias camadas da população, sobretudo nos países pobres. Persistirá, infelizmente, o escândalo da fome, fenómeno que se tem agravado nos últimos anos, uma vez que mais de um bilião de pessoas vive na miséria. Devem, portanto, ter-se em conta alguns fenómenos relativos à realidade social, nomeadamente a fome, que não podem ser neglicenciados ao tratar da relação da Igreja com o mundo em termos de evangelização. A Igreja, de facto, desde sempre associou o anúncio do Evangelho e a transmissão da salvação através dos sacramentos às obras da promoção humana em tantos campos da vida social, como a saúde, a assistência humanitária e a educação. Daí que não se possa esquecer, entre outras coisas, o facto de, entre 1999 e 2001, ter havido no mundo 842 milhões de pessoas subalimentadas, 798 milhões das quais nos países em vias de desenvolvimento, sobretudo na África a Sul do Sahara, na Ásia e no Pacífico.[9] Uma realidade tão dramática não pode ficar alheia à reflexão dos Padres sinodais, que, como todos os cristãos, várias vezes ao dia rezam ao Senhor: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. A Eucaristia nos diversos contextos da Igreja 6. Das respostas aos Lineamenta emerge o facto de a frequência à Missa dominical ser bastante elevada nas diversas Igrejas particulares das nações africanas e nalgumas da Ásia. Dá-se o fenómeno oposto na maior parte dos países europeus e americanos e nalguns da Oceânia, atingindo mínimos percentuais de 5%. Os fiéis que neglicenciam o preceito dominical, não dão, na maior parte das vezes, grande importância à participação na Missa. No fundo, até nem sabem o que seja verdadeiramente o Sacrifício e banquete eucarísticos, que juntam os fiéis à volta do altar. A Missa pré-festiva dá a muitos a possibilidade de satisfazer o preceito, embora se aproveite, em certos casos, para realizar actividades laborais no Domingo. Em muitos lugares, a Missa nos dias de semana é frequentada por poucas pessoas, quem de forma habitual, quem ocasionalmente e quem por andar envolvido na vida eclesial. Deveria encorajar-se uma mais constante e intensa actividade de catequese sobre a importância e o dever de participar na Santa Missa aos Domingos e dias de preceito. Por vezes, desvaloriza-se o preceito, ao afirmar que é suficiente observá-lo quando o estado de ânimo o sugerir. 7. É possível individuar, nas Igrejas particulares, alguns fenómenos significativos. Assiste-se a um declínio na prática da fé e na frequência da Missa, sobretudo da parte dos jovens. Daí a necessidade de reflectir sobre quanto tempo os pastores e os catequistas dedicam à educação dos jovens e das crianças à fé e quanto dedicam a outras actividades, como as sociais. Assiste-se, nas sociedades secularizadas, a uma quebra do sentido do mistério, em parte também devido a interpretações e comportamentos contrários ao sentido da reforma litúrgica conciliar e que levam a ritos banais e pobres de sentido espiritual. Noutros lugares, as comunidades cristãs conservaram um profundo sentido do mistério, e aí a liturgia continua a ter um grande significado. Exprime-se a satisfação por uma liturgia inculturada que permite obter uma melhor participação activa na mesma. O resultado é uma maior participação na Missa, com muitos jovens e adultos a participar na vida e missão da Igreja. Quando, nas áreas rurais, por falta de clero, a Missa é celebrada uma ou outra vez por mês, se não por ano, é inevitável que o serviço dominical seja confiado a leigos. 8. Deve esclarecer-se que o acesso ao mistério depende de uma digna celebração da liturgia, da sua esmerada preparação e sobretudo da fé no próprio mistério. Para o efeito, é de grande ajuda a Encíclica Redemptoris missio, que pôs em evidência os dois aspectos da falta de fé que estão a incidir negativamente no fervor missionário: a secularização da salvação e o relativismo religioso. A primeira leva certamente a empenhar-se em favor do homem, mas de um homem limitado à sua dimensão horizontal.[10] Há quem dê a impressão de vincular a vocação de ministro dos mistérios de Deus à de um promotor da justiça social. O segundo leva a eliminar a verdade do cristianismo, ao considerar que uma religião vale tanto como a outra.[11] Em vez de ficar em lamentações, João Paulo II, na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, exorta a reforçar a acção missionária da Igreja.