Novo Papa deve ter «poder suficiente» para acabar com pecados que atingem a Igreja

A poucos dias da renúncia oficial de Bento XVI e do início do Conclave em Roma para a escolha de um sucessor, Adriano Moreira destaca a “humildade e coragem extraordinária” de Joseph Ratzinger em “reconhecer que o seu limite chegou”.

 

Agência ECCLESIA – O que pensa sobre a renúncia de Bento XVI, quais as consequências para a vida da Igreja, a curto e médio prazo?

Adriano Moreira (AM) – A primeira consequência é termos de eleger um novo Papa, que é o sucessor de Pedro mas, apesar disso, passa-se com ele o mesmo que se passa com cada ser humano, é um fenómeno que não se repete.

Naturalmente que não se pode esperar o mesmo comportamento ou herança de cada sucessor. Eu na minha longa vida conheci muitos Papas, aqueles que mais recordo a influência foram João XXIII, que se guiava mais pela inspiração do que pela erudição, e João Paulo II, exemplo de sacrifício, com aquela frase extraordinária “Cristo também não desceu da Cruz”.

Temos de olhar para cada Papa e o exemplo que fica não deve ser identificável em cada um, o que tem de ser é justificado em cada um, que seja verdadeiramente um enriquecimento para o legado.

A decisão deste Papa é uma decisão corajosa, naturalmente de acordo com a sua personalidade, enquanto ser humano que é um fenómeno que não se repete na história da humanidade.

E na longa lista de Papas deste quase século que já vivi, Bento XVI era sobretudo guiado pela razão, porque é um intelectual, um universitário.

Portanto se nós podemos achar que é um legado a atitude de João Paulo II, extraordinária, que se percebe perfeitamente vinda de um Papa que é polaco, que sofreu durante os seus anos de juventude, formação e vida, Bento XVI nasce num país que é responsável por uma das maiores calamidades do mundo, que custou pelo menos 50 milhões de mortos.

Ele próprio, por força da organização do seu país, serviu como criança nas forças armadas alemãs, e um dos atos importantes que praticou durante o seu pontificado foi a visita a Auschwitz, a condenação do mal absoluto.

E essa condenação, a meu ver, soma-se à exemplaridade dos que fundaram a União Europeia, porque quer o francês, quer o alemão, quer o italiano, foram vítimas e testemunhas dos sofrimentos enormes dos seus povos, puseram a sabedoria acima do sofrimento com o projeto da unidade europeia.

E isso significa muito na história da Europa, que cada país deixe de considerar o vizinho como inimigo íntimo, como era muito tradicional.

 

AE – Essa atitude de reconciliação marca também o pontificado de Bento XVI, mesmo a nível interno da Igreja?

AM – Marca. Numa das suas obras, o Papa fala sobre a necessidade de prestar atenção à verdade dos outros e isso é muito importante porque, por muito que neste momento o desapego a Igrejas institucionalizadas seja crescente na Europa e no Ocidente, eu não esqueço que no edifício das Nações Unidas, por iniciativa do grande secretário-geral Dag Hammarskjöld, assassinado no exercício do cargo, há uma sala despida com uma pedra translúcida, como se fosse um altar, sobre o qual cai um raio de luz que vem do céu, e que se chama Sala de Meditação para todas as religiões.

Portanto, o apelo à transcendência, ao contrário do desapego a religiões institucionalizadas, está a crescer no mundo inteiro, com muitas divisões, o que naturalmente exige um esforço enorme para o encontro das religiões.

E os escritos que o Papa deixou vão contribuir para isso, e não será diminuído esse legado por algumas intervenções mal interpretadas, designadamente o comentário que foi feito a respeito dos muçulmanos e que ele próprio se justificou, procurando dar sentido correto à expressão dele mas, como é tão frequente, a comunicação social insistiu muito na interpretação mais desadequada das palavras.

As palavras eram de uma excelente intenção, que nós precisamos, cada vez cresce mais a ideia de que um convívio pacífico entre as religiões é fundamental.

 

AE – Bento XVI deu passos fundamentais nesse sentido?

AM – Sim, a frase que ele disse é uma atitude de compreensão, não é tolerância, é respeito, são coisas completamente diferentes. É mais necessário o respeito do que a tolerância, ele contribuiu efetivamente para isso.

Naturalmente Bento XVI foi afetado durante o seu exercício por acontecimentos externos, e a impressão que tenho, seguindo ensinamentos que não chegam da minha meditação, é que há uma diferença constante entre o Cristo da fé, o Cristo da história e o Cristo da Igreja. De vez em quando há um conflito entre estas perceções.

