Proteção de Menores: «Igreja está disponível para ajudar a refazer ou a reparar» – D. Virgílio Antunes

No último dia do ano, passamos em revista 2023 e perspetivamos 2024 com a ajuda do bispo de Coimbra e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o convidado deste domingo da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto Ricardo Perna

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo

Em vésperas do Dia Mundial da Paz, vemos que 2023 termina sem qualquer perspetiva de paz, infelizmente, tanto na Ucrânia como na faixa de Gaza. O Papa Francisco tem sido incansável nos apelos a uma solução pacífica. Que mais é que podemos esperar da Igreja na busca destas soluções de paz?

 

De facto, é uma desumanidade grande aquilo que está a acontecer. Nós, nas últimas décadas, não tínhamos memória de uma violência tão grande como aquela a que estamos a assistir neste momento. E a Igreja pode fazer alguma coisa, evidentemente, sobretudo pela sua voz, que felizmente tem levantado para chamar à razão, digo à razão, os homens e mulheres do nosso tempo e para que vejamos todos aquilo que são os horrores da guerra. Também, a Santa Sé procura fazer a sua diplomacia, que nem sempre é visível aos olhos do público em geral, mas que existe e que procura trabalhar dentro daquilo que são as condições e as possibilidades ao seu dispor.

A voz do Papa Francisco é efetivamente uma voz forte, que semana após semana, quase dia após dia, não deixa de referir os horrores da guerra, sejam eles onde forem, mas concretamente agora nestes dois focos, que têm uma mediatização maior, como é o caso da Ucrânia e como é o caso da Faixa de Gaza.

E a voz do Papa é importante e ele tem-na feito ouvir, porque procura chamar as pessoas à razão e tem por detrás, evidentemente, algumas perspetivas éticas que são essenciais para que a humanidade possa viver em paz. E sem ética e sem algumas perspetivas fortes e bem enraizadas na vida das pessoas e dos Estados e dos povos, de facto, continuaremos a ter este grande problema das guerras.

 

O ano que passou ficou marcado pela primeira sessão da Assembleia do Sínodo, que vai prosseguir em outubro de 2024. Que expectativas tem para este caminho?  Iremos sentir muito a pressão causada pela, não sei se posso dizê-lo desta forma, e não sei se é artificial, divisão entre conservadores e progressistas? 

O Sínodo tem muito para dar, tem muito para dar à Igreja, até porque é pela primeira vez, como nós sabemos, que a Igreja abre absolutamente as suas portas para ouvir a voz de todos aqueles que dentro da Igreja, nas periferias da Igreja ou mesmo fora da Igreja acham que, em consciência e num desejo construtivo, têm alguma coisa a dizer acerca do modo como a Igreja pode estar, deve estar presente no mundo em que nós vivemos.  como a Igreja pode também organizar-se, por assim dizer, interiormente para realizar bem a sua missão, que é evidente, é sempre uma missão de evangelização e, portanto, do anúncio da Boa Nova do Evangelho, a todos os povos da Terra.

Podemos esperar, penso, muito do Sínodo, embora algumas pessoas podem ficar desiludidas porque algumas questões mais mediáticas e que estão na agenda, por assim dizer, de grupos de pessoas – tanto dentro como fora da Igreja – podem não ter aquelas saídas que eram desejadas ou esperadas por muitas pessoas. Mas penso que, à parte disso, e de facto uma certa divisão que se nota, não como fruto do Sínodo, mas uma certa divisão dentro da Igreja e das comunidades cristãs, com essas caracterizações que nós podemos dar.

 

 

E pode acentuar-se essa divisã,o com o decorrer dos trabalhos?

Eu penso que o Sínodo só deverá ser objeto de um consenso alargado, de uma comunhão maior, de um encontro de pessoas, de um debate também de algumas perspetivas, mas de uma aproximação entre as pessoas. É para isso que serve um Sínodo. Um Sínodo nunca pode servir para dividir mais as pessoas, embora, de facto, o espírito do mal às vezes vai reaparecendo e vai sendo foco de divisão aqui e ali.