[12] O tema do Sínodo pode ser tratado de forma correcta se se tem em conta semelhante contexto e se não se esquece que, para os Apóstolos e para os Santos Padres – basta pensar em São Justino–,[13] a Eucaristia é a acção mais santa da Igreja, que acredita firmemente que nela está presente o Senhor Jesus Ressuscitado. Essa presença é o efeito fundamental do sacramento. É precisamente esse acontecimento, resultante da transformação das espécies do pão e do vinho, que leva a Igreja a aproximar-se, sempre com temor e tremor e, ao mesmo tempo, com confiança ao mistério que constitui a essência da liturgia. Hoje sente-se a necessidade de reafirmar o respeito para com o mistério da Eucaristia e a consciência da sua intangibilidade. Daí que se deva seguir um programa articulado de formação. Muito porém dependerá da existência de lugares exemplares, onde se acredite verdadeiramente na Eucaristia, se a celebre de maneira correcta e se possa viver pessoalmente o que ela é: a única verdadeira resposta à busca do sentido da vida, que caracteriza o homem de todas as latitudes. A Eucaristia e o sentido cristão da vida 9. O homem interroga-se sobre o sentido da vida: para que serve a minha vida? O que é a liberdade? Porque existe o sofrimento e a morte? Existe algo para além da morte? Numa palavra, a vida do homem tem ou não um sentido?[14] A interrogação persiste, mesmo quando o homem se ilude de ter alcançado a auto-suficiência ou se deixa dominar do medo e incerteza. A religião é a resposta definitiva à pergunta sobre o sentido da vida, porque leva o homem à verdade sobre si mesmo na relação com o verdadeiro Deus. A Eucaristia, que revela o sentido cristão da vida,[15] responde a essa pergunta, anunciando a ressurreição e a presença verdadeira, plena e duradoura do Senhor, como penhor da glória futura. Isso implica que o homem ponha a sua relação com Deus na base de tudo, porque Ele é a fonte de liberdade que lhe permite entrar no mais profundo de si mesmo para gratuitamente se entregar. Isso acontece no mistério pascal, onde a verdade e o amor se encontram, mostrando serem eles os distintivos da verdadeira religião. Assim, a Eucaristia confirma a verdade da Palavra de Deus: nihil hoc verbo veritatis verius, como canta o hino Adoro Te devote. O sentido da Eucaristia é integralmente explicado pelas palavras de Jesus: “Fazei isto em memória de Mim” (Lc 22,19). Em primeiro lugar, estas palavras anunciam que Jesus Cristo introduziu no tempo a eternidade, dando ao mesmo a orientação definitiva e eliminando o seu poder de aniquilamento. Em segundo lugar, com essas palavras, põe-se em evidência que a liberdade de Deus e a do homem se encontram em Jesus, criando uma comunhão que permite derrotar o maligno. Por fim, essas palavras estão a significar que Jesus Cristo é a fonte inesgotável de renovação do homem e do mundo, não obstante os limites e o pecado dos homens. 10. As respostas aos Lineamenta denunciam um certo afastamento da vida pastoral em relação à Eucaristia. Por isso, se espera do Sínodo um encorajamento a reforçar a ligação entre a vida e a missão. A Eucaristia é a resposta aos sinais dos tempos da cultura contemporânea. À cultura da morte, a Eucaristia responde com a cultura da vida. Contra o egoísmo individual e social, a Eucaristia afirma a doação total. Ao ódio e ao terrorismo, a Eucaristia contrapõe o amor. Perante o positivismo científico, a Eucaristia proclama o mistério. Opondo-se ao desespero, a Eucaristia ensina a esperança segura da eternidade feliz. A Eucaristia mostra que a Igreja e o futuro do género humano estão ligados a Cristo, única rocha verdadeiramente duradoura, e não a qualquer outra realidade. Por isso, a vitória de Cristo é o povo cristão que crê, celebra e vive o mistério eucarístico. Capítulo II A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL “Uma vez que existe um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos desse único pão” (1 Cor 10,17) O mistério eucarístico, expressão de unidade eclesial 11. Ao exortar os fiéis a fugir da idolatria, abstendo-se de comer a carne imolada aos ídolos, São Paulo realça o estreito vínculo de comunhão dos cristãos com o sangue de Cristo e com o seu corpo, capaz de formar da multidão dos fiéis uma só comunidade, uma só Igreja (cf. 1 Cor 8,1-10). O tema da comunhão eclesial foi objecto de particular atenção por parte do Concílio Ecuménico Vaticano II.[16] Tanto é que o tema foi particularmente evidenciado na relação final da II Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, celebrada para comemorar o 25° aniversário de dito Concílio,[17] bem como num documento que a Congregação para a Doutrina da Fé enviou aos Bispos da Igreja Católica.[18] O tema foi também amplamente tratado no capítulo VI da Exortação Apostólica post-sinodal Pastores gregis, promulgada pelo Papa João Paulo II a seguir à X Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Nesse documento pontifício, que recolhe a reflexão sinodal sobre o tema, é posto em evidência como a comunhão dos Bispos com o Sucessor de Pedro, sinal da unidade entre a Igreja universal e as Igrejas particulares, tem um ponto culminante na celebração eucarística dos Bispos com o Papa durante as visitas ad limina. A Eucaristia presidida pelo Santo Padre e concelebrada pelos Pastores das Igrejas particulares exprime de forma excelente a unidade da Igreja. Essa concelebração ajuda a compreender mais claramente que “toda a Eucaristia […] é celebrada em comunhão com o Bispo próprio, com o Romano Pontífice e com o Colégio Episcopal e, através destes, com os fiéis da Igreja particular e da Igreja inteira, de modo que a Igreja universal está presente na Igreja particular e esta está inserida, com as demais Igrejas particulares, na comunhão da Igreja universal”.