Relatório sinodal: desafio a discernir e praticar juntos a renovação eclesial

Padre Jorge Guarda, Diocese de Leiria-Fátima

O Relatório com os resultados da escuta sinodal em Portugal foi recentemente publicado pela Conferência Episcopal. Suscitou apreço em certos sectores da sociedade e perplexidade nalgumas sensibilidades da Igreja, como transpareceu numa pergunta no final do Simpósio do Clero, em Fátima, e em tomadas de posição com eco na comunicação social. Desconfio que não foram muitos os que se deram ao trabalho de ler o documento na sua íntegra. Numa conversa em que alguém me falava da sua impressão negativa a partir das notícias da comunicação social, recomendei-lhe que lesse o Relatório. Depois de o fazer, disse-me que, afinal, se revia nele e que era “bem melhor” do que as notícias faziam crer. E enviou mensagem nesse sentido a quem lhe falara também com perplexidade relativamente ao documento.

Que se pode dizer do retrato que o Relatório faz da Igreja em Portugal e que desafios nos apresenta? O que nele li fez-me lembrar as “cartas às sete Igrejas” do Livro do Apocalipse (capítulos 2 e 3). Nelas, Jesus ressuscitado apresenta a sua visão sobre 7 Igrejas. Elogia o bem e fervor que nelas encontra, censura afrouxamentos e desvios e aponta os caminhos de renovação. À Igreja de Laodiceia, por exemplo, censura-a por se ter tornado morna, não sendo fria nem quente, e de se julgar rica, sem nada lhe faltar, não se dando conta de ser uma “infeliz, miserável, pobre, cega e nua”. Aconselha-a então a virar-se para o Ressuscitado para lhe comprar “ouro purificado no fogo” e vestes novas e o seu olhar ser curado. Revela-lhe que está à porta e bate, convidando-a a abri-la para que Ele entre em sua casa e se sente à mesa para cear com ela (cf Ap 3, 14-20). Não são meigas as palavras do Senhor na censura, mas são cheias de vigor, ternura e esperança no convite à escuta, conversão e mudança e na promessa de as Igrejas se tornarem vencedoras como Ele e de estar com ela no seu Reino. A exortação do Senhor ressuscitado termina com as palavras: «Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas» (Ap 3, 22).

Quem ler com atenção o Relatório na íntegra (e não somente as notícias sobre ele), encontra o eco de como foi acolhido, organizado e vivido o processo de consulta nas variadas instâncias da Igreja em Portugal, com o entusiasmo e esperança que suscitou, mas também com as resistências e descrenças com que foi recebido. Depois, vem a visão do estado atual da Igreja que transparece dos dados recolhidos. O retrato salienta mais os traços negativos e as insatisfações do que a beleza do rosto, o fogo ardente do coração e as boas obras da Igreja. E é isto que acaba por transparecer na comunicação social. Por fim, na terceira parte, o documento traça a visão da Igreja desejada por quem participou no processo, as exigências de renovação e os desafios que hoje lhe são feitos para realizar frutuosamente a sua missão no mundo. Vejo nele traços proféticos que inquietam, interpelam, requerendo discernimento e mudança de mentalidade e de atitudes. Exigem, no entanto, que se procure lê-lo à luz do Espírito

Santo, para tentar identificar o que Ele quer dizer à Igreja e os passos que inspira a dar, não tanto para acertar o passo com o mundo e se adaptar a ele, mas para ser nele luz iluminadora e fermento transformador que, com as suas boas obras e santidade, ela manifeste a glória de Deus, contribua para a fraternidade universal entre os homens e atraia os homens para Ele.

Que desafios traz à Igreja em Portugal este relatório? Saliento quatro.

1. Continuar o discernimento juntos. Contrariamente ao que por vezes parece, o processo sinodal, no que a nós diz respeito, não termina com a recolha dos resultados da escuta e o seu envio para Roma, ficando depois à espera que aconteçam as outras dimensões da caminhada, a celebração do Sínodo dos Bispos e as decisões que, na sequência dele, o Santo Padre torne públicas para a vida e prática de toda a Igreja. O desejo do Papa Francisco é que o estilo sinodal se torne a forma de ser e agir na Igreja. Por isso, nas várias instâncias eclesiais, a escuta mútua e o discernimento juntos deve continuar, de modo a perceber-se os passos a dar, segundo a inspiração do Espírito Santo. O mencionado relatório é um instrumento a retomar, mas não menos as conclusões de cada grupo, paróquia, movimento eclesial, congregação religiosa ou diocese. O nosso caminho sinodal continua, sem interrupção nem alheamento do que se passa noutros âmbitos da Igreja. O esforço de escuta e discernimento deverá continuar a fazer-se no âmbito pastoral ordinário das comunidades cristãs, nos seus variados níveis, sob pena de perdermos as inspirações, os impulsos e os dons com que o Espírito Santos acompanha e enriquece a Igreja na sua vida e missão temporal.