Mas o objetivo do Sínodo, e é isso que eu espero verdadeiramente, é que seja de unir pessoas e de unir a Igreja, a Igreja de Cristo, na fidelidade à sua vocação e à sua missão, embora seja que saiba que isso é muito difícil e ao longo da história tem havido, de facto, sempre momentos de tensões muito fortes, que em alguns casos deram inclusivamente cismas.

 

Pergunto-lhe se, entre os temas de que estava a falar, há um que claramente marcou a atualidade dos últimos dias, porque dois meses, mais ou menos, depois desta sessão do Sínodo, o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou uma declaração, aprovada por Francisco, que permite abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo. Dente que é uma consequência do processo de auscultação e discernimento que foi lançado em 2021?

Penso que nós fomos, de algum modo, apanhados de surpresa, porque não estávamos à espera que, durante este percurso da sinodalidade, aparecesse uma declaração, inclusivamente em relação a um assunto que, de algum modo, também estava incluído e está incluído naqueles que fazem parte do Sínodo.

Mas, de facto, penso que não decorre totalmente do Sínodo, embora tenha havido, como nós sabemos, naquela auscultação que se fez, ou naquele tempo e momento da escuta, a todos, muitas referências a este tipo de situações das famílias, com todas estas denominações e com todas estas configurações que nós conhecemos. A impressão que me dá é que o Santo Padre quis, juntamente com o Dicastério da Doutrina da Fé, dar um sinal a toda essa multidão imensa de pessoas que se referiram a estes assuntos, a estes temas, de que estávamos em caminho. Essa é a minha interpretação.

E também penso que terão olhado para aquilo que se tem passado, concretamente na Alemanha, onde, de facto, há alguns focos de divisão muito fortes dentro da própria Igreja e dentro da sociedade, e que poderá ter sido, isto é a minha interpretação, poderá ter sido um desejo de fazer perceber aquelas pessoas que estão numa certa tensão dentro da própria Igreja, de que há caminho a fazer.

 

Admite, portanto, a necessidade de uma melhor compreensão ou alcance deste gesto?

Evidentemente, porque uma coisa é aquilo que diz um documento ou uma mensagem publicada, um texto publicado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, e outra coisa é o modo como no mundo, dentro da Igreja e fora da Igreja, as pessoas entendem aquela mesma comunicação.

 

E já tem havido várias interpretações, não é? 

As mais distintas, diferentes e às vezes quase contrárias. Desde os grupos de pessoas que ficaram extremamente felizes por perceberem ali um certo avanço no modo de acolher todas as pessoas na Igreja, mesmo que se diga, evidentemente, que não é para mudar a doutrina, e não é. E desde aquelas pessoas que também ficaram, de algum modo, desiludidas, porque esperariam muito mais.

Portanto, estes gestos precisam de ser compreendidos e também precisam, de algum modo, ser explicados para que se perceba, embora esteja lá o princípio da explicação, evidentemente, enfim, o alcance que pretendem ter.

 

 

O ano que termina também foi marcado por um tema que esteve na ordem do dia, sobretudo a apresentação do relatório da Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja, depois também a recente apresentação do grupo Vita também no seu relatório. Pergunto como é que olhou para a forma como a Igreja Católica tem vindo a tratar do assunto, e se pensa que nalgumas situações se teria justificado uma maior celeridade?

Nós fizemos um caminho enquanto Igreja em Portugal, em que eu agora olhando para trás percebo que foi muito firme e, por outro lado, muito rápido. Era difícil de perceber, aqui há quatro ou cinco anos atrás, ou se recuarmos ainda mais; mais, maior é a dificuldade de compreender como é que a Igreja em Portugal ia entrar neste processo, enfim, a este ritmo: uma Comissão Independente que em um ano procura fazer um trabalho de conhecimento da realidade dos abusos sexuais de crianças, de menores em Portugal, e apresentar as suas conclusões, e depois a criação de um grupo VITA, logo a seguir, para dar continuidade a um processo, a criação das Comissões Diocesanas, e todas as dioceses criaram as suas comissões, que têm estado a trabalhar dentro das limitações próprias.