[19] Em relação à temática da Eucaristia como expressão da comunhão eclesial, emergem das respostas aos Lineamenta os seguintes temas, que merecem um tratamento especial: relação entre a Eucaristia e a Igreja; relação entre a Eucaristia e os outros sacramentos, em especial a Penitência; relação entre a Eucaristia e os fiéis; sombras na celebração da Eucaristia. A relação entre a Eucaristia e a Igreja, ‘Esposa e Corpo de Cristo’ 12. A Eucaristia é o coração da comunhão eclesial. O Concílio, entre tantas imagens da Igreja, privilegiou uma que exprime toda a sua realidade: a de mistério. Antes de mais, a Igreja é mistério do encontro entre Deus e a humanidade; por isso, a Igreja é Esposa e Corpo de Cristo, Povo de Deus e Mãe. A mútua relação entre a Eucaristia e a Igreja permite aplicar a ambas as notas do Credo: una, santa, católica e apostólica, que a Encíclica Ecclesia de Eucharistia veio explicar ulteriormente.[20] A Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja é o lugar onde se realiza a comunhão com Deus e com os homens. A Igreja é consciente que a Eucaristia é o sacramento da unidade e da santidade, da apostolicidade e da catolicidade, sacramento essencial para a Igreja, esposa de Cristo e seu corpo. As notas da Igreja são, ao mesmo tempo, os vínculos da comunhão católica, que dão legitimidade à celebração da Eucaristia. João Paulo II recordava que “a Igreja é o corpo de Cristo: caminha-se ‘com Cristo’ na medida em que se está em relação ‘com o seu corpo’”.[21] É aqui onde encontram o seu verdadeiro sentido o cumprimento das normas e o decoro da celebração: trata-se da obediência a Cristo por parte da Igreja, sua esposa. 13. A Igreja faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja. Embora tenham sido ambas instituídas por Cristo, uma em vista da outra, os dois termos da conhecida máxima não são equivalentes. Se a Eucaristia faz crescer a Igreja, porque no sacramento se encontra Cristo vivo, ainda antes Ele quis a Igreja para que esta celebre a Eucaristia. Os cristãos do Oriente dão especial realce ao facto que, desde a criação, a Igreja preexiste à sua realização terrena. A pertença à Igreja é prioritária, para se poder ter acesso aos sacramentos: não se pode aceder à Eucaristia, sem antes ter recebido o Baptismo, ou não se pode voltar à Eucaristia, sem antes ter recebido a Penitência, o chamado baptismo ‘laboriosus’ para os pecados graves. Desde as suas origens e para exprimir essa urgência propedêutica, a Igreja instituiu, respectivamente, o catecumenato para a iniciação e o itinerário penitencial para a reconciliação. Por outro lado, não há Eucaristia válida e legítima sem o sacramento da Ordem. É por isso que a Encíclica Ecclesia de Eucharistia fala de “influxo causal da Eucaristia na própria origem da Igreja”,[22] e de uma estreita ligação entre uma e outra.[23] Com tais premissas, compreende-se melhor a afirmação de que “a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência ela pressupõe e a cuja consolidação e perfeição se destina. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão, tanto na dimensão invisível […] como na visível […] A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja, enquanto sacramento de salvação. Só neste contexto têm lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela“.[24] Falar de eclesiologia eucarística não significa que, na Igreja, tudo se possa deduzir da Eucaristia, que todavia não deixa de ser fonte e ápice da vida eclesial. Diz, com efeito, o Concílio Vaticano II que “a Sagrada Liturgia não esgota toda a acção da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, têm de escutar o apelo à fé e à conversão”.[25] O espaço onde naturalmente se desenrola a vida eclesial é a paróquia. Devidamente renovada e animada, deveria ser ela o lugar próprio para a formação e o culto eucarístico, uma vez que, como ensinava o Papa João Paulo II, a paróquia é “a comunidade de baptizados que exprime e afirma a sua identidade sobretudo através da celebração do Sacrifício eucarístico”.[26] Por outro lado, ela também terá de servir-se da experiência e do contributo dos movimentos e das novas comunidades que, sob o impulso do Espírito Santo, souberam valorizar, segundo os próprios carismas, os elementos da iniciação cristã, ajudando assim muitos fiéis a descobrir a beleza da vocação cristã, cujo centro, é para todos os membros da comunidade paroquial, o sacramento da Eucaristia. 14. A expressão litúrgica da eclesiologia católica encontra-se na anáfora, através dos chamados díticos, que lembram a dimensão eucarística do primado do Papa, Bispo de Roma, qual elemento interior para a Igreja universal, análogo ao do Bispo para a Igreja particular.