2. Envolver todos os membros da Igreja. Alguém pode pensar que os reparos, exigências e desafios do Relatório à Igreja se dirijam aos seus pastores e àqueles que com eles colaboram mais de perto. Mas não é assim. Não a vemos a Igreja fora ou distante de nós, pois ela toca-nos a todos nós. A Igreja sou também eu, deverá pensar e sentir cada fiel. O que ali se diz da Igreja envolve todos, mesmo que nela haja responsabilidades diversificadas. As insatisfações, defeitos, incoerências, falhas… mas também as virtudes, as boas obras e serviços também me dizem respeito a mim, singularmente ou na minha responsabilidade ministerial, à minha comunidade, movimento, serviço ou diocese. Não posso, portanto, deixar de sentir dirigido também a mim tudo o que no documento se diz da Igreja. Por isso, as interpelações e desafios para a renovação da Igreja tocam-nos também a nós, qualquer que seja o lugar e a responsabilidade que nela ocupemos.

3. A renovação começa em mim. Será tentação ficar parado à espera das orientações que hão de vir para toda a Igreja no final do processo sinodal. Essas serão bem-vindas e deverão ser acolhidas e obedecidas por todos, é certo. Mas é preciso que eu comece a fazer a renovação desde já, no que depende de mim. Observamos como o Papa Francisco age: vai tomando iniciativas e fazendo inovações pouco a pouco. O mesmo deve fazer cada um de nós, a começar pela conversão de mentalidade e de atitudes que este processo implica. O passo que agora posso dar é importante que não espere

para o dar. Do mesmo modo se deve fazer nas iniciativas que cada grupo, comunidade e diocese deve ter. Se assim se agir, quando vierem orientações do Santo Padre, é muito provável que nos sintamos em sintonia e que algo já esteja a acontecer no tecido eclesial da base. É o discernimento bem feito que nos permite dar passos certos no caminho pessoal de cristão e das comunidades para avançar na renovação. O Relatório dá-nos muito pano para mangas neste sentido. Devemos, no entanto, fazê-lo juntos, segundo Deus e não somente segundo o nosso talento, com sentido de comunhão eclesial, agindo inspirados e impelidos pelo Espírito e não procurando protagonismo e popularidade.

4. O fim da Igreja é missionário. O Relatório refere que o processo em curso visa “ajudar a passar de uma Igreja exageradamente centrada na autoridade e ação do clero para uma Igreja sinodal e missionária, na comunhão e participação ativa de todos os seus membros.” A Igreja existe para testemunhar e oferecer a todos, ao longe e perto, o Evangelho do amor e da misericórdia de Deus revelado por Jesus. Esta missão envolve cada cristão, na diversidade das suas vocações, e todas as comunidades eclesiais. Deverão fazê-lo de modo inovador e não repetindo simplesmente “o que sempre se fez”, pensando que se não der frutos é porque os “destinatários” não deram ouvidos. É significativa e plenamente atual a visão e a consciência que a Igreja tem da sua missão, proclamada na Constituição dogmática sobre a Igreja do Concílio Vaticano II: reconhece que Cristo é a luz dos povos e que esta luz resplandece no rosto da Igreja. Esta, unida a Cristo, é sinal e instrumento “da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”. É seu empenho que “os homens todos, hoje mais estreitamente ligados uns aos outros, pelos diversos laços sociais, técnicos e culturais, alcancem também a plena unidade em Cristo” (LG 1). Este desafio, que se pode exprimir também pela expressão fraternidade universal, implica que a Igreja saia ao encontro dos homens, caminhe, escute, dialogue e colabore com eles, dando testemunho com respeito e amor da fé e esperança que lhe vêm de Jesus Cristo morto e ressuscitado. O testemunho da Igreja será cativante se nela própria se viver a fraternidade cristã entre os seus membros. Também a relação da Igreja com o mundo tem que ser sinodal, ou seja, de abertura, partilha de dons e inquietações, procura da verdade e da justiça juntos. Vão neste sentido os novos caminhos da missão.

Em conclusão, como disse D. José Ornelas no final do Simpósio do Clero, em resposta à pergunta acima referida, o Relatório da CEP é um instrumento para continuar a caminhada e o discernimento nos diferentes níveis da vida da Igreja no nosso país. O processo e o caminho estão apenas no inicio. Avancemos com confiança guiados e animados pelo Espírito Santo e não nos deixemos parar pelo cansaço, desalento ou retardar dos frutos.

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Agência ECCLESIA

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