Isto para todos nós foi uma realidade absolutamente nova, nenhum de nós estava preparado para este trabalho, para fazer de uma forma mais rápida ou menos rápida aquilo que felizmente se fez, e que era necessário fazer, porque nós em Portugal e na Igreja e no mundo não podíamos continuar com os olhos fechados àquilo que agora sabemos de uma forma mais objetiva e evidente se passava.

E, portanto, este trabalho era necessário, teve a celeridade provavelmente possível.

Eu agora penso que foi um trabalho muito rápido que se fez até agora, não resolvemos todas as situações, temos problemas com certeza a enfrentar, há um futuro imediato…

 

 

E no imediato, por exemplo, está previsto algum encontro com a Associação de Vítimas? Da sua parte, por exemplo, há disponibilidade para receber pessoas envolvidas nestes casos? 

Tanto eu, bispo de Coimbra, como os outros bispos em Portugal, alguns já receberam várias pessoas, outros estão a receber… temos a disponibilidade total, porque nós estamos neste processo todos de alma lavada, de espírito aberto, e o que nós mais desejamos é que a Igreja e a sociedade consigam ultrapassar um drama que a tem marcado tanto e que é um dos dramas mais duros que a Igreja em Portugal e no mundo tem enfrentado nos últimos séculos; eu até diria ao longo da sua história, porque é uma coisa a todos os títulos deplorável que nenhum de nós pode aceitar.

 

E está previsto um encontro da CEP com a Associação de Vítimas? 

Sim, mas é com a Associação das Vítimas, como pode ser com as vítimas individualmente, como pode ser com outros grupos de pessoas, nós estamos absolutamente disponíveis, como tem dito o presidente da CEP, para receber todas as pessoas.

 

Eu faço-lhe uma pergunta que está ainda relacionada com este tema, que tem a ver com uma questão que tem gerado algum problema de comunicação, digamos assim. 

A questão das indenizações, precisa de maior clareza na apresentação da posição dos bispos, das dioceses e da Conferência de Bispo Paulo, em particular?

Esse processo não está ainda completamente encerrado, como aliás o presidente da CEP disse na última apresentação do relatório do Grupo Vita.

O que se tem sempre distinguido são duas coisas: as indenizações como fruto de um processo nos tribunais que obrigam uma entidade a pagar uma indenização. Em primeiro lugar sabemos que em Portugal é sempre o próprio criminoso, por assim dizer, que é responsável pelos seus próprios atos. Num ou noutro caso, parece que pode haver alguma responsabilidade também institucional.

E outra coisa é a ajuda que a Igreja está disponível para dar a cada pessoa que tenha sido vítima para refazer a sua vida. Já está a fazer a tal ajuda no que diz respeito aos tratamentos na área da psicologia e da psiquiatria, que já estão em curso, para todas aquelas pessoas que pediram, que acharam que era importante para o seu processo de regeneração. E está aberta, de facto, à possibilidade de ajudas a pessoas que estão em dificuldade e que precisam.

Portanto, se chama indeminizações ou não chama, nós na Conferência Episcopal temos chamado ajudas sociais, ajudas sejam elas quais for, a pessoas em necessidade, concretamente por este facto. Agora, uns chamam indenizações, outros chamam ajudas sociais ou ajudas seja ela de que tipo for. São duas coisas diferentes. A Igreja está com certeza disponível para ajudar a refazer ou a reparar, como sempre tem dito, estas pessoas.

 

O próximo ano vai ser de visita ‘ad Limina’, para encontros com o Papa e também com organismos da Cúria Romana. O que conta levar na sua bagagem?