[27] É a única Eucaristia que congrega na unidade a Igreja contra toda a fragmentação. A única Igreja querida por Cristo aponta sempre para uma Eucaristia, que se realiza em comunhão com o colégio apostólico, cujo Chefe é o Sucessor de Pedro. É esse o vínculo que dá legitimidade à Eucaristia. Não é conforme com a unidade eucarística querida por Cristo limitar-se a uma comunhão transversal entre as Igrejas chamadas irmãs. É elemento intrínseco ao sacramento a comunhão com o Sucessor de Pedro, princípio de unidade na Igreja, depositário do carisma de unidade e universalidade, que é o carisma petrino. Portanto, a unidade eclesial manifesta-se na unidade sacramental e eucarística dos cristãos. A relação entra a Eucaristia e os outros sacramentos 15. Existe uma relação específica da Eucaristia com os demais sacramentos. A tal respeito, há que ter presente, por um lado, que, segundo o Concílio de Trento, os sacramentos “contêm a graça que significam” e conferem-na em força da sua celebração.[28] Por outro lado, todos os sacramentos, aliás como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão estreitamente unidos à sagrada Eucaristia e a ela se ordenam.[29] Portanto, o sacramento da Eucaristia é “a perfeição das perfeições”.[30] A relação com a Eucaristia não se limita à celebração litúrgica, mas toca de modo especial a essência de cada sacramento. O sacramento do Baptismo é indispensável para entrar na comunhão eclesial, que é reforçada pelos outros sacramentos, oferecendo ao crente “graça sobre graça” (Jo 1,16). É conhecida a relação fundamental entre o Baptismo e a Eucaristia, enquanto fonte da vida cristã. Nas Igrejas de tradição oriental, recebe-se com o Baptismo também a Sagrada Comunhão, enquanto nas Igrejas de tradição latina acede-se à Eucaristia na idade da razão, e só depois de ter recebido o Baptismo. As respostas aos Lineamenta recomendam que se explicite a relação teológica entre o Baptismo e a Eucaristia como ápice da iniciação, mesmo que isso não deva levar necessariamente a celebrar o Baptismo sempre na Missa. Não faltam preocupações sobre a qualidade de uma adequada catequese em matéria. 16. Existe uma ligação teológica entre a Confirmação e a Eucaristia, porque o Espírito Santo leva o homem a acreditar no Senhor Jesus Cristo. Para melhor evidenciar essa ligação, nalgumas Igrejas particulares voltou-se à prática de administrar a Confirmação entes da Comunhão. A Eucaristia é o ápice de um verdadeiro itinerário da iniciação cristã. Viver como cristão significa tornar actual o dom do Baptismo, reavivado pelo Crisma e alimentado com uma participação regular na Santa Missa nos Domingos e dias de preceito. Constata-se que, com frequência, se delega nos sacerdotes a administração do Crisma, com o consequente risco de pôr em segundo plano o facto de o Bispo ser o seu ministro originário. Assim se tira aos novos crismados a oportunidade de se encontrarem com o pai e chefe visível da Igreja particular. 17. Algumas respostas levantam a questão da idade ideal de receber o sacramento do Crisma na Igreja de tradição latina, considerados os bons resultados espirituais e pastorais de uma administração da Sagrada Comunhão nos primeiros anos da infância. Seria o caso de recordar, a propósito, a constatação de João Paulo II no seu livro “Alzatevi, andiamo!”,[31] que mais recentemente observava que “as crianças são o presente e o futuro da Igreja. Desempenham um papel activo na evangelização do mundo, e com as suas orações contribuem para salvá-lo e melhorá-lo”.[32] No passado e em relação ao mesmo tema, com o Decreto Quam singulari, passou-se a admitir as crianças à Eucaristia a partir dos sete anos, idade considerada do uso da razão, quando já é possível distinguir o pão eucarístico do pão comum, fazendo-a preceder da confissão sacramental.[33] Tal orientação parece ser hoje mais necessária, quando se alcança com maior precocidade o uso da razão, com os seus perigos e tentações. Semelhante prática evidencia o primado da graça, com grandes benefícios para a Igreja, inclusive em termos de promoção das vocações sacerdotais. 18. A relação entre a Sagrada Ordem e a Eucaristia é visível precisamente na Missa presidida pelo bispo ou pelo sacerdote in persona Christi capitis. A doutrina da Igreja faz da Ordem a condição imprescindível para a validade da celebração da Eucaristia. Daí a insistente recomendação de se evidenciar “a função sacerdotal do sacerdócio ministerial na celebração da Eucaristia, diferente do sacerdócio comum dos fiéis na essência e não apenas no grau”.[34] Até por isso, se deve recomendar que os presbíteros participem na Eucaristia como celebrantes, desempenhando a função própria da sua ordem.[35] 19. É costume, nas Igrejas de tradição latina, celebrar o Matrimónio durante a celebração da Eucaristia, contrariamente ao que acontece nas Igrejas orientais. Quando o Matrimónio for celebrado na Missa, aproveite-se para indicar como modelo do amor cristão o amor com que Jesus Cristo, na Eucaristia, ama a sua Igreja como sua esposa, a ponto de dar a vida por ela. Deve acenar-se a esse amor esponsal, também quando o sacramento do Matrimónio for celebrado fora da Missa.