Um Bispo «atento a quanto ocorre»

D. Manuel Clemente, Prémio Pessoa 2009, diz qual o seu contributo para a construção social e cultural que tem de ter sempre no centro a pessoa humana. Tanto numa serena entrevista como nos intensos dias como Bispo do Porto.

Ecclesia – “Dar um sinal público da nossa atenção a quando ocorre”. É uma determinação de D. Manuel Clemente, assim formulada. Foi por esta atitude que o distinguiram com o Prémio Pessoa 2009?

D. Manuel Clemente – Eu não sei onde chegam as minhas considerações. E foi com grande surpresa que recebi o anúncio do Prémio.

Dar um sinal público de que estamos atentos a tudo, isso com certeza. Essa é a missão da Igreja, que está no mundo como um sinal activo de atenção e de esperança.

 

E – Muitas vezes a Igreja surge no debate público apenas nas questões “fracturantes”…

MC – Geralmente. Mas não só a Igreja, também todas as realidades sociais.

Nós estamos hoje numa cultura que é dramatizada. Antigamente, sobretudo a partir do séc. XIX, líamos romances, ou seja, a vida transformada num drama. Hoje em dia, essa atenção literária passou-se para a vida. E nós tratamos da vida, das sociedades, da Igreja concretamente, como se fosse um drama.

A vida das pessoas, na sua grande maioria, é o cumprimento das obrigações e dos objectivos, nas sociedades, no Estado, nas famílias. Mas o que aparece em termos de comunicação é o que pode ser dramatizado, transformado em contraste. Somos demasiadamente teatrais.

 

E – Nesse teatro da vida, assume como um “firme propósito” “oferecer aos circunstantes Cristo vivo”. Esse é o objectivo da Missão 2010, concretamente?

MC – Absolutamente. Porque essa é a grande realidade que faz a Igreja: nasce quando os primeiros discípulos descobrem que Ele está vivo, que, através da morte, Ele continua no meio deles. Essa certeza de que a vida de Jesus Cristo é uma vida definitivamente vencedora é que faz a Igreja.

 

E – Apesar dessa matriz cristã e da “fortíssima herança judaica” em Portugal, é por vezes ineficaz essa oferta. Porquê?

MC – Nós temos uma certa dificuldade em avaliar…

 

E – Estaremos a dramatizar?

MC – Estamos. Andamos à procura dos “picos” de afirmação ou de negação.

Na realidade, quando nos abeiramos das pessoas com disponibilidade para as ouvir, encontramos não apenas resíduos, mas fermentos de Evangelho que passaram e que determinaram muitas atitudes de pessoas e de vidas, sobretudo quando são longamente vividas. Mas nunca apareceram!

Acontece isso também na análise dos acontecimentos da Igreja e do mundo. A vida passa-se como um grande rio: por vezes transborda da margem, outras afoga-se alguém, mas o rio corre. E quer na Igreja quer na sociedade nós temos de estar atentos a isso: o caudal é muito maior do que esses “picos”.

 

[[v,d,739,D. Manuel Clemente prémio pessoa 2009]]Casamento e regionalização

E – Um caso concreto: o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É conhecida a sua posição. Que comentário lhe merece o facto da iniciativa legislativa surgir nesta quadra natalícia?

MC – É óbvio que não é uma coincidência feliz. Não digo que isso tenha sido determinante da parte de quem assim decidiu, mas a coincidência epocal não é feliz.

Para nós católicos, o problema está resolvido: o casamento é o sacramento do matrimónio e está fora de questão qualquer tipo de alteração, porque se fundam em Jesus Cristo.

Não está enquanto cidadãos, numa república laica, que não se afirma em termos de qualquer confissão religiosa, mas que tem valores.

Nós temos, desde o séc. XIX, nas nossas leis civis, o casamento civil. E o casamento civil tem sido como sempre a humanidade o apurou: baseado na alteridade homem/mulher, que está na base da construção da sociedade. Alterar isto assim de “uma penada” é uma pena.

