O algoísmo

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real 

Li, por estes dias, um artigo, informando o declínio da prática religiosa em Espanha. Tem crescido o número de ateus e os jovens estão cada vez menos religiosos. Poderá ser uma realidade a que estamos a assistir em vários países europeus. É indisfarçável que o Ocidente, e mais concretamente a Europa, está a passar por uma crise de fé. De uma sociedade que facilmente aceitou ou coabitou com a ideia de Deus e com a doutrina e a moral da fé, de tal forma que negar Deus era quase ofensivo e delituoso, passamos para uma sociedade que deixou de se importar com Deus, alheada da vivência religiosa e indiferente à sabedoria e às propostas das religiões, em que negar Deus ou assumir o agnosticismo é um sinal de modernidade, uma exigência para se pertencer aos «novos tempos». Alguns estudiosos sugerem que a Europa está a passar por um certo «enjoo» religioso ou por um «cansaço» da fé. Outros até afiançam que estamos a assistir à “agonia do Cristianismo”. Muitos procuram apontar outras causas, que têm a sua relevância: o niilismo contemporâneo, que questiona tudo e não aceita nenhuma verdade como absoluta, o predomínio de uma mentalidade positivista e cientificista, que não sabe pensar para lá do laboratório e mede tudo pelo alcance do microscópio, o comodismo contemporâneo, que adota estilos de vida sem grande pensamento e exigência, a terrível e dura experiência que foi o século XX, com as suas guerras e barbaridades, com um caudal de destruição, morte e desumanidade inimaginável, que deixou marcas muito profundas na alma humana, suscitando um questionamento e uma dúvida persistente sobre todos os princípios, ideias, convicções, doutrinas, sistemas de pensamento e ideologias. Digamos que a Europa está a passar por «uma noite escura», que os místicos cristãos penosamente descrevem nos seus livros, em que Deus parece ausente e não responde senão com um silêncio inquietante.

Mas, na verdade, pode haver indiferença para com a vivência religiosa e para com as religiões, mas penso que a fé não está assim tão esquecida no íntimo das pessoas. Muitas com quem vou falando, nas amenas cavaqueiras de verão e nas serenas querelas de esplanada, que não tiveram a formação religiosa que almejariam ter, afirmam que não se limitam a pensar a vida com os olhos voltados para a terra, mas que acreditam em «algo acima de nós», que possivelmente «nos criou, nos deu a vida e nos governa» e não deixará de nos «chamar a participar numa vida para sempre», «para além da morte». É o que os teólogos chamam o algoísmo, talvez a religião mais popular atualmente, acreditar em algo, sem saber muito bem o que isso é, mas acredita-se, o que prova que a fé em Deus não se apaga e não se elimina facilmente do pensamento e da reflexão humana, e que o ser humano consegue formular sempre uma ideia de Deus a partir da experiência e da perceção que tem da vida e da realidade. Claro que é muito cómodo ficar-se pelo algoísmo, mas um crente a sério esforça-se por compreender esse «algo» em que acredita e procura relacionar-se com Ele, fonte da vida, sem o querer dominar ou entender tudo.

Como afirmam alguns teólogos, talvez não esteja tanto em crise a fé em si, a capacidade e o desejo que a pessoa humana tem de procurar a razão de ser da vida e das coisas, de procurar uma transcendência que seja a fonte, o sustento e a plenitude da vida, mas está em crise a fé numa certa ideia ou conceito de Deus, a crença numa determinada identidade de Deus e numa certa forma de nos relacionarmos com Ele, já não servem as ritualidades, as linguagens e as roupagens que até agora enformaram e vestiram as religiões. E se assim é, as crises de fé, como tantas que já houve ao longo da história humana, são benéficas para a fé, porque obrigam as religiões a refletir sobre a imagem que comunicam de Deus, obrigam a repensar o discurso, a doutrina e a moral das propostas religiosas, eivadas de exageros e inconsistências, forçam a mudar esquemas, costumes, métodos, fórmulas e soluções, aprofundam a espiritualidade. As crises acabam por ser oportunidades e filtros epocais, que purificam, maturam e robustecem a fé. Andam por aí muitas imagens de Deus, que temos de erradicar do discurso e da vivência religiosa. E acho que, antes de mais, podemos começar por aqui. Já não tem qualquer sentido falar do deus castigador e vingativo, que nós inventámos, numa blasfema antropomorfização de Deus, que criou a religiosidade do medo e um sem número de pessoas oprimidas, permanentemente assoladas por escrúpulos e perturbações. Já é tempo de questionarmos a imagem de um deus que exige sacrifícios sem mais nem menos, que exige expiações e penitências para sanar a culpa e dar prémios, parecendo que se compraz com a dor humana, já é tempo de se repensar no deus milagroso, que temos de despertar e convencer pela oração ou qualquer ato heroico, dando a impressão de que anda distraído e não conhece a vida das pessoas, salvando uns e a outros deixa-os morrer, já é tempo de nos interrogarmos sobre a imagem demasiado humana de Deus que ensinamos e pregamos, um deus de humores e caprichos, que se ofende e que está muito ofendido…Não acho que seja esta a linguagem correta e a melhor imagem de Deus. Como todas estas ideias e imagens de Deus andam muito longe do Deus santo, bom, misericordioso e amoroso que Jesus ensinou, sem deixar de ser exigente e justo, certamente!

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Agência ECCLESIA

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