Bento XVI reflectindo e comunicando em roda livre?

D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro

A Igreja de Cristo deve ser sempre um espaço de liberdade. Nela ninguém se deve sentir aprisionado, tanto na reflexão, como na acção. Uma dependência injusta destrói as pessoas e mina a sua identidade. Já Pio XII defendia a livre opinião no seio a Igreja, sempre que não estejam em causa as verdades da fé. O Papa, qualquer Papa, tem direito a ter a sua opinião e a comunicá-la, a sentir perplexidades sobre caminhos a seguir, a reconhecer, publicamente, decisões menos certas, a dar o seu contributo de reflexão a temas melindrosos, que não se podem, nem devem considerar fechados.

João XXIII não se coibiu de dizer o que pensava e queria, mesmo que à sua volta, o coro entoasse noutro tom. Assim, o Concílio deu passos antes inesperados, tratou temas e abriu caminhos que não eram da simpatia da Cúria Romana. Paulo VI remou contra a maré para que a Igreja não se desviasse do rumo conciliar. Quando foi à ONU fez opções, desgarradas das teias da tradição romana. Nos “Diálogos com Jean Ghitton”, abriu a sua alma com muita liberdade interior, ao reflectir sobre questões candentes e complexas, que a Igreja não pode pôr de lado só porque não tem ainda para elas uma resposta satisfatória. João Paulo I seguiu o seu estilo evangelizador, simples e compreensível mas pouco curial, ao comunicar com os cristãos. Pôs os cabelos em pé aos cardeais romanos, que se consideravam os donos da ortodoxia e do modo de a expor e defender. João Paulo II decidiu pôr, até ao fim, a sua vida ao serviço de uma rota evangelizadora. Partiu sem medo, mundo fora, denunciando que o Papa de Roma é o Papa dos cristãos de todo o mundo, a testemunha de Cristo junto dos poderes da Terra, o defensor dos humildes, dos oprimidos e dos esquecidos. E, por esse mundo fora, não temeu ter gestos e expressões, que, no seio do Vaticano e nas suas solenes celebrações, lhe seriam desaconselhados. Tudo isto mostra que, historicamente, os Papas não são tão livres como se pensa, mas podem sempre abrir caminhos novos.

Bento XVI chegou à luz da ribalta, vindo directamente de um mundo eclesiástico, que ele bem conhecia. Um mundo por vezes emparedado pelas exigências de fidelidade à à praxis romana e curial, onde as opiniões discordantes incomodam sempre. Um mundo que não gosta que lhe levem problemas da vida. Aí viveu longos anos de serviço devotado à sua missão de guardião da fé, por vezes e para muitos, em aparente contradição com o teólogo livre, aberto e lúcido, que fora antes e durante o Concílio. Só conhecendo-se a natureza do cargo exigente a que foi chamado e a força de uma pesada tradição a que, em tais circunstâncias estava sujeito, se poderá perceber agora, a liberdade de expressão que foi adquirindo, como Papa, sem tentações vanguardistas e sempre, de modo muito claro, fiel ao essencial.

Pelo Cardeal Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé e, agora, no dia a dia da sua missão de chefe da Igreja, Católica, passaram e continuam a passar, de modo premente e como desafios ao compromisso de uma resposta da Igreja, grandes problemas humanos e sociais das comunidades cristãs, da sociedade em geral, dos crentes e dos não crentes, da ciência e da cultura, dos pobres e das famílias, das muitas afirmações e atitudes que, no seio da Igreja, por vezes paralisam a vida e empobrecem o vigor evangélico da mensagem cristã.

Bento XVI foi sempre um pensador e um teólogo inconformado, incapaz de dormir descansado quando outros sofrem, mormente quando pensa que, pelas suas acções ou omissões, ele pode estar, de algum modo, na causa desse sofrimento. Ele sabe bem, tal como o sabia e dizia Paulo VI a propósito da acção interventiva do Papa, que é mais fácil estudar e reflectir os problemas complexos, que decidir sobre eles. Porém, na Igreja, muitas vezes até o reflectir sobre os problemas se foi tornando difícil, por via de normas paralisantes que se põem a uma reflexão livre.