 

 AE – E este Papa quis contribuir para esse debate…

AM – Quis contribuir para isso porque justamente neste momento, sem podermos esquecer a decadência da adesão às Igrejas institucionalizadas no Ocidente, é o terceiro elemento desta trilogia, o Cristo da Igreja, que está mais em crise e ele enfrentou dificuldades tremendas, designadamente a pedofilia.

Eu separo isso naturalmente da fé e do Cristo da história, mas ele teve de enfrentar isso e naturalmente para um homem com a sua formação intelectual, universitária, deve ter sido uma tensão tremenda, ele que condenou o mal absoluto, ter de enfrentar este ataque devastador em relação à Igreja em muitos países, designadamente na América do Norte e na Europa.

 

AE – Foi um dos problemas que marcaram este pontificado de Bento XVI, a par de outros, de ordem económica, disciplinar até, na própria estrutura do Vaticano.

AM – Eu guardaria para o fim a parte disciplinar. Agora há um problema que deve ter pesado no seu espírito, não apenas agora mas quando exercia funções, como verdadeiramente o braço direito de João Paulo II, e que é a relação da Europa com os valores cristãos.

A Europa não tem limites geográficos, não há montanhas, rios, que sejam limite da Europa. Mas ela está numa crise de valores extraordinária – na crise económica tremenda que estamos a atravessar, o traço fundamental é: onde estava o valor das coisas foi colocado o preço das coisas, as pessoas passaram a ser números.

Eu acho que a estatística, historicamente, é a segunda comunicação sem fios da história da humanidade, o que leva a conclusões completamente desumanas.

A encíclica do Papa “Caritas in Veritate” é uma excelente crítica da situação económica europeia e uma grande defesa do Estado social. Nós temos um paradigma que é a dignidade humana, e ele é um dos paradigmas sustentados pelo Estado Social e também da Doutrina Social da Igreja, que Bento XVI sustentou com oportunidade, com lucidez, dirigindo-se sobretudo a intelectuais, é sobretudo esse o legado que nos deixa.

 

AE – Terá Bento XVI surpreendido ao escrever sobretudo sobre questões sociais? As suas encíclicas são sobre a esperança, a caridade, o amor…

AM – Julgo que não, porque o poder da palavra é extraordinário.

 

AE – Mas esperar-se-iam, por exemplo, temas relacionados com a fé, com a doutrina e a ortodoxia da Igreja.

AM – Esses temas também são fundamentais, julgo mesmo que um dos grandes problemas do Cristo da história é a divisão entre os cristãos, um consequencialismo que eu imagino que Lutero não imaginou e que teve consequências enormes.

Portanto, tudo o que seja contribuição para mudar isso é uma grande contribuição, mesmo com erros eventuais. Por exemplo, aquela aproximação do Lefebvre trouxe dificuldades à intervenção do Papa, porque foi mal entendido.

 

AE – Mas acha que Bento XVI fez mal em tentar a reconciliação com os lefebvrianos?

AM – Nunca é mau tentar a reconciliação, porque temos de pôr o diálogo no lugar do combate, como temos de pôr o respeito no lugar da tolerância, o que pode acontecer é o consequencialismo não ser sempre correspondente a essa intenção, como aconteceu neste caso, até porque não conseguiu essa reconciliação.

Embora a Igreja não possa perder o seu sentido universal, de não distinguir povos, etnias, Estados, mas não se pode esquecer que a fonte é ocidental e neste momento é o Ocidente que está em decadência, não é só a Europa ou o país a que pertencemos.

Faltam lideranças carismáticas, aquilo que às vezes chamo as vozes encantatórias que a Europa teve a seguir à guerra.

 

AE – Faltam essas lideranças também na Igreja?

AM – Na Igreja, eu imagino que o Papa deve ter, justamente porque é um intelectual, porque teve papéis de conselheiro – agora falar ao ouvido do príncipe, que é uma atividade tranquila, exige meditação e sabedoria mas não exige estar no combate diário.

Ele teve de entrar, deu um passo em frente, deixou de ser a pessoa que fala ao ouvido do príncipe, foi ele o príncipe, e naturalmente aí chegamos ao terceiro termo daquilo que ainda há pouco apontámos, o Cristo da Igreja.

São públicas constantes conspirações e ambições internas, desastres financeiros, desastres de comunicação, falta de confiança entre o pessoal, como foi esta crise da comunicação dos documentos.

Acho que, para um intelectual como ele, deve ter sido um sacrifício não conseguir um governo pontifício, porque é um governo único no mundo.