Olhe, na minha bagagem eu gostaria de levar muito mais coisas e, sobretudo, gostaria de levar uma Igreja pujante, cheia de vida, cheia de entusiasmo, evangelizadora, que é capaz de se organizar, que os sacerdotes, os diáconos, os consagrados, os leigos estão a procurar viver a sua fé com intensidade nas comunidades, grandes ou pequenas, isto era o meu desejo. Uma parte disto eu levo; outra parte é aquilo que gostaria de levar, mas a nossa Igreja, tanto em Portugal como nas nossas dioceses, não está propriamente assim a passar os dias mais fabulosos e mais encantadores. Todos temos muitas alegrias e temos caminho feito, mas também todos temos muitas dificuldades e deficiências e, sobretudo, vimos um certo afastamento do povo de Deus da prática do culto dominical, que é um dos sintomas mais evidentes de um certo calor da fé, de uma certa adesão e proximidade com a Igreja, ou porventura, enfim, de um certo arrefecimento.

 

E a pandemia acentuou essa situação?

A pandemia acentuou, mas não foi só a pandemia, esta questão do estudo sobre os abusos sexuais de crianças, evidentemente, também afetou. Depois há um ambiente global que tem a ver com ideologias, tem a ver com a secularização, tem a ver com o nosso modo de estar no mundo. Quer dizer, não podemos reduzir tudo à pandemia, porque isso seria até uma desculpa muito fácil para todos, deixava-nos todos muito tranquilos, e nós não queremos ficar tranquilos diante daquilo que é a missão da Igreja nas nossas dioceses, nas nossas comunidades e no nosso mundo.

Eu, por exemplo, fiz aqui na Diocese de Coimbra um recenseamento da prática dominical no mês de novembro de 2022. Escolhemos precisamente ser em 2022 e novembro porque estávamos num período em que toda a gente percebia que havia alguns efeitos da pandemia, mas nós queríamos conhecer a realidade tal como ela é, nua e crua, e não mais ou menos floreada com esta desculpa, aquela e aquela outra, para melhor podermos realizar a missão da Igreja a partir daquilo que é a realidade que agora vivemos.

Tantas dificuldades existem. Agora nós, Igreja em Portugal, vamos levar algumas notícias muito boas, tivemos sobretudo um acontecimento que nos marcou de tal maneira que domina, vai dominar, por assim dizer, a totalidade das nossas mentes. Temos, por um lado, aquilo que é mais negativo, esta questão dos abusos foi de facto uma página muito má da nossa história, e temos aquilo que nos marca, pelo lado mais positivo, e é uma página muitíssimo bela também da nossa história…

 

Estamos a falar da Jornada Mundial da Juventude, que decorreu em Lisboa em agosto, mas que também teve um longo processo de preparação, nas várias dioceses, tanto com a promulgação (16:32) dos símbolos, como depois aquilo que é chamado de as pré-jornadas, os dias nas dioceses. Nesse sentido, pergunto-lhe se esta visita ‘ad Limina’ é uma oportunidade para avaliar o caminho a seguir após o impacto positivo que teve esta dinâmica?

Sim, mas como sabe, a nossa visita ‘ad Limina’ tem um âmbito bastante mais alargado, uma vez que nós fizemos a última visita há cerca de oito anos, em 2015, e há um relatório que nós temos de organizar em cada diocese e nas conferências, e na Conferência Episcopal, que tem este âmbito mais alargado. Mas é evidente que nós vamos todos focar-nos naquilo que nos marcou mais, portanto, a Jornada Mundial da Juventude foi uma coisa absolutamente ímpar para a vida pessoal de cada um de nós – para a minha, que já tinha participado em várias Jornadas Mundiais da Juventude, mas ser aqui teve um impacto completamente diferente. Depois, aquela peregrinação dos símbolos foi uma movimentação absolutamente fantástica, que envolveu pessoas da Igreja, de fora da Igreja, das associações, das autarquias, todas as pessoas sentiram, porque havia ali dois símbolos daquilo que é mais importante para toda a humanidade.