[36] A Eucaristia é, portanto, a fonte inesgotável da unidade e do amor indissolúvel do Matrimónio e torna-se o alimento de toda a família na construção de um lar cristão. 20. A relação entre a Eucaristia e a Unção dos Enfermos tem a sua origem ‘institutiva’, aliás como todos os sacramentos, na pessoa de Cristo, que manifestava na solicitude para com os enfermos de toda a espécie o sentido da sua missão de curar e salvar o homem. Nas respostas aos Lineamenta recomenda-se que se apresente a relação entre a Unção e a Eucaristia como consolação e esperança na doença, mais que como último Viático. Convidam-se os ministros extraordinários da Comunhão a serem solícitos com os doentes graves e com as pessoas anciãs impedidas de participar fisicamente na celebração eucarística na igreja. Para bem destes, seria muito oportuno, como sugerem algumas respostas, potenciar o uso dos meios de comunicação social na transmissão de Santas Missas e de outras celebrações litúrgicas. Ao utilizar essa moderna tecnologia, convém que quantos nela se empenham recebam uma adequada formação teológica, pedagógica e cultural. 21. Sobre a integração dos sacramentos na Missa, as normas litúrgicas das Igrejas orientais não a prevêem, embora se dêem, aqui e além, algumas excepções com o Baptismo e o Matrimónio. Cabe a cada Igreja emanar oportunas normas em matéria. Para as Igrejas particulares de Rito latino, as respostas mostram que a integração é feita de modo diversificado, conforme os costumes, que variam de país para país. Há dioceses que têm normas para regular a celebração dos sacramentos e dos sacramentais durante a Missa, sobretudo os Matrimónios mistos e os funerais de não praticantes. Os Rituais normalmente distinguem, como fazem nomeadamente os do Baptismo e da Penitência, entre rito individual e rito comunitário. Se bem que do ponto de vista pastoral se prefira este último, não se deve cair numa espécie de comunitarismo, já porque o sacramento é sempre um dom ao indivíduo e também porque o fiel tem direito, sob determinadas condições, a uma administração individual do sacramento. A estreita ligação da Eucaristia com a Penitência 22. O sacramento da Reconciliação restabelece os vínculos de comunhão que o pecado mortal rompeu.[37] Merece, portanto, especial atenção a relação da Eucaristia com o sacramento da Reconciliação. As respostas evidenciam a necessidade de repropô-la no contexto da relação entre a Eucaristia e a Igreja, e como condição para encontrar e adorar o Senhor, que é o Santíssimo, em espírito de santidade e de coração puro. Ele lavou os pés aos Apóstolos para indicar a santidade do mistério. O pecado, como afirma São Paulo, provoca uma profanação semelhante à prostituição, porque os nossos corpos são membros de Cristo (cf. 1 Cor 6,15-17). Diz, por exemplo, São Cesário de Arles: “Todas as vezes que entramos na igreja, arrumemos as nossas almas como desejaríamos encontrar o templo de Deus. Queres encontrar uma basílica toda esplendente? Não manches a tua alma com a sujeira do pecado”.[38] A relação entre a Eucaristia e a Penitência na sociedade de hoje depende muito do sentido do pecado e do sentido de Deus. A distinção entre o bem e o mal facilmente se torna subjectiva. O homem moderno, insistindo unilateralmente no juízo da própria consciência, corre o risco de alterar profundamente o sentido do pecado. 23. São muitas as respostas aos Lineamenta que fazem referência à relação entre a Eucaristia e a Reconciliação. Em muitos países perdeu-se ou está-se a perder a noção da necessidade de se converter para receber a Eucaristia A relação com a Penitência nem sempre é entendida como a necessidade de estar em estado de graça no momento de receber a Comunhão, e por isso neglicencia-se a obrigação de confessar os pecados mortais.[39] A própria ideia de Comunhão como “alimento para a viagem” levou a relativizar a necessidade do estado de graça. Ao contrário, como o alimentar-se pressupõe um organismo vivo e sadio, assim a Eucaristia exige o estado de graça para reforçar o compromisso baptismal: não se pode estar em estado de pecado mortal para receber Aquele que é o remédio da imortalidade e o antídoto para não morrer.