Digo isto como cidadão: há aqui um valor estruturante da sociedade, institucional, à volta de algo que a sociedade reconheceu de muito importante e, por isso, precisava de ser salvaguardado e promovido. Não se trata de uma questão acessória.

 

E – Quem assim o legisla fá-lo de forma distante da sociedade portuguesa?

MC – Eu julgo que sim. Até porque se distancia, fazendo-o tão depressa sem que tenha havido um verdadeiro debate. Porque não chega uma campanha eleitoral, onde o assunto não foi particularmente debatido. Também porque as pessoas têm um certo pudor em debater na praça pública temas fundamentais, como a família.

 

E – É uma iniciativa legislativa que acontece em ambiente de crispação e de alguma suspeita, nos órgãos de soberania. Estão a ser prejudiciais para a estabilidade democrática?

MC – A estabilidade democrática tem tensões. Faz parte da vida social, cultural, política haver debate, haver tensão. Mas não nos esqueçamos que somos pessoas com outras pessoas. E que antes das ideias que se debatem estão as pessoas a respeitar. É muito saudável que, numa democracia, se debata tudo, se apresentem todas as argumentações, mas numa base do respeito mútuo, porque somos pessoas. E esse é o único valor que não pode estar em causa.

 

E – E está, entre nós?

MC – Quando as pessoas são deseducadas, quando não se escutam, quando ainda o outro nem sequer começou a falar e já a está a ser quase sufocado… Isso não é democracia, porque isso não é cidadania, onde todos podem ser pelo menos ouvidos. Isso não quer dizer concordar, quer dizer ouvir. Não se pode condenar antes de escutar. Aí é que não há democracia.

 

E – Que regionalização é precisa para Portugal?

MC – Eu sigo genericamente o princípio da subsidiariedade, da Doutrina Social da Igreja: que as administrações de topo não resumam em si toda a determinação social e que o que pode ser resolvido pelos corpos intermédios – as famílias, as autarquias, as regiões – não seja resolvido nas instâncias superiores que, pelo contrário, devem apoiar – em latim subsidium – esses corpos intermédios.

 

E – É assim que está a acontecer?

MC – Pode acontecer muito mais. Há instâncias de decisão que, no caso da Região do Norte, não estão cá. E se estivessem, no dia-a-dia, se fossem pessoas de cá ou se cá vivessem, teriam, até com base existencial, muito mais capacidade e acerto para resolver do que estando distantes e tendo de olhar para o todo. Isso é lógico.

 

E – Que sintoma constitui o facto da prova Red Bull Air Race ter sido transferida para Lisboa?

MC – Digo como sinto por muitos outros concidadãos meus desta região: mais uma vez, algo que estava aqui, com muito acompanhamento das entidades locais e do público, estava a resultar bem, projectava a região e era mais uma ocasião de desenvolvimento regional e que, não se sabe bem por quê, lhes é tirada. E eu não posso deixar de dar alguma razão a esta crítica.

 

Reencontrar Portugal

E – Refere, com insistência, a necessidade de “reencontrar a sociedade portuguesa”. De que reencontro se trata?

MC – É um reencontro profundo e tem a ver com a necessidade de não sermos tão precipitados nas análises, nos debates e nas crispações.

Uma sociedade não se resolve no momento. No caso português tem longuíssimas raízes, tem afirmações culturais multisseculares. É por isso necessário conhecer melhor do ponto de vista histórico, saber o porquê das coisas.

O autoconhecimento, dos países e das pessoas, é muito importante. Trata-se da identidade: nós para andarmos com um pé para a frente temos de ter o de trás assente, caso contrário caímos. E é o que muitas vezes acontece: parece que nos estamos agora a criar como se tivéssemos aparecido no momento. Nós estamos aqui há quase mil anos, como sociedade!

 

E – É por isso que “é impossível deixarmos de ser quem somos”?

MC – Absolutamente! A atitude que nós temos, do tudo ou nada, parecendo que nos esgotamos no momento, mas rapidamente retomamos o lastro, porque ele é muito forte.

 

E – Em que medida questões que se extremam na sociedade afectam essa identidade?

