Novo Papa já definiu uma «identidade» de Igreja

Isabel Varanda, docente de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, comenta as mensagens iniciais do pontificado de Francisco

Agência Ecclesia (AE) – Que leitura retira da mensagem inaugural do pontificado do Papa Francisco, concretamente na necessidade que ele apontou para que todo o poder exercido seja encarado como um serviço aos outros, sobretudo na relação com os mais pobres e desprotegidos?

Isabel Varanda (IV) – O posicionamento do Papa Francisco não é inédito, a Igreja de Jesus Cristo sempre anunciou o seu poder como um ministério que, de certo modo, significa na sua raiz estar ao serviço, exercer um serviço fundamental e total.

O que é original é o facto de o Papa frisar bem este aspeto através das suas palavras, das poucas palavras que até agora dirigiu ao mundo e à Igreja, à Igreja de Roma em particular, e também através da sua postura física, do seu comportamento como pessoa junto dos outros.

Sendo um Papa da América Latina e tendo crescido num contexto em que se desenvolveram teologias da libertação, a partir de facto das situações deploráveis em que milhões de seres humanos viveram ao longo do século XX e continuam a viver, ele poderá representar aqui uma reviravolta bastante significativa.

Pode haver outras leituras, quase políticas, mas eu ousaria situar-me mais no contexto do reconhecimento de que a Igreja de Jesus Cristo e o Evangelho têm um poder de universalização espantoso, e é isso que faz também com que me reconheça cristã.

Será também certamente um enriquecimento profundo partirmos à escuta das mensagens positivas e menos positivas que nos chegam de outros quadrantes do mundo.

Tenho a sensação, e não faltariam exemplos para o ilustrar, que muitas vezes os católicos são testemunhas de uma Igreja irreconhecível, que dificilmente identificam com o Evangelho, em muitos contextos.

Nesse sentido, supostamente em consenso com o que tem sido a sua vida pastoral, enquanto cardeal e arcebispo de Buenos Aires, o Papa Francisco tem tido uma postura incarnada na realidade, assumindo, vivendo, partilhando, verbos muito importantes que já transmitiu explicitamente aos católicos e que fazem parte da sua essência como Pastor e como homem, uma presença fraterna, solidária, responsável, cuidadosa.

O discurso do Papa procura recentrar-nos num órgão vital que está ligado à dignidade de todas as criaturas de Deus e ao direito a uma vida boa, que não é necessariamente uma boa vida, e neste aspeto o Papa incarna na sua própria pessoa a preocupação com os vulneráveis, com os mais frágeis, diante dos quais Marguerite Yourcenar dizia que devíamos ajoelhar como diante de um altar.

Creio que é essa a postura do Papa Francisco, ajoelhar diante do frágil, do doente, do anónimo, do idoso, do desprezado, do mal-amado, como se estivéssemos em território sagrado. Essa postura do Papa é essencial, mas recorda-nos uma postura evangélica, um pouco na linha do Papa emérito Bento XVI.

Na sua encíclica Caritas in Veritate, é possível encontrar uma continuidade certamente com o novo Papa, a partir de um desafio à encarnação do evangelho de Jesus Cristo, na terra, na realidade, nas alegrias e sofrimentos do mundo.

Não há um rutura relativamente a pontificados anteriores, quer de Bento XVI quer também de João Paulo II, mas há uma complementaridade interessantíssima que só o futuro irá explicitar.

João Paulo II começou o seu pontificado e as suas primeiras palavras oficiais foram no sentido das pessoas não terem medo de Jesus Cristo, Bento XVI, de algum modo, em outros contextos, passou a mesma mensagem, para que as pessoas não tivessem medo de ser cristãs, não tivessem medo do Evangelho.

Na sua homilia de terça-feira, o Papa Francisco disse o mesmo, não de forma tão exortativa, mas quase como um conforto, que as pessoas não devem ter medo da bondade ou mesmo da ternura.

Isto é espantoso, porque marca aqui um tom de afabilidade, de emoção, convida a libertarmo-nos da aridez e de uma legislação fria e dura, mostra a intenção de evangelizar o poder no sentido não de um poder frio, caustico, insensível, mas de um poder caloroso, afável, humano.

A ternura, o afeto, é o laço que liga todas as criaturas, nas diferentes concretizações do exercício do poder, do serviço ao mundo e à Igreja, é aquele que de facto mantem coesa uma sociedade, mantem coeso o mundo.

Nesse sentido, creio que estão anunciados alguns tons do pontificado do Papa Francisco, não ousaria dizer que o seu discurso na missa inaugural é um discurso que comporta um programa para o seu governo, seria talvez um pouco forçado dizer isso, mas o tom do seu pontificado está definitivamente marcado.

 

AE – De que forma é que esse tom pode ter eco no meio de uma sociedade onde as lideranças políticas e económicas são muitas vezes acusadas de serem desumanas, e de uma Igreja Católica que vive tempos conturbados?