O papa Bento XVI não enterrou o teólogo Ratzinger. Antes, tem agora consigo toda a sua capacidade reflexiva, o seu saber teológico, humanista e histórico, a sua sensibilidade aos problemas actuais e difíceis, o enquadramento histórico e cultural dos mesmos, o respeito pelos que, cristãos ou não, lutam, em campo aberto, por respostas válidas e sérias. É um homem incapaz de se instalar nas certezas da fé, mas que procura, na sua mais profunda compreensão, um contributo maior à solução dos problemas que afligem as pessoas e a humanidade no seu conjunto, ao modo de comunicar que chegue aos destinatários, lhes aqueça o coração e estimule a esperança.

A entrevista “ Luz do Mundo”, dada a um jornalista alemão, e agora, em livro à disposição de todos, vai, para a Igreja e para a sociedade, muito além do que a comunicação social, no seu pendor redutor, mais uma vez dominada pelo espectacular, quer fazer crer. Bento XVI abre um novo modo de reflectir e de comunicar, agora em roda livre e para além da maneira normal de o fazer através dos actos e documentos do magistério pontifício. Há problemas sociais graves que tocam a vida de muita gente, que têm de ser compreendidos em todas a suas vertentes, e debatidos, com liberdade e respeito, em ordem a novas orientações e decisões. Se não se trata de fazer e dizer para agradar, também não se pode passar ao lado e fazer silêncio por se temerem as consequências. Quem está ainda fascinado pelos faustos históricos e só vê a Igreja como casa pacificada e bem arrumada, afasta os que podem trazer perturbação. Bento XVI mostra que não é esse o seu caminho e não pode ser esse o caminho da Igreja. As imposições não resultam e as propostas têm de ser válidas e em consonância com os tempos. O Papa vem aflorando, pela consciência que deles tem, problemas da Igreja, que são também problemas das pessoas que desumanizam a sociedade, atrofiam e relativizam a verdade. A reflexão sobre estes problemas não se pode fazer apenas em circuito fechado.

Bento XVI não teve pejo em dizer que, em coisas graves, lhe sonegaram informação e lhe encobriram factos. Os chefes em lugar cimeiro estão sempre sujeitos a ser enganados por gente que os rodeia. Abundam histórias desta empobrecida realidade, mesmo em relação aos papas. A melhor denúncia acaba por ser falar fora do sistema, em circunstâncias em que não se tenha de passar pelo crivo de se saber o que convém dizer ou calar. Mesmo quando na Igreja se justifica alguma diplomacia, consequência de um tempo a que agora é difícil fugir, a mensagem evangelizadora tem, por certo, outros caminhos. Já no Concílio este grito se fez ouvir.

Bento XVI deu, publicamente, um passo renovador ao falar de problemas, concretos e actuais, fora dos canais tradicionais. Deu, deste modo, esperança a muitos que, na Igreja, por amor à Missão e fieis ao essencial, sentem que, antes da última palavra, é importante que outras se digam e se escutem. Deu espaço aos que, na sociedade, lutam pelas causas fundamentais das pessoas, para que tenham voz que possa ajudar a esclarecer e a decidir. Mostra como a Igreja não tem de ter medo senão dos seus medos, sofre a urgência de se converter, com coragem evangélica, para ser Igreja ao serviço do Reino e do reconhecimento e promoção dos seus valores, onde quer que eles se manifestem. Anunciou como os problemas têm de ser equacionados em plano global, para que seja válida e aceitável a sua solução. Ao responder às 90 perguntas do jornalista, sem fugir nem camuflar, Bento XVI diz à Igreja que não há problemas que não devam ser reflectidos e que fugir às questões vitais é fugir à vida, atitude histórica de que nem sempre ela esteve isenta.

Os passos dolorosos, antes e depois do Concílio, dados por teólogos eminentes; as lutas corajosas e perseverantes de alguns heróicos padres conciliares; os caminhos novos, teimosamente procurados por bispos, padres e leigos, ao longo dos últimos quarenta anos; a tentativa persistente de derrubar os muros de divisão dentro da Igreja e da Igreja com o mundo, tudo isto tem agora mais brilho e estímulo, assim esperamos.

Deus conserve o Papa para que deixe à Igreja não só novos caminhos abertos, mas, também, muita gente já a caminhar por eles, sem outros interesses que os de Cristo e os daqueles que, ao longo da história, Lhe foram fieis. Possa, também, mostrar ao mundo que a Igreja está, de facto, inserida nele e a considerar, como seus, os problemas dos homens e das mulheres de cada tempo e lugar.

António Marcelino, bispo de Aveiro, emérito

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