Bento XVI visita «coração» do anglicanismo

José Eduardo Borges de Pinho, professor de Teologia da Universidade Católica, aborda passagem do Papa pelo Reino Unido

Bento XVI está a realizar uma visita oficial ao Reino Unido, entre 16 e 19 de Setembro. A agência ECCLESIA procurou perceber, junto de José Borges de Pinho, especialista em matéria de diálogo ecuménico, que resultados práticos poderão sair deste evento, principalmente ao nível do diálogo entre católicos e anglicanos.

Podemos esperar que esta visita traga desenvolvimentos significativos para a relação entre católicos e anglicanos?

Terá certamente consequências, que eu julgo e espero virem a ser positivas, mas, neste momento, ainda é difícil prever o que resultará globalmente desta visita. Creio que a pessoa de Bento XVI se vai “impor” como uma figura representativa e simbolicamente importante do nosso tempo. Espero também que a sua presença e as suas palavras contribuam para “desmitificar” um pouco o peso que o papado tem tido e continua a ter, a partir de toda a sua autoridade no espaço católico, dentro do imaginário anglicano. No entanto, não é no decurso destas visitas que acontecem as decisões mais importantes. Eu recordo que, no fim do ano passado, quando se publicou a Constituição Apostólica Anglicanorum coetibus, através da qual a Igreja católica abriu a possibilidade de acolhimento de cristãos anglicanos em condições especiais de vivência litúrgico-espiritual e de organização canónica, dentro da Igreja católica, logo foi decidido retomar o diálogo teológico entre as duas confissões cristãs através da reactivação da ARCIC III (Comissão  Mista Teológica Internacional Anglicana Católica Romana). Quer dizer: uma coisa são situações pontuais que merecem porventura uma resposta específica; outra coisa é a atitude global irreversível de aproximação ecuménica.

Quais são os principais pontos de divergência, nesta altura, entre as duas doutrinas?

Como é sabido, há um aspecto fundamental de convergência em que o anglicanismo se afirma muito mais próximo da Igreja católica que outras confissões ditas protestantes: o reconhecimento da importância estrutural do episcopado histórico na sucessão apostólica. A esta visão associam-se outros elementos de doutrina e piedade – por exemplo, a devoção mariana nalguns sectores anglicanos -, o que não acontece do mesmo modo nas Comunidades Eclesiais +provenientes da Reforma. Isso tem-se expressado numa ampla convergência doutrinal, nalguns casos mesmo em afirmações de consenso, no âmbito da referida Comissão (ARCIC).

Em termos pontuais, uma das questões a esclarecer é a questão da validade das ordenações anglicanas (questão formalmente decidida de forma negativa no tempo do Papa Leão XIII – século XIX). Emerge agora de forma particular a questão da ordenação presbiteral e episcopal de mulheres. No campo sacramental, é sabido que o anglicanismo valoriza dois sacramentos maiores (baptismo e eucaristia), não dando o mesmo peso a outras realidades sacramentais. E ainda um exemplo: no âmbito da doutrina eucarística, a afirmação consensual da “presença real” de Cristo na Eucaristia não significa que os anglicanos estejam abertos à prática da “adoração eucarística” como sucede no espaço católico.

As divergências pontuais adquiriram ultimamente maior peso no âmbito moral. É aqui que se situa a questão da homossexualidade – ordenação de ministros declaradamente homossexuais ou a bênção de casais homossexuais. Esta é certamente – apesar do aspecto específico dos casos de relação com o ministério ordenado – a ponta de um “iceberg” em diversas questões de ordem moral que manifestam as divergências pontuais mais salientes.

De qualquer forma, é importante notar que a história confessional do anglicanismo explicitou-se num ambiente, numa mentalidade, num modo de viver o cristianismo que não é exactamente aquilo que acontece – com as suas virtudes, mas também com alguns limites, obviamente – no espaço católico. Ou seja: seria errado olhar só para os pontos de divergência sem procurar inseri-los na globalidade da vida concreta de duas realidades eclesiais que se encontram separadas desde o século XVI e desenvolverem identidades confessionais diferentes.