[40] Muitos fiéis sabem que não se pode receber a Comunhão em pecado mortal, mas falta-lhes uma ideia clara do que seja o pecado mortal. E há quem já nem se interrogue sobre isso. Cria-se com frequência o círculo vicioso: “não comungo, porque não me confessei, e não me confesso, porque não cometi pecados”: As causas podem ser várias, mas uma das principais é a falta de catequese sobre o tema. Um outro fenómeno muito comum é o de não facilitar com horários apropriados o acesso ao sacramento da Reconciliação. Em certos países, não se celebra a Penitência individual; ao máximo, faz-se duas vezes por ano uma celebração comunitária, segundo uma modalidade a meio caminho entre a II e a III fórmulas previstas no Ritual. Não se pode certamente ignorar a grande desproporção entre os muitos que comungam e os poucos que se confessam. É muito frequente os fiéis receberem a Comunhão sem pensar no estado de pecado grave em que possam encontrar-se. Daí que a ida à Comunhão da parte de divorciados casados à civil com novas núpcias seja um fenómeno frequente em vários países. Nas Missas de funerais ou de núpcias e noutras, muitos se abeiram da Comunhão só por uma generalizada convicção de que a Missa não é válida sem a Comunhão. 24. Perante tais realidades pastorais, muitas respostas reagem todavia de forma encorajadora. Pedem para ajudar as pessoas a tomarem consciência das condições de receber a Comunhão e da necessidade da Penitência que, precedida do exame de consciência, prepara o coração, purificando-o do pecado. Para o efeito, conviria que o celebrante falasse com frequência, mesmo na homilia, da relação entre os dois sacramentos. Foi expresso o desejo de, em todo o lugar, voltar a dar ao jejum eucarístico a rigorosa atenção que as Igrejas do Oriente continuam a dar-lhe.[41] O jejum, com efeito, como auto-domínio, empenha a vontade e leva à purificação da mente e do coração. Diz Santo Atanásio: “Queres saber o que o jejum faz? […] Expulsa os demónios e liberta dos maus pensamentos, alegra a mente e purifica o coração”.[42] Na liturgia quaresmal apela-se frequentemente para a purificação do coração através do jejum e do silêncio, como recomenda São Basílio.[43] Uma ou outra resposta aos Lineamenta pergunta se não conviria voltar à obrigação das três horas de jejum eucarístico. Convida-se a envidar esforços para promover a prática da reconciliação individual, através da colaboração inter-paroquial aos Sábados e Domingos, sobretudo no Advento e Quaresma. Muito mais poderia ser feito a nível da pregação e da catequese para recuperar o sentido do pecado e a prática penitencial, superando as dificuldades criadas pela mentalidade secularizada. Considera-se necessário dar a possibilidade de se confessar antes da Missa, adaptando os horários à real situação dos penitentes, e mesmo durante a celebração eucarística, como recomenda o Motu Próprio Misericórdia Dei.[44] Haverá que estimular os sacerdotes a uma maior disponibilidade para o ministério da Confissão, qual ocasião privilegiada de se tornarem sinais e instrumentos da misericórdia de Deus. A Igreja é, todavia, profundamente grata com os sacerdotes que devotadamente exercem esse ministério, preparando assim os fiéis a encontrarem e receberem Cristo na Eucaristia. Os fiéis sentir-se-ão atraídos para o sacramento da Penitência, sobretudo se virem o sacerdote no confessionário, como testemunharam nos nossos dias São Leopoldo Mandić, São Pio de Pietrelcina e tantos outros santos pastores. A relação entre a Eucaristia e os fiéis 25. Os fiéis leigos, parte essencial da Igreja comunhão, hierarquicamente estruturada, como ensinam o Concílio Vaticano II e outros documentos do Magistério,[45] são chamados à santa assembleia para participar na celebração eucarística. A Incarnação do Verbo, no Qual Deus Pai Se tornou visível, inaugurou o culto espiritual que se realiza segundo os ditames da razão no Espírito Santo. O culto, portanto, já não pode ser um “arremedo de usos humanos” (Is 29,13). O culto cristão tem uma implicação cristológica e antropológica; daí que a participação dos fiéis na liturgia, sobretudo na celebração eucarística, consista essencialmente em entrar nesse culto, em que Deus desce para o homem e o homem sobe para Deus. A própria Eucaristia, memorial do Filho, é o culto de adoração que no Espírito sobe ao Pai. Tal é o fundamento da renovação litúrgica concebida pelo Concílio Vaticano II. São muitos a constatar que a participação na Eucaristia frequentemente se reduz aos aspectos exteriores. Nem todos compreendem o seu verdadeiro sentido, que nasce da fé em Jesus Cristo, Filho de Deus. A participação na Eucaristia é considerada justamente como acto primário da vida da Igreja, como comunhão com a vida trinitária: com o Pai, que é fonte de todo o dom; com o Filho incarnado e ressuscitado, e com o Espírito Santo, que opera a transformação e a divinização da vida humana. As respostas aos Lineamenta convergem na necessidade de ajudar os fiéis a compreenderem a natureza da Eucaristia e a sua relação com a Incarnação do Verbo; daí a necessidade de participar no mistério eucarístico com o coração e a mente e sobretudo com a oferta de si próprio, mais que com actos externos. A esse propósito, sugere-se que se explicite a relação esponsal da Eucaristia com a Nova Aliança, como modelo das vocações do cristão: matrimónio, virgindade e sacerdócio. Tudo isso tem como objectivo a formação de pessoas e comunidades eucarísticas que amem e sirvam como Jesus na Eucaristia. 