IV – Nós precisamos de ter confiança nos poderes que governam o mundo. É certo que em muitos contextos, e concretamente na situação que a Europa atravessa, com a crise e os problemas gravíssimos da sociedade portuguesa, nós colocamos em causa todas as estruturas que nos governam, a credibilidade de todo esse sistema.

Mas eu ainda queria acreditar na boa-fé daqueles que nos governam, não partir do pressuposto de que os governos não têm em vista o bem comum e que são perversos por essência e natureza.

Acredito que em muitos contextos, os órgãos de poder fazem o melhor que sabem, simplesmente aquilo que sabem é tão pouco, é tão redutor, que fica muito aquém da satisfação do que é essencial para reencontrar o equilíbrio de uma sociedade saudável, pacífica, onde há desenvolvimento sustentável e onde as pessoas, nas suas diversas concretizações, se vejam reconhecidas na sua dignidade e no seu direito a uma vida boa.

Há uma carência, um défice muito grande na educação integral das nossas elites culturais, politicas, governantes, que se reflete depois nas suas prestações ao serviço das pessoas.

Nesse sentido, ousaria dizer que a Igreja tem um papel decisivo, fundamental, na evangelização dos poderes civis, políticos, em geral, mas também dos poderes da Igreja.

Creio que é por isso que o Papa insiste no facto do poder ser missão, ser serviço, e um serviço que vai até à Cruz.

Não podemos associar esse sentido de ir até à Cruz no sentido de um certo dolorismo, recuperando alguns fantasmas que, de algum modo, marcam o nosso universo teológico e pastoral.

O Papa fala de uma síntese luminosa da Cruz, no sentido de um serviço que pode levar a dar a vida pelo outro ou pelos ideais que defendemos, é essa a mensagem que dirige a todos os poderes do mundo, que os governos sejam iluminados por esta disposição fundamental de dar a própria vida, se for necessário, pelos outros.

 

AE – E quanto à Igreja, que o Papa Francisco recebeu envolta em diversos problemas, como os casos de pedofilia e assédio sexual praticados por membros do clero ou as alegadas lutas de poder dentro da Cúria Romana?

IV – O Papa está também a falar para dentro da Igreja, naquilo em que ela, na sua visibilidade institucional tem de poder, porque o tem, nas suas estruturas visíveis, no sentido de uma purificação progressiva, de um recentramento naquilo que é essencial, que é o Evangelho de Jesus Cristo.

Encontramos aqui outro fio condutor interessante, porque o Papa Bento XVI, num texto que escreveu em 1970 ainda como cardeal Joseph Ratzinger, falava da Igreja do futuro e dizia que ela deveria ser mais interiorizada.

Na obra intitulada “Fé e futuro”, ele dizia também que era preciso uma Igreja que não suspirasse por um mandato político, e o Papa Francisco referiu claramente nas suas últimas intervenções que a Igreja de Jesus Cristo não é uma organização não-governamental, é uma Igreja de sedução, não de proselitismo, e vai chamando a atenção para aspetos essenciais.

Ratzinger defendia que a Igreja deveria tornar-se numa Igreja dos pobres, dos pequenos, pois só assim é que ela poderia aparecer ao mundo como portadora de esperança.

Dizia ainda que era necessário que a Igreja se limpasse, se purificasse, cortasse aquilo que ao longo dos séculos se foi associando à Igreja mas que não lhe pertence.

Pegando numa metáfora que foi buscar a Miguel Ângelo, Joseph Ratzinger sublinhou a importância de que, tal como um escultor, a Igreja talhasse a sua forma, se libertasse das escórias que foram aderindo à sua superfície, os andaimes que se foram construindo à volta da Igreja e que não permitem, de algum modo, aceder ao coração da Igreja.

O Papa Bento XVI falava na purificação da Igreja, para que se fizesse emergir a sua forma mais nobre, ou seja, aquilo que a Igreja tem de precioso, a sua essência, e creio que reencontramos esse programa com o Papa Francisco.

Não sabemos se será um longo pontificado, mas já está definida uma identidade, embora ainda tenhamos de esperar como é que o Papa Francisco vai lidar com a produção teológica, com a reflexão teológica, na mensagem e no estímulo para uma reflexão mais sistemática.

Não me repugna a ideia de que eventualmente o Papa Francisco possa convocar, em algum momento do seu pontificado, não um concílio do Vaticano mas um concílio ecuménico para clarificar e iluminar a identidade da Igreja de Jesus Cristo, que no tempo presente pode ser talvez considerada um pouco confusa, de certo modo promiscua.

Poderia haver inovações importantes, que representassem o mundo na sua globalidade, a Igreja de Jesus Cristo espalhada pelo mundo inteiro.

Estamos a comemorar 50 anos do Concílio Vaticano II e as mudanças no mundo, no nosso modo de viver, são tão drásticas e levantam tantas questões inéditas que um concílio ecuménico permitiria reforçar as grandes intuições que o Vaticano II deu e por outro lado acertar o ritmo da Igreja com o passo do mundo.

Haveria assim uma clareza, um diálogo, uma abertura de todo o mundo reunido em concílio para pensar e repensar a Igreja, o mundo, o poder em geral e o poder em Igreja.

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