Um abraço feito de lágrimas

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Há lágrimas e lágrimas. Por elas já todos temos passado, mais leve ou mais profundamente. Há lágrimas e lágrimas e de diferentes tipos. Todos o sabemos.

Há as lágrimas funcionais, de sempre, como as de hoje a esta hora, libertas constantemente para que a córnea se mantenha húmida mantendo os olhos confortáveis para uma visão naturalmente saudável. Sempre necessárias, nem damos por elas, mas, lágrimas dançantes sem descanso, lá estão a dar saúde à visão.

Há as lágrimas reflexas, sempre muito desagradáveis. São as que os olhos libertam espontaneamente quando atingidos por substâncias que os irritam, como argueiros, fumos, luzes excessivamente fortes, respingos de cebola ou outros vapores químicos existentes ocasionalmente na atmosfera. Necessárias nestas situações de incómodos temporários que sempre fazemos por evitar.

Há as lágrimas provocadas por situações emocionais. É nelas que vulgarmente pensamos. São as lágrimas psíquicas de resposta a situações de profunda emoção. De raízes profundas, elas são negativas como a tristeza, a raiva ou a dor, e positivas como a alegria, a felicidade ou o amor. São elas «critério da verdade do mundo dos sentimentos», nas palavras do filósofo romeno Émil Cioran (1911-1995). Situam-se aqui os abraços feitos de lágrimas. Todos o sabemos.

Há muitos abraços de lágrimas. De tristeza ou de alegria. Mas aquele foi de felicidade e alegria. E foi um abraço especial. Tão especial que cheguei a ver nele uma espécie de manifestação da metafísica das lágrimas. Ou de uma comunhão de humanos.

Nos dias anteriores já tinha havido muitos abraços e eu tinha visto uma ou outra lágrima a assomar a alguns olhos. E não faltaria razão para isso. Mas aquele espontâneo, repentino, apertado e demorado abraço de lágrimas incontidas contagiou os meus olhos. E também eles reagiram com lágrimas espontâneas e solidárias. Será em razão de lágrimas assim que Nietzsche (1844-1900) pôde escrever: «Não sei fazer distinções entre lágrimas e música.» Com ele me agrada dizer com este filósofo que naquele abraço ficou sintetizada em minutos a música do mundo. Até porque estavam ali as pautas musicais da escrita daquela língua de seis tons: a língua vietnamita.

No dia 26 do passado mês de Novembro um grupo de duas dúzias de vietnamitas – historiadores, artistas, professores, poetas, escritores, jornalistas – em cooperação com a Câmara, inaugurou um monumento ao P. Francisco de Pina SJ no jardim da biblioteca municipal da cidade da Guarda. Um monumento em bronze, barco à vela de três metros de altura sob as ondas do mar, concebido, projectado e realizado no Vietname em sinal de reconhecimento para com aquele sacerdote jesuíta que, ainda um jovem estudante de vinte e um anos, deixou a cidade natal há mais de quatrocentos anos para nunca mais aqui voltar. Missionário e linguista na Cochinchina de então, regressou agora aos ombros de vietnamitas em festa, como, para a tumba, o levaram em lágrimas quando ali morreu, num naufrágio, há quase quatro séculos. Foi a 15 de Dezembro de 1625. E o fruto do seu trabalho ali ficou, naquela Cochinchina de outrora, para outros continuarem e desenvolverem. O continuarem nos fundamentos de uma Igreja vietnamita e na linguística, como a história o vem mostrando.

E o reconhecimento lá está escrito, naquele simbólico monumento, em três línguas – português, inglês e vietnamita – tal como o célebre trilingue Dictionarium Annamiticum, Lusitanum et Latinum, publicado em Roma em 1651e que tem raízes no trabalho pioneiro do jesuíta da Guarda. Assim se lê no monumento: «Esta estela, trazida de Quang Nam, Vietname, é símbolo do nosso reconhecimento para com o Padre Francisco de Pina (Guarda, 1586 – Hoi An, Vietname, 1625), inventor pioneiro doChû Quôc Ngû (escrita vietnamita em alfabeto latino)

Um barco à vela feito de bronze, que todo ele todo é símbolo, ali está agora, na cidade da Guarda, a navegar num jardim relvado da montanha a anunciar que a vida das comunidades humanas tem novo sentido quando as culturas reciprocamente se abrem à convivência dialogal, mesmo e apesar de naturais conflitos na descoberta recíproca.

Foi na sala de leitura da Biblioteca Nacional da Ajuda que acompanhei aquele entusiasta vietnamita por Francisco de Pina. Jornalista e editor, depois da festa da Guarda não quis deixar Portugal sem abrir com as próprias mãos os emblemáticos códices com aqueles fólios falados pelos investigadores, mesmo que manuscritos em latim ou em português, duas línguas que lhe eram desconhecidas em absoluto. Tocar e ver era o bastante. Tocar, ver e fotografar cada página, depois.

Primeiro foi uma carta que, embora sem assinatura, a crítica interna e externa atribui a Francisco de Pina. Não sabendo português, aquele interessado vietnamita leu o que sabia ler, o ano: 1623. Os olhos brilharam-lhe e, enquanto apontava para o alto, disse em francês: «Francisco de Pina, lá de onde se encontra, está a ajudar-nos.» E, fazendo a conta numa folha de papel, exclama com entusiasmo inusitado: «400, 400 anos, quatro séculos precisos que tem esta carta!» E fotografou cada fólio como quem fotografa o amor da sua vida.

Depois mudámos de registo e abrimos outro volume. Era ali que se encontrava o que mais desejava ver como tantas vezes me havia dito na Guarda, pessoalmente e por mensagens escritas. Era um documento em latim intitulado Manuductio ad Linguam Tunkinensem, uma espécie de gramática de introdução à língua que abre com seis pautas em clave de sol, representando os seis tons da língua vietnamita, precisamente as pautas que se encontram reproduzidas no monumento da Guarda. Ao ver aquelas páginas, levanta-se repentinamente e, num silêncio de lágrimas, abraça-me por longos momentos que foram minutos, sem dúvida. Foi então que também eu não contive as lágrimas e chorei com ele. Depois daquele longo e apertado abraço limpámos os olhos. Foi então que aquele agradecido vietnamita aponta para aquelas folhas bordadas a música e exclama entusiasticamente: «É a minha língua, professor, e Francisco de Pina está aqui.» Emudeci e só tive palavras para pedir desculpa a duas ou três pessoas que se encontravam naquela sala revestida de volumes encadernados cheios de história.

Aquele abraço em que os braços do Oriente e do Ocidente se encontraram assim com as lágrimas foi uma espécie de abraço sobre o mundo, com as suas línguas e as suas gentes. Naquele abraço mais se adensou o misterioso país das lágrimas humanas. Aquelas lágrimas não são só secreções, não. Elas trazem consigo uma metafísica: metafísica das lágrimas que é uma metafísica do ser humano em que se cruza o passado e o presente com o imanente e o transcendente. E as lágrimas estão lá, nesse ponto fora do espaço em que os braços da cruz se encontram.

Foi isso que concluí com aquele sentido abraço: há uma metafísica das lágrimas humanas. Elas são as palavras do coração quando os lábios emudecem.

Um abraço de lágrimas da alegria da paz de Natal com uma prece para que sequem as lágrimas da guerra.

Guarda, 6 de Dezembro de 2023
António Salvado Morgado

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