26. Conviria igualmente potenciar os meios de comunicação já existentes, sobretudo para facilitar a participação dos fiéis que, por várias razões, se encontrem impedidos de participar pessoalmente nas celebrações eucarísticas na igreja, como recomenda o Concílio Vaticano II.[46] Há propostas relativas aos meios de comunicação social da Santa Sé, que, com a melhor sinergia possível, são capazes de oferecer, com tempestividade e competência, bons serviços à Igreja universal, até para reagir prontamente à difusão de princípios anti-cristãos. Nesse empenho, deveriam ter papel relevante todos os meios de comunicação de inspiração católica. É urgente potenciá-los para se propor de forma equilibrada e positiva a mensagem cristã, e assim iluminar a consciência dos homens de boa vontade sobre temas éticos e morais de grande importância para a vida da Igreja e da sociedade. Sombras na celebração da Eucaristia 27. A comunhão eclesial é gravemente perturbada e ferida por sombras que se verificam na celebração eucarística, e que também as respostas aos Lineamenta assinalam. O tema, já abordado pelo Papa João Paulo II na Encíclica Ecclesia de Eucharistia[47] e tratado com mais pormenor na Instrução Redemptionis sacramentum,[48] é um convite a lançar um olhar atento e sereno, mas não menos crítico, sobre a maneira como a Igreja celebra este Sacramento, que é a fonte e o ápice da sua vida e missão. O facto de semelhante convite ter sido feito neste momento histórico, em que a Igreja se encontra cada vez mais empenhada no diálogo com as religiões e com o mundo, é uma inspiração providencial do Sucessor de Pedro, que mostra como a Igreja deva sempre olhar para si própria, a fim de poder relacionar-se com os interlocutores, sem perder a sua identidade de sacramento universal de salvação. No presente texto, serão indicadas diversas sombras que emergem da análise das respostas aos Lineamenta. Tais relevos devem ser vistos não tanto como simples transgressões das rubricas e das práticas litúrgicas, mas sobretudo como expressão de comportamentos mais profundos. Verifica-se uma quebra de frequência na celebração do Dies Domini nos Domingos e dias de preceito, devida a uma insuficiente noção do conteúdo e significado do mistério eucarístico e ao indiferentismo, sobretudo nos países em acelerado processo de secularização, onde frequentemente o Domingo se transforma num dia de trabalho. É frequente a ideia de que é a comunidade que cria a presença de Cristo, em vez de ser Este a fonte e o centro da nossa comunhão e a cabeça do seu Corpo, que é a Igreja. Está-se a alterar o sentido do sagrado em relação a este grande Sacramento, como efeito de um enfraquecimento da oração, da contemplação e da adoração do Mistério eucarístico. Corre-se o risco de comprometer a verdade do dogma católico da transformação do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Jesus Cristo, tradicionalmente chamada transubstanciação e, por conseguinte, da presença real de Cristo na Eucaristia, num contexto de ideias que pretendem explicar o mistério eucarístico, não já em si mesmo, mas na perspectiva do sujeito com que se entra em relação, por exemplo, com termos como transfinalização e transignificação. Verifica-se uma incoerência entre a fé professada no Sacramento e a dimensão moral, tanto na esfera pessoal como na mais vasta da cultura e da vida social. São pouco conhecidos os documentos da Igreja, nomeadamente os do Concílio Vaticano II, as grandes encíclicas sobre a Eucaristia, inclusive a Ecclesia de Eucharistia, a Carta Apostólica Mane nobiscum Domine e outros. Deixa de haver um justo equilíbrio na celebração: passa-se de um ritualismo passivo a uma criatividade exagerada, que por vezes assume expressões de protagonismo do celebrante da Eucaristia, caracterizado não raras vezes pela loquacidade e por comentários exagerados e compridos, que não deixam falar o ministro com o rito e as fórmulas da liturgia. IIª PARTE A FÉ DA IGREJA NO MISTÉRIO DA EUCARISTIA Capítulo I A EUCARISTIA, DOM DE DEUS AO SEU POVO “Mistério da fé” A Eucaristia, mistério da fé 28. Com esta expressão o sacerdote que preside à Eucaristia proclama maravilhado a fé da Igreja no Senhor ressuscitado, realmente presente sob as espécies do pão e do vinho, transformados pela graça do Espírito Santo no Corpo e no Sangue do Senhor Jesus. É conhecida a insistência do magistério conciliar sobre a Eucaristia como centro e coração da vida da Igreja e, antes de mais, como mistério da fé, desígnio de Deus revelado em Jesus Cristo. Deus que Se oferece Ele próprio a nós, que está connosco, é dom e mistério de inefável riqueza, dom e mistério que continuamente se devem descobrir. O Mysterium fidei é Deus que Se dá a nós, o Primeiro, o Último e o Vivente que entra no tempo. O Senhor Jesus é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus no meio de nós; é o Filho de Deus e o Filho do Homem. Um conhecido texto do Concílio Vaticano II responde ao interrogativo sobre a fé e sobre o mistério: “O mistério do homem só se compreende verdadeiramente no mistério do Verbo Incarnado […]. Cristo, na mesma revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação”.