A Jornada em si mesma foi aquele ambiente que todos nós pudemos vivenciar, que nos marcou profundamente e que marcou a Igreja, embora nós estejamos todos agora muito preocupados e com algum receio de não dar uma continuidade adequada no processo evangelizador e de encontro com jovens, etc., que a Jornada Mundial da Juventude nos exige.

 

Propôs à Diocese de Coimbra a realização do primeiro Sínodo dos Jovens. Como é que foi recebido esse desafio?

Bem, muito bem, muito bem. Para já muito bem. É evidente que foi o lançar da ideia, agora tem de amadurecer, mas vai amadurecer rapidamente, não vamos adiar isso para tempos distantes por aí fora. E depois procuramos reorganizar tudo aquilo que é pastoral dos jovens. Criamos na diocese uma estrutura que não tínhamos, que tem a ver com a liderança em tudo aquilo que diz respeito à pastoral dos jovens: sejam os jovens nas paróquias, no âmbito territorial, sejam os jovens universitários, dos politécnicos, do ensino superior, das escolas no ensino secundário, sejam os últimos anos da catequese, próximo do Crisma, antes do Crisma, depois do Crisma. Estamos a desenvolver um trabalho e espero que venha a dar muitos frutos para que tenhamos uma atitude diferente diante dos jovens e para que não fiquemos exatamente nem com as mesmas instituições que já tínhamos antes, nem com os mesmos dinamismos, na certeza de que precisamos de renovar e dar um salto qualitativo e quantitativo em tudo aquilo que fazemos enquanto Igreja, na relação com os jovens.

 

Em março teremos as eleições legislativas, receia que daí possa resultar um quadro de ingovernabilidade em que as chamadas forças extremistas reforçam o seu eleitorado?

É possível, é possível e nós todos estamos preocupados, já estamos preocupados com a situação presente que estamos a viver, que é uma situação a todos os títulos, nova, dentro do contexto do nosso país e da nossa política. As coisas são como são. Agora, o que eu desejo é que o futuro possa ser diferente pela responsabilidade, pela apresentação de programas partidários objetivos, realizáveis, portanto possíveis e não simplesmente ideias ou folhas que se preenchem para as eleições. Depois, que haja bom senso da parte das pessoas – que nem tudo aquilo que às vezes se diz pode ser concretizado. Sabemos também que há partidos que têm capacidade de governar e outros têm simplesmente capacidade de provocar, mesmo que possam ser boas provocações, que estimulam aqueles que são partidos dos diferentes governos.

O que nós gostaríamos, todos, é que o país encontrasse as vias adequadas, as vias de saída, vias de progresso económico, social, político, mas vejo isso muito difícil no quadro em que nos encontramos.

 

O próximo governo vai tratar da regulamentação da lei de eutanásia que foi aprovada em 2023. Com o fim da maioria que aprovou esse diploma, pensa que o processo deveria ser reanalisado, até porque há pedidos de fiscalização sucessiva da lei?

É evidente, é evidente. A Igreja, nós, a Conferência Episcopal Portuguesa, com grupos dentro da sociedade, tão diversificados, sempre temos apontado os problemas graves de humanidade que traz uma lei de eutanásia como aquela que foi aprovada pelo nosso Parlamento. Portanto, estamos todos preocupados, até porque conhecemos experiências de outros países, onde foram tão longe ou mais longe do que nós, e os resultados desastrosos que conseguiram naquilo que diz respeito à desumanização da sociedade. Nós queremos uma sociedade plenamente humanizada, quando se abrem brechas deste género, como a eutanásia, nas mais variadas condições e circunstâncias, com uma lei mais permissiva ou menos permissiva, nós abrimos, de facto, um capítulo que depois não conseguimos fechar e é sempre um retrocesso da humanidade, porque abrir as portas da morte, em vez de abrir as portas da vida a uma sociedade, mesmo aquelas pessoas que vivem em dificuldades, sejam elas as maiores que forem, é sempre um retrocesso. Nós queremos uma humanidade da vida e nunca da morte.