MC – Ressaltam uma vaga de fundo que acaba por nos reconfirmar.

Não posso adivinhar o que esteve na origem da atribuição do Prémio Pessoa. Mas admito que, o olhar para uma pessoa da Igreja Católica – entre tantas outras que poderiam ter olhado e certamente escolhido melhor – por parte de pessoas que não se apresentam nem serão confessionais, revela a sua atenção a uma tradição cultural que importa ter presente no debate da sociedade portuguesa.

 

A Pessoa no centro

E – Que atitudes oferecem fecundidade ao diálogo que protagoniza entre Igreja e sociedade, entre religião e cultura, entre fé e ciência?

MC – São perspectivas diferentes de encarar a mesma realidade: a pessoa. Trata-se de considerar que os cidadãos portugueses – os 10 milhões aqui e os 5 milhões pela emigração – não são indivíduos ou abstracções numéricas ou quantitativas. São antes um feixe de relações, ideias, convivências assumidas, registos históricos, memórias recuperadas e projectos de futuro (que na quadra natalícia se revelam muito para além da fronteira confessional). Em diferentes abordagens, empírica, científica, metafísica, ética, literária ou religiosa, são abordagens complementares da mesma realidade: a realidade humana. Esse serviço da pessoa humana é o lugar onde temos de nos encontrar, todos.

 

E – É essa a atitude do Prémio Pessoa 2009?

MC – Não gosto de me formalizar muito. Mas que é essa a minha preocupação e a minha maneira de estar é.

 

E – O peso hierárquico ou litúrgico impede que, nos diferentes contextos eclesiais, a pessoa esteja no centro?

MC – Eu creio que, quando a pessoa ganha alguma consistência, não é mais ou menos paramento ou formalismo que impede de transformar qualquer ocasião em encontro e convivência entre as pessoas. Sobretudo quando acontece num ambiente em que o apelo e a proximidade de Deus se transforma num factor Absoluto de convivência.

A intensidade pessoal é que resolve as coisas, não a parte cenográfica.

 

E – Afirmando o cristianismo como um “laboratório cultural vivo”, evoca o exemplo de Paulo de Tarso que se fez judeu com os judeus, gregos com os gregos. Hoje é possível não ser só romano?

MC – Trata-se da inculturação. O que Paulo percebeu é que na ressurreição de Jesus Cristo havia um princípio novo de explicação e de convivência. E que apresentado quer a judeus quer a romanos, essa mesma fermentação evangélica havia de transformar culturas em torno de um princípio novo: a Páscoa de Jesus. Uma dimensão pascal da existência, que encontra o sentido das coisas, sem ser avaro delas ou explorando-as, mas dando e entregando-as, e que faz olhar os outros não como concorrentes mas como irmãos, este sentido pascal da existência, o “ser mais feliz no dar do que no receber”, pode fermentar em qualquer cultura ou civilização.

 

E – Tudo isso não é proposto a partir de um único centro, que é Roma?

MC – Para nós Roma é sobretudo a fé de Pedro e Paulo, que a Igreja de Roma conserva, e a pessoa do seu Bispo enquanto sucessor de Pedro. Porque é muito importante o que encontramos nos Evangelhos: Jesus, entre os apóstolos, deu a um a incumbência de confirmar os irmãos na fé. Isso faz Bispo de Roma por sucessão histórica, que nós reconhecemos também como realidade teológica.

 

E – Ele estará no Porto no próximo dia 14 de Maio. Que oportunidade constituirá, nomeadamente para a Missão 2010?

MC – O tema que pedi ao Santo Padre para tratar aqui no Porto é “Igreja é Missão”. Porque a missão é uma realidade substantiva à Igreja. A dimensão de envio para Deus e para os irmãos é a Igreja. Isso iremos activar aqui no Porto, ao longo do ano 2010, para incentivar aquilo que é uma realidade permanente. E o Papa certamente nos virá dar uma palavra de confirmação.

 

E – Terá uma diocese transformada, no final de 2010?

MC – Essas transformações não são da nossa medida de apreciação. São vagas de fundo. Essas coisas só Deus sabe!

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