[49] A palavra mistério aparece, na citada passagem, três vezes, condensando a verdade sobre Cristo e a verdade sobre o homem. O mistério do Verbo, o mistério do Pai e o mistério do homem deixam de ser um enigma insolúvel para encontrarem resposta em Jesus Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Tornando-se “verdadeiramente um de nós” e estando unido “de certa maneira a todo o homem”,[50] Ele abriu a quantos o queiram encontrar o caminho que leva ao sentido pleno da existência. Não se alheou do humano, mas completou a verdade da criação, porque “trabalhou com mãos humanas, pensou com uma mente humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano”.[51] João Paulo II havia retomado esse tema na sua primeira Encíclica, Redemptor hominis,[52] como a querer fazer dele o programa da Igreja, chamada a deduzir da verdade sobre Cristo a verdade sobre o homem, que se encontra no próprio Evangelho. 29. O facto e mistério da incarnação, morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo, que permite ao homem participar na vida divina, está presente na Eucaristia, pão de vida eterna, porque traz em si a força de vencer a morte. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54). A ressurreição é, portanto, a permanente fonte de sentido oferecida à humanidade. A Eucaristia é, por conseguinte, o centro do anúncio que os cristãos, há dois mil anos, levam ao mundo: Jesus, o crucificado, de morto que era, voltou à vida e disso somos testemunhas (cf. 1 Cor 15,3-5). A Eucaristia anuncia a morte de Cristo que, na sua dramaticidade, todos podem compreender, mas, ao mesmo tempo, também proclama a sua ressurreição, que exige fé e abertura para acolher Deus na nossa existência. A fé é o novo estilo de vida que nasce da Eucaristia e traz em si mesma o sentido último e definitivo do esperar pela vinda do Senhor. Sem a fé, não se pode celebrar nem viver a Eucaristia, como lembra o trinómio fé-liturgia-vida, tão frequente nos planos pastorais. Sem a fé, não se pode sequer pôr a questão da participação activa na liturgia. A Eucaristia, nova e eterna aliança 30. Como recorda o Catecismo da Igreja Católica, citando Santo Ireneu: “A Eucaristia é o resumo e a suma da nossa fé: ‘A nossa maneira de pensar concorda com a Eucaristia e a Eucaristia, por sua vez, confirma a nossa maneira de pensar’”.[53] Como não ver realizada aqui a aliança com Deus, de que o homem precisa para viver; a aliança da fé? “Se não acreditardes, não vos mantereis firmes” (Is 7,9b) – diz o Senhor. A Eucaristia é a aliança nova e eterna, o pacto e o testamento que Jesus deixou no sacramento do seu corpo e sangue. Com efeito, a Igreja inteira exprime na Eucaristia a sua fé: depois de ter escutado a Palavra, professa-se a fé no mistério eucarístico, revelação e dom do próprio Deus em Jesus, que leva os cristãos à doação plena e perfeita de si mesmos. Sobretudo na Eucaristia, fé significa reconhecer e acolher Jesus Cristo como num encontro, em que a pessoa do fiel se envolve totalmente, a exemplo de Maria, modelo de fé plenamente realizada. A fé e a celebração da Eucaristia 31. As respostas aos Lineamenta põem em realce as características da fé como condições necessárias para celebrar a Eucaristia. Nela, se manifesta o primado da graça de Deus, que está sempre na origem de tudo e, com o dom do Espírito Santo, leva-nos a acolher a sua acção misteriosa no sacramento para a transformação do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Jesus e para a nossa santificação. Se se vai à liturgia eucarística sem acreditar na graça e sem, pelo menos, ter o desejo de estar em estado de graça, não se dá participação adoradora em espírito e verdade. Na Eucaristia proclama-se a verdade da Palavra de Deus que Se revelou em Jesus, Verbo feito carne, que traz em Si a realização última da história humana. Se se vai à liturgia da Eucaristia com dúvidas, em vez de com a aceitação da verdade, não se dá verdadeira participação. O dom da liberdade que o Criador fez à sua criatura faz com que a fé seja um acto livre de adesão à pessoa de Jesus, caminho, verdade e vida (cf. Jo 14,6). Na liturgia da Eucaristia, Jesus dá-Se a conhecer, mas, ao mesmo tempo, permanece oculto para levar a razão e a inteligência do crente a procurá-l’O constantemente e, assim, encontrá-l’O presente na vida. Tal é a acção do mistério a que a liturgia conduz, cada vez com mais profundidade. Os Padres chamavam-na mistagogia. O amor actua e completa a fé, como dizem os apóstolos Tiago e Paulo (cf. Tg 2,14 ss; Rom 13,10; Gal 5,6). A fé muda o coração do crente, converte-o e abre-o ao amor. A fé e o amor, juntamente com a esperança, fundam o ser cristão. A Eucaristia é o sacramento do amor, que abre o homem ao amor e permite-lh

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