O mínimo que podia fazer-se, o que eu desejava e que talvez muitos cidadãos portugueses desejem que aconteça, é que esta lei possa vir a ser, não regulamentada, mas revertida, e que se possam encontrar, de facto, de uma forma responsável, os caminhos de vida que nos hão de fazer felizes a todos: aos que estão doentes, aos que são idosos, aos que estão quase à beira do desespero, mas encontrarmos saídas humanas para todas estas pessoas, esse é o caminho.

 

A preocupação com os pobres é uma causa fundamental para a Igreja, receia que em 2024 se possam acentuar as desigualdades?

Nós temos estado a assistir, nos últimos tempos, a uma procura muito maior de auxílio por parte de muitas pessoas, indivíduos e famílias pobres. Há aquele fenómeno, que nos últimos tempos se tem acentuado, de famílias que, estando a trabalhar, sendo pessoas que trabalham, não conseguem encontrar o necessário para organizar a sua vida, particularmente com os filhos, com a escola, com as outras atividades que hoje fazem parte indiscutível da organização da vida de uma sociedade e da vida de uma família. Portanto, o perigo já está aí e o perigo pode continuar a avançar. Eu acho que o Estado, as instituições, têm de estar absolutamente atentas a estas realidades, não se pode, pura e simplesmente, descarregar responsabilidades em cima de IPSS ou em cima de instituições, seja lá de quem for, porque o Estado, enquanto tal, tem uma responsabilidade muitíssimo grande, que não resolve, evidentemente, todos os problemas e todas as situações. Tem de haver a cooperação de toda a sociedade, mas o Estado tem uma responsabilidade primeira e muitíssimo grande, no nosso caso.

 

E o quadro de crise política que estamos a viver e vamos continuar a viver, porque as eleições são só a 10 de março, pode agudizar esta situação de grande precariedade?

É evidente. Quando há instabilidade política, também há instabilidade social, também há instabilidade económica e, portanto, pode haver, inclusive, desorganização no que diz respeito às empresas. Tudo isso, com certeza afeta e pode vir a afetar, mas desejamos que não, porque desejamos a estabilidade política, social e económica para que o país possa estar tranquilo e as pessoas possam, de facto, trabalhar, ver o produto do seu trabalho, ver o rendimento próprio da atividade laboral e ser um país em crescimento, que dá origem a famílias em crescimento, com as condições adequadas para viver.

 

Estamos a chegar ao final de 2023 e também estamos a chegar ao final desta entrevista, pergunto-lhe quais são os votos que quer deixar para o novo ano?

O primeiro tem a ver com a paz. A paz é um bem essencial e nós estamos à distância da guerra, também sofremos alguns efeitos colaterais, mas isso até é o mínimo, é o menos em que se pode pensar. De facto, a guerra tem de acabar, seja onde for, mas concretamente nestes dois polos onde tem sido tão feroz como é a Ucrânia e a Faixa de Gaza. É de facto um drama que nós, à distância, podemos de algum modo procurar perceber, mas não somos capazes de perceber na sua totalidade. É o desejo de paz.

Depois era o desejo da estabilidade social, entre nós, social, económica, política, para que as pessoas tenham as condições de vida adequadas. Gostaria também de desejar que este trabalho que a Igreja tem estado a fazer no que diz respeito à prevenção dos abusos, à formação das pessoas que fazem parte das estruturas eclesiais, de acompanhamento das vítimas, de acolhimento e de compreensão, tudo isto possa continuar a um ritmo acelerado, possível, e a um ritmo que ajude as pessoas a reencontrar-se, a refazer-se e a sentir-se interiormente mais felizes. E que a própria Igreja possa prosseguir neste caminho da sinodalidade, com os pés bem assentes na terra, neste desejo da fidelidade à doutrina, mas no desejo, ao mesmo tempo, de acolher as pessoas que estão em situações tão diversificadas e tão diferentes e que precisam de sentir o palpitar do coração de Deus através do coração da Igreja.

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Agência ECCLESIA

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