 
A Igreja anglicana tem enfrentado uma crise, relacionada com algumas decisões pouco “populares”, relacionadas com a ordenação de bispos homossexuais ou de bispos femininos. Decisões que têm aberto a hipótese de muitos anglicanos se converterem ao catolicismo. Esta visita do Papa não poderá ser entendida como um favorecimento a essa conversão, uma tentativa de aproveitamento?

Creio que não é e não deverá ser. Não digo que não possa haver “efeitos colaterais” –  de sentido positivo ou negativo – nessa matéria. Mas é claro que o Papa não quer instrumentalizar a sua visita pastoral nesse sentido, nem os anglicanos abertos a um possível regresso à Igreja católica gostariam de se verem instrumentalizados nesta matéria. A prudência, será certamente a atitude indicada e praticada nesta matéria neste momento.  Convém nunca esquecer que “sentir-se mal na Igreja anglicana” não exacta e imediatamente equivalente a “sentir-se bem na Igreja católica”. A história de vida do Cardeal Newmann pode servir aqui de motivo de reflexão.

A Igreja anglicana não tem um líder religioso, como o Papa, estando a cargo da Rainha. Não há uma separação clara entre o poder político e religioso. Poderá a visita de Bento XVI contribuir para uma mudança de mentalidades, a esse nível?

Creio que se tem valorizado excessivamente esse aspecto. São restos do passado, como existem ainda em países escandinavos (neste caso, em relação às Igrejas Luteranas) e houve, de algum modo (ainda que em contexto jurídico-constitucional muito diferente) também em Portugal antes do 25 de Abril. Os problemas ecuménicos atrás definidos não existem por razões dessa ordem. Na minha opinião, se o objectivo pretendido desta visita fosse contribuir para uma separação mais clara entre o poder político e religioso, a visita de Bento XVI  não deveria ter sido uma “visita de Estado”, mas uma “visita pastoral”.  As mudanças no relacionamento entre o poder político e religioso acontecerão naturalmente, e sem grandes dramas, quando a mentalidade cultural envolvente no Reino Unido (tanto do ponto de vista religioso como político) o considerar necessário.

No seu primeiro discurso em território britânico, o Papa pediu para que “não se obscureçam os fundamentos cristãos” que sustêm as liberdades dos povos residentes no país e fez um apelo para que esse património inspire o “exemplo” que o país “dá aos dois mil milhões de membros da Commonwealth e à grande família das nações de língua inglesa. Alertou também para a influência de «formas mais agressivas de secularismo», que nem sempre favorecem o respeito pelos valores tradicionais e pela cultura. Que leitura é que se pode fazer deste primeiro discurso de Bento XVI?

Na minha perspectiva esse é o problema prioritário e aquele que motiva verdadeiramente a visita de Bento XVI ao Reino Unido. O Papa quer alertar as consciências – em termos de razoabilidade humana e de sensibilidade cristã – para a urgência de se pensar e começar a construir um mundo novo – em termos de valores comuns, de liberdade e de justiça na convivência humana, de resposta solidária aos grandes desafios que o presente e o futuro nos apresentam. A Europa tem as suas responsabilidades; os “velhos” países da Europa não podem negar a sua história; as raízes cristãs que moldaram a cultura europeia não podem ser ignoradas sob pena de não sermos dignos de nós próprios como seres humanos. Isto está – claro, por outras palavras – na Caritas in veritate. Ou seja, a grande questão que está subjacente à intencionalidade primeira desta visita – muito para além até de todas as divergências e conflitualidades no âmbito ecuménico – é contribuir para que o cristianismo seja mais capaz de propor a verdade que transporta consigo e de cumprir a sua missão de servir, com credibilidade e sentido prático, a verdadeira humanidade dos seres humanos e das comunidades que eles constituem.

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