Os líderes religiosos são líderes por fidelidade, não há, como acontece no Estado, o recurso à força para a desobediência, há sempre a adesão e é necessário carisma, e o carisma, como São Paulo ensinava, ou se tem ou não se tem.

 

AE – E no caso deste Papa?

AM – Eu julgo que para esse governo, ele não conseguiu impor o carisma, e deve ter tido um sofrimento enorme com as questões que dizem respeito já não à fé, ao Cristo da história que ele estudou tão profundamente, mas ao governo da instituição, o Cristo da Igreja.

Fez efetivamente os tais esforços de unificação, de aproximação, que explicam o esforço que fez com Lefebvre, mas não foi bem-sucedido. E imagino a dor com que ele meditou sobre as suas capacidades, ainda de homem vivo, mas que não pode ter mais anos nem mais nada, o sentir que as suas capacidades estavam a diminuir e que tinha de dar o exemplo de coragem de renunciar.

Assim como João XXIII deixou o exemplo da importância da inspiração, como João Paulo II deixou o exemplo de que Cristo não desceu da cruz, que os sacrifícios têm de ser enfrentados, este Papa deixou o exemplo da capacidade de renunciar.

 

AE – Na homilia de Quarta-feira de Cinza, Bento XVI referiu-se à necessidade de se superar individualismos e rivalidades no interior da Igreja. Que mensagem é esta?

AM – É a mensagem das dificuldades que ele próprio encontrou e que não conseguiu corrigir. E talvez pense que o seu exemplo possa ajudar a corrigir.

 

AE – A causa da renúncia estará nessa capacidade de reconciliar a própria Cúria Romana?

AM – Julgo que foi o peso do governo, o peso da Igreja recuperar uma face exemplar que ponha fim aos ataques que neste momento é objeto e que diminuem a sua influência num trajeto que é fundamental para a salvação do Ocidente, que é a recuperação da escala de valores, da ideia que a dignidade humana não pode ser substituída por valores instrumentais, como é o valor das coisas, que isso possa servir de exemplo.

E é um grande exemplo e uma grande contribuição para o legado que se vai avolumando da Igreja Católica.

 

AE – Então, em que estado deixa este Papa a Igreja Católica?

AM – Espero que ele a deixe em meditação e que a Igreja seja inspirada realmente pelo Espírito Santo, num momento em que vão ter de escolher um Papa que não tenha de dar um exemplo que é uma espécie de repreensão, também, para que a Igreja tome consciência da situação neste momento.

Que se medite sobre a mudança no mundo – nós os universitários fomos ensinados por Karl Popper que estamos por vezes convencidos sobre a sabedoria das coisas, do mundo e das pessoas e aparece um cisne negro e já não podemos dizer que todos os cisnes são brancos.

Bento XVI talvez possa ter deixado este legado, apareceu um cisne negro e esse cisne negro obriga a Igreja a pensar que nem todos os cisnes são brancos, alguma coisa é preciso corrigir na atitude do governo e do comportamento da Igreja.

 

AE – Isso quererá dizer que o próximo Papa terá de ser mais disciplinador? Que perfil se deverá escolher?

AM – A Igreja, como acontece com as lideranças das outras religiões, vive do carisma do condutor, do líder, do pastor. E o carisma ou se obtém ou não se obtém. E o Papa que escolham deve ser um homem que eles reconheçam capaz de ganhar o carisma que leve a Igreja a aceitar a correção dos desvios e das preocupações que o Papa resignatário enunciou, as rivalidades, os individualismos e etecetera, fica um etecetera enorme.

 

AE – Mais do que os casos de pedofilia, os escândalos financeiros, será algo que estará a minar o sistema?

AM – Há um problema que me parece muito claro e muito simples: sem autoridade, isso não será remediado, algo que Bento XVI sentiu que não era capaz nem tinha capacidade de vir a adquirir.

É uma grande humildade e uma coragem extraordinária reconhecer que o limite chegou, e isso nem todos são capazes de fazer. É um grande legado que nos deixa e uma recomendação evidentíssima: escolham bem, que tenha o carisma de que decorre o poder suficiente para que acabem todos estes pecados que atingem a Igreja e que ele enumerou. 

 

AE – Terá de ser um Papa europeu ou italiano?

AM – Não necessariamente, a Igreja se é universal tem de aceitar qualquer etnia, área cultural, povo ou região do mundo onde, como é a fórmula consagrada, pareceu-nos a nós e ao Espírito Santo que este é o sucessor de Pedro, que deve ser escolhido.

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