A Cruz, modelo da sociedade nova

Homilia de Sexta-feira Santa de 2021 do bispo do Porto

Foto: Diocese do Porto

Este longo relato da Paixão transporta-nos à contemplação do ser de Deus e à nossa própria condição humana. De Deus, diz-nos que Ele não olha a limites, quando está em causa o nosso bem, a ponto de se poder falar em verdadeira “loucura da cruz” (1 Cor 1, 18-25), para usar a expressão de S. Paulo; a nós, faz-nos compreender que somos membros de uma humanidade que se edifica na dor e no sofrimento.

De facto, na cruz de Cristo descobre-se que Deus não é cruel, desinteressado ou distante das experiências que tecem a nossa vida. Pelo contrário, nela vemos um Deus totalmente solidário, que ama, se doa, une, consola, perdoa, acaricia, afaga e garante a glória e a alegria da ressurreição. Um Deus que assume o mais profundo da humanidade: os seus dramas e aspirações.

Mas também um Deus que dá o exemplo para a construção da sociedade nova: esta será solidária com todas as fragilidades do corpo ou da alma, tal como Jesus o foi e tal como Ele mesmo as assumiu. Sim, a humanidade pode comparar-se ao lençol de linho onde depositaram o corpo do Senhor: é urdida com os fios da dor e do sofrimento da vida, mas também com os da generosidade e do carinho dos que vão ao seu encontro. É nesse contributo comum que se tece este lençol belo e funcional.

A quantos sofrem e, particularmente, aos que mais sofrem, quero recordar que todos estamos irmanados na dor física ou moral: ninguém lhe escapa. Mas Aquele que suportou a dor maior não se colocou fora da humanidade. Ele é o filamento estruturante a partir do qual se produz o tal lençol novo, feito de misericórdia, compaixão e solidariedade. E nós, os outros fios da tal urdidura, não temos outro modelo nem podemos procurar outra natureza.

Isto mesmo se mostrou nos momentos mais duros e mais negros da pandemia. Fosse nas casas de cada pessoa mais idosa, fosse nos Lares, residências seniores e até nos hospitais, quem estava habituado a dedicar-se aos outros a exemplo de Jesus, fê-lo com uma tal solicitude e amor que impressionaram. Diretores, responsáveis e, especialmente, os diversos cuidadores passaram dias e dias sem ir a casa por motivos dos contágios, sofreram ao lado dos sofredores com lágrimas no coração mas um sorriso de disfarce, fizeram tudo o que podiam e o que não podiam para que nada faltasse, enfim, acarinharam, afagaram, retiraram medos, puseram em comunicação com familiares, acalentaram esperança. Foram verdadeira imagem de Cristo, pois o Senhor tanto está presente nos que necessitam de ajuda e, por isso, deixou que o Cireneu lhe levasse a cruz, como está na pessoa dos que cuidam e, como tal, passou a vida fazendo o bem, como atestam os seus milagres.

Quero, nesta Sexta-feira Santa, dia que nós identificamos com a condição humana que é tecida de penas e de doações, a partir desta Sé, coração da nossa Diocese do Porto, agradecer aos cuidadores que se deram aos mais frágeis dos frágeis com toda a dedicação e generosidade: o Senhor escreveu a letras de ouro no seu registo o bem que fizestes a seu exemplo. E quero, igualmente, abraçar os mais idosos, os que, porventura, estiveram hospitalizados, os que testaram positivo à Covid e a quantos sofreram por causa dela: na dor suportada, por vezes com imenso ânimo, também vós exprimistes o rosto de Cristo, rosto desfigurado pelo sofrimento em nosso favor, mas agora luminoso, atraente e glorificado.

Aproveitemos esta lição da pandemia. Conjuguemos o futuro com um verbo: ajudar. Ajudar e deixar-se ajudar deveria ser a matriz da sociedade. Que é como quem diz: uma sociedade construída na dedicação aos outros, particularmente aos mais frágeis, menos egoísta, mais solidária, mais investidora em amor e em estruturas que sabe serem, mais tarde ou mais cedo, necessárias para todos e cada um. Mesmo para aqueles que, agora, as desprezam ou ignoram.

Esta Diocese do Porto, que lançou a campanha de um crucifixo em cada casa, sabe bem que ele é interpelação a construir a família e a sociedade na abnegação, na entrega aos outros, na generosidade. Numa palavra: no amor. E que é aí que encontramos o sentido para a vida.

Então, aprendamos a lição